sábado, 2 de outubro de 2021

APARECIDA E A DEVOÇÃO POPULAR

Por Fernando Altemeyer Junior

Introdução

 

A partir do encontro de Maria pelos pescadores Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso, abunda a vida modificada na mesa do pequeno. Filipe conserva em sua casa, entre os anos 1717 e 1732, a Senhora retirada do fundo do rio.

Pescada com as redes de pescadores, ela é quem irá “fisgar” o coração do povo do Vale do Paraíba e de todo o sul mineiro até as minas de Ouro Preto e os pampas do Rio Grande do Sul. O encontro será datado em 12 de outubro. Será o começo de longa história de amor que já dura 300 anos.

 

Pescadores pobres pescando uma mãe imersa nas águas, quebrada, descolorida e acinzentada. O simbolismo da maternidade sempre se relaciona com mar, rio e águas. Nascemos todos envoltos em placenta e líquido amniótico. Nascer é expresso de forma simbólica como o sair do ventre da terra ou de águas primordiais. Morrer é sinônimo de ser mergulhado nas águas profundas e desconhecidas. A mãe é um sinônimo de calor, útero, ternura e alimento que nos chega pelo cordão umbilical e pelo seio generoso.

 

  1. Maria de Nazaré

Maria exprime na fé católica autêntica essa realidade histórica, e não o mero símbolo ou imagem produzida por mãos humanas. Aquela a quem temos por padroeira é uma mulher real e consoladora. É Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, o Filho de Deus. É alguém, e não algo. Fala, caminha, sofre conosco e nos encoraja a lutar como companheira, mãe, amiga e nossa irmã de fé. Maria é a filha de seu Filho e Mãe de Deus, que nela se encarnou na história. É a mais perfeita das maternidades. É a mãe que não oprime nem reprime os seus filhos, mas os quer plenos e adultos. Não é castradora, mas plenamente libertadora. Quem é esta mulher livre? Responderá Zé Vicente pela toada nordestina: “É Maria, é Maria, nossa Mãe, modelo e guia / é Maria, é Maria, companheira noite e dia!”.

 

A virgem negra simboliza a terra virgem que manifesta o poder infinito de Deus. O enegrecimento de imagens ocorre na Europa ao final da Idade Média, seguindo o modelo iconográfico oriental. No caso brasileiro, é a história dos negros que fará a Virgem tornar-se Senhora negra e ser assumida como tal. Enquanto a ideologia dominante pretendeu sempre o embranquecimento e a negação das raízes africanas, a fé popular realizará o contrário: um enegrecimento da Mãe Aparecida para confirmar simbolicamente o que já se vive na fé: a Santa Maria, Mãe de Deus, roga por todos os pecadores. Ao estudarmos as aparições, vemos que são sempre relatos de “desvios” que Deus indica ao mudar o mapa do catolicismo oficial e de sua narrativa racionalizada. Em Guadalupe, no ano de 1531, a virgem Morenita fala nauatle, e não o espanhol, e quer o santuário na terra dos pobres, e não na capital de Tenochtitlan.

 

Em Aparecida, em 1717, mergulha no fundo do rio e faz “parceria” com pescadores pobres, assumindo desde cedo a defesa da vida dos escravos e a feitura de sinais para cegos, negros e crianças. É sempre a marca da subversão, desse vir de baixo, do revelar o rosto do amor pelos últimos. A aparição tricentenária de Imaculada Conceição Aparecida revela o lugar escolhido por Deus para plantar a sua santa Igreja: a periferia, os negros, os trabalhadores, os dominados e os invisíveis da sociedade dominante. O que aprendemos em Aparecida é que todo discurso eclesial, catequético, pastoral está condicionado pelo lugar a partir de quem e com quem ele é proferido. É preciso analisar o discurso a partir do lugar de onde este é proferido. Maria indica silenciosamente que o evangelho é pronunciado a partir das periferias, dos subterrâneos e porões da humanidade. “Desde abaixo”, como dizem os irmãos latino-americanos. Maria age de forma discreta. Maria mostra que evangelho é estar com os pobres e defender sua vida, sua fé e suas esperanças. Fala direto à alma de nosso povo. Fala de amor, pois primeiro ouve aqueles que gemem neste vale de lágrimas, como advogada nossa.

 

  1. Maria Santíssima e a imagemda padroeira

É bom dizer em alto e bom som que a imagem não é a padroeira do Brasil. A padroeira de nossa pátria e da Igreja é a Mãe de Deus. Assim o ensina santo Anselmo: “Deus é o pai das coisas criadas, e Maria a mãe das coisas recriadas. Deus gerou aquele por quem tudo foi feito; e Maria deu à luz aquele por quem tudo foi salvo. Deus gerou aquele sem o qual absolutamente nada existe; e Maria deu à luz aquele sem o qual nada vai bem” (ANSELMO, 1987, p. 1660).

 

Devemos destacar como ponto luminoso o caráter antropológico de nossa renovada devoção à Virgem Santíssima. O culto à Virgem precisa estar “em estreita harmonia com as ciências humanas que projetam as condições psicológicas e sociológicas mudadas nas quais vivem as pessoas modernas, principalmente as mulheres” (JOHNSON, 2006, p. 171).

 

  1. Que imagem foi pescada no rio Paraíba?

Uma pequenina escultura feita por um autor anônimo, da provável escola de ceramistas da ordem dos beneditinos. Atribui-se às mãos artísticas de frei Agostinho de Jesus ou de algum discípulo do mestre frei Agostinho da Piedade. O que se sabe é que foi feita de barro cozido ao fogo, na forma e estilo da imaginária e estatuária brasileira. Mede 36 cm de altura, tem 2.550 gramas de peso, colocada sobre uma peanha de prata lavrada. Feita provavelmente na primeira metade dos anos 1600. Teria adornado alguma capela ou lar até quebrar? Que caminhos até ser mergulhada ou jogada nas águas escuras do Paraíba? Quem a produziu? De onde veio? Como a arte dialogou com a cultura do povo? Para onde vai?

 

Aos olhos do artista e do povo brasileiro, alguns detalhes curiosos: a forma sorridente dos lábios, descobrindo os dentes da frente; rosto com covinha; penteado laborioso com tranças; flores em relevo nos cabelos; diadema na testa; saia pregueada até o chão; mãos postas, pequenas como as de uma menina; as mangas simples e justas, de muito requinte, dobrada à maneira dos mestres seiscentistas paulistas; mãos e rosto de cor original rosa-claro que foi perdida e enegrecida com a fuligem de candeeiros e sua estadia no lodo cinzento do fundo do rio.

 

O culto à Senhora da Conceição já possuía raízes profundas no Brasil colonial, e imagens de virgens de mãos postas podiam ser facilmente encontradas. O que temos na imagem de Aparecida é um enigma de um ícone que se transforma e assume o rosto do povo e de seus sonhos. Sabemos que “a primeira impressão tipográfica da imagem de Nossa Senhora Aparecida, feita em 1854 – uma estampa de Nossa Senhora da Conceição de pele clara –, continua a ser impressa pelo comércio de Aparecida” (CORDEIRO, Luis e Rangel, 2013, p. 245). Aquela imagem esculpida foi recriada e enegrecida pelos pobres e negros do Brasil. Verdadeira encarnação imagética da Aparecida que é Mãe da compaixão. Ela nos ensina que o que não for assumido em Cristo jamais será redimido. Ela desvela o que Cristo revela. Consegue o que só Deus pode conceder. Pede, pois crê fielmente. Recebe, pois obedece. Ela é a mulher radiante cantada pelo poeta no livro do Cântico dos Cânticos 6,10: “Quem é essa que desponta como a aurora, bela como a lua, fulgurante como o sol?”.

 

Este surgimento em 1717, em plena escravidão do povo negro no Brasil, diz muito e contradiz tudo o que havia naquele bloco histórico. A imagem de Aparecida toca diretamente a vida do trabalho e as condições de sofrimento e de esperança de milhares de pessoas exploradas. Surge esfacelada entre pessoas quebradas pelo chicote de feitores e o pau de arara de senhores que se diziam cristãos. Usavam o santo nome de Deus para matar escravos. Os pescadores pobres do rio Paraíba são, sem o saber, os protagonistas de uma nova narrativa popular. Maria fará a vizinhança daqueles 350 habitantes de Guaratinguetá se agrupar. Será ela a catalisadora de pequenas comunidades eclesiais de base. Maria envia uma mensagem por meio de uma imagem esculpida. Não são palavras, mas um silêncio que fala e grita. Dirá o teólogo José Marins: “Aparecida é uma aparição que não diz palavras, não há uma mensagem direta, explícita. O meio é a mensagem. Cardeais, bispos, clero, intelectuais, políticos, governantes, dependem sempre dos primeiros testemunhos históricos, os pobres, que encontraram a Virgem em seu trabalho cotidiano” (MARINS, 1989, p. 90). Trezentos anos dessa aliança indestrutível com os pequeninos. Maria não diz nada. Só se mostra. E exige nosso olhar convertido. Desnuda-se nas águas para viver na casa do povo e mais tarde na capela construída no morro dos Coqueiros em taipa de pilão. Percebe-se claramente o paradoxo e a tensão entre esses dois modelos ambivalentes no terreno religioso católico da cristandade colonial. Assim explica o teólogo Diego Irarrázaval: “As elites preferem formas autoritárias e androcêntricas, com as quais controlam aos grupos humanos (e isto influencia na teologia). Têm seus códigos e seus rituais. Quando falamos da gente simples, da fé de cada dia, abundam outros elementos simbólicos. Por exemplo, elementos de súplica, gratidão, celebração, que lhes fortalecem como pessoas e como crentes. Temos, pois, símbolos de liberdade. De outro lado, há um elenco de grupos fundamentalistas que difundem seus sinais de exclusão, intolerância e agressão diante dos ‘outros’” (IRARRÁZAVAL, 2004, p. 241).

 

Em 9 de março de 1500, navegava por águas da costa da Terra de Santa Cruz a nau capitânia São Gabriel, comandada por Pedro Álvares Cabral, seguida de outras nove embarcações. Quem desbravou o mar desconhecido foi a nau batizada como Arcanjo São Gabriel. Dentro das naves portuguesas vinham oito frades franciscanos. Anteriormente, as naus espanholas comandadas pelo almirante Cristóvão Colombo em 1492 tinham à frente a nau Santa Maria, antes batizada La Gallega. Chegavam os conquistadores em naus cristãs e marianas, mas, em geral, surdos às vozes que aqui já viviam o mistério de Deus em suas culturas. Foi preciso esperar outras aparições e outros mensageiros.

 

  1. Maria escolhe os últimos e as vítimas

Maria escolhe sempre os últimos, os que são considerados ninguém, e fala em seu idioma e dialeto. O povo que a ama faz com que ela vá morar na casa dos pobres e, deste lugar teológico, faz correr aos quatro ventos a notícia alvissareira dessa visita celestial. Maria vem vestida com a roupa dos pobres e se revela com o maior de todos os títulos: Mãe de Deus. Já ensinava são João Damasceno: “O nome Theotókos, Mãe de Deus, por si só já contém todo o mistério da economia da salvação” (De fide orthodoxa, III, 12).

 

Maria é a inimiga da serpente, a mulher vestida de sol, a imagem da sabedoria de Deus em seu ser e em sua entrega de amor. A Virgem Imaculada Conceição expressa e personaliza a santidade humana que deseja Deus do fundo de seu ser. Ela é toda de Deus e toda do povo fiel, de quem é imagem prototípica e de quem recebe o culto da mais alta veneração. O essencial da Igreja é sempre a comunhão entre Deus e humanidade por meio do Cristo, único mediador. Maria não ofusca nem faz sombra a essa revelação salvífica. A pequenina imagem da Virgem Imaculada mostra e faz aparecer o Deus que continua querendo comunhão a partir dos pequenos. Em Maria se descobrem os sinais da Mãe que pede para ser colada/costurada/reconstruída. Naquele primeiro momento, será com a cera de abelhas apiacás que a cabeça será unida ao tronco. Nasce desta junção um povo mariano que jamais irá dela separar-se. Foi unido na dor e no amor pelo sorriso da Virgem. Uma piedade imensa brota nas casas e nas procissões do povo simples. Isso indica que a devoção mariana é sempre umbilicalmente de caráter litúrgico, pois deriva da eucaristia e a ela conduz. Maria é expressão da liturgia de todo o povo de Deus que ora e adora a Deus em suas vidas e em suas preces; que sabe que ela é Maria de Belém, a casa do pão. Nunca alguém acima ou fora da Igreja, mas dentro do Mistério da fé que é pão partilhado e presença de Deus.

 

Em Guadalupe vemos sua preferência pelo indígena. No Brasil, pelo negro escravizado e pelo pobre machucado da exploração colonial. Maria não se apresenta como uma mulher passivamente submissa ou que reproduz uma religiosidade alienante. Ela é a mulher que diz não. Ela diz o que quer segundo a vontade de Deus. Ela propõe outro caminho. Que o bispo Juan de Zumarraga venha para a periferia do Tepeyac, e não o inverso. Que a Igreja oficial vá à periferia dos indígenas e mestiços. Que a Igreja não construa a Nova Espanha, mas descubra na raiz e nos rostos dos povos a autêntica América dos povos centro-americanos.

 

E a história se repete em cada país da América Latina e Caribe. Será a virgem dos pobres em Honduras, Nuestra Señora de Suyapa; no Paraguai, a Senhora de Caacupé; em Cuba, a Virgen del Cobre; a Senhora de Chiquinquirá, na Colômbia. Em Luján, na Argentina, teimosamente fica presa com o povo do lugar, à margem esquerda do rio Luján. Na Costa Rica, a Virgem de los Angeles, conhecida pelo povo como La Negrita, mostra-se a uma menina simples e pobre, Juana Pereira, em um lugar chamado Pueblo de los Negros em 2 de agosto de 1635. Ela quer ficar com os negros. Aqui se exprime o caráter ecumênico da devoção e do culto mariano. É preciso evitar exageros que firam os irmãos cristãos e os de outras confissões religiosas. Maria quer unir povos e culturas, e não segregar ou negá-las.

 

Ela é sempre a mulher das esperanças diante da peste, da fome e da morte. Isso é dito expressamente em Salette, Lourdes, Fátima, na Europa. Estes elementos históricos reforçam que a veneração mariana deve sempre ter um cunho essencialmente bíblico. Está umbilicalmente ligada ao seu filho Jesus como mãe e fiel seguidora. Aparece ao lado dos apóstolos de forma discreta. É a mãe singela que está junto à Igreja de Pentecostes. Vive as bodas de Caná, compreende as limitações dos pobres quando da falta de vinho e busca o filho para sanar e curar. “Fazei tudo o que ele vos disser”, diz o evangelista, tal qual lição perene para os seguidores de Jesus.

 

Mesmo quando alguém foi capaz, de forma iconoclasta, de romper em 165 pedaços a imagem guardada em seu nicho, não se podia imaginar que, ao juntar novamente a Virgem originariamente despedaçada, se fazia com a ajuda da artista o que durante décadas alguns milhões de corações fizeram dia após dia, costurando relações, rezando em família e clamando por milagres e graças. Ao refazer a Virgem pedaço a pedaço, refez-se não só o símbolo e o ícone, mas se desvelou novamente a Mãe que é nosso amálgama brasileiro e força na caminhada. Assim o dizemos, quando da hora terça no ofício mariano da Senhora Conceição: “Deus vos salve, trono do grão Salomão, arca de concerto, velo de Gedeão, íris do céu clara, sarça da visão, favo de Sansão, florescente vara”.

 

Bibliografia

 

ANSELMO, Santo. Sermões, Oratio 52, PL 158, 955-956. In: IGREJA CATÓLICA. Liturgia das horas – ofício das leituras. São Paulo: Paulus, 1987.

CORDEIRO, José; LUIS, Denilson; RANGEL, João. Aparecida: devoção mariana e a imagem Padroeira do Brasil. São Paulo: Cultor de Livros, 2013.

IRARRÁZAVAL, Diego. Raíces de la esperanza. Lima: Idea-CEP, 2004.

JOHNSON, Elizabeth A. Nossa verdadeira irmã: teologia de Maria na comunhão dos santos. São Paulo: Loyola, 2006.

MARINS, José. Para viver a Maria, madre de comunidades. Buenos Aires: Editorial Guadalupe, 1989.

MENDES DE ALMEIDA, Luciano. A padroeira do Brasil. In: SILVA, Edmar Jose da; MELO, Edvaldo Antonio. Dizer o testemunho – dom Luciano Mendes de Almeida. São Paulo: Paulinas, 2016. v. 2.

MURAD, Afonso. Maria, toda de Deus e tão humana : compêndio de mariologia. São Paulo: Paulinas; Aparecida: Santuário, 2012.

 

Fernando Altemeyer Junior

Graduado em Filosofia e Teologia, mestre em Teologia e Ciências da Religião pela Université Catholique de Louvain-La-Neuve e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Assistente doutor na PUC-SP. E-mail: fajr@pucsp.br

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