Jesus veio para servir e dar
sua vida
Podemos
gostar de crucifixos de marfim, com gotas de sangue em rubis, como era a moda
nas mansões coloniais do século XVIII. Mas não gostamos de um homem diminuído,
quebrado, mutilado, ofensa à humanidade. Ora, Deus gosta – não por sadismo
(como se precisasse de castigar alguém), mas por verdadeiro amor, que é
comunhão, pois se reconhece no justo que foi esmagado por causa da justiça. Num
só justo assim, Deus mesmo assume a dívida de muitos, de todos. Os judeus
aprenderam isso no exílio babilônico. Não se sabe quem foi o justo torturado
pelos ímpios, do qual fala Is 52,13-53,12 (1ª leitura), mas sabemos o que
Israel dele aprendeu: enquanto diante dele cobriam o rosto, aprenderam que ele
carregou os pecados do povo e morreu por eles.
Como é
possível isso? “Chorarão sobre aquele que traspassaram” (Zc 12,10). Parece que
a humanidade precisa ver em alguém o resultado de sua malícia, para dela se
arrepender. As reivindicações sociais só são concedidas depois de algumas (ou
muitas) mortes. Os movimentos de emancipação só vencem quando há mártires.
Infeliz humanidade, que só aprende de suas vítimas. Por isso é que Deus ama os
que são vitimados. Não porque goste de vingança e sangue, mas porque eles são
os seus melhores profetas, seus porta-vozes. Ele se identifica com eles,
exalta-os, inclusive, na própria veneração do povo, que, venerando-os, se
arrepende de suas faltas e por eles é perdoado e verdadeiramente libertado.
Deus ama duplamente o justo sacrificado: a primeira vez, por ser justo e
testemunhar a justiça; a segunda, porque seu sangue leva os outros à justiça.
O justo
padecente é o modelo conforme o qual Jesus concebe sua missão (evangelho).
Entretanto, os seus melhores discípulos pretendem reservar-se os lugares de
honra no Reino (Mt 19,16ss abranda a situação, dizendo que foi a mãe deles que
o pediu …). Jesus então lhes ensina que tais pretensões cabem aos poderosos
deste mundo, mas não têm vez no Reino de Deus. No Reino de Deus se deve beber o
cálice de Jesus, receber o batismo que ele recebe – e os discípulos, sem
entender o que Jesus quer dizer, confirmam que eles farão isso. Como, de fato,
o fizeram, depois que o exemplo de Jesus lhes ensinara o que estas figuras
significavam.
O “poder”
no Reino de Deus consiste no servir. O amor só tem poder enquanto ele é doado e
se coloca a serviço. Para atingir o coração (e a Deus interessa só isso) é
preciso penetrar até o nível da liberdade da pessoa. Ninguém ama por
constrangimento. A liberdade surge quando alguém pode tomar ou não tomar
determinada decisão. Diante da força que se impõe, não há liberdade. Diante do
serviço de alguém que se toma submisso a mim, posso decidir alguma coisa. Por
isso, Jesus quer estar a serviço, para que se possa livremente decidir que
“reino” se prefere.
Servir é
ser pequeno. Ministro (servo) tem a ver com mínimo. Frente ao pequeno, o homem
revela o que tem no seu coração: bondade ou sede de poder. Jesus quis ser
pequeno, para que os corações se revelassem, não tanto a ele e Deus, que os
conhece, mas a si mesmos, pois o maior desconhecido para mim é meu próprio
coração. Assumindo o caminho do paciente testemunho da verdade, divergente das
conveniências da sociedade dominante, Jesus se tomou servo e fraco, sempre
exposto e sem defesa. Tornou-se cordeiro (cf. Is 53,7). O resultado só podia
ser o que de fato aconteceu. Foi eliminado, e até seus discípulos tiveram
vergonha dele. Mas, muito mais do que no caso do justo de Is 53, Jesus tomou-se
“pedra de toque” dos corações e da sociedade toda, com suas estruturas e tudo.
Esta é a
mensagem que Mc nos deixa entrever a partir do 3° anúncio da Paixão (Mc
10,32-34; estes versículos poderiam ser incluídos na leitura, para mostrar
melhor que as palavras sobre o servir não são apenas uma crítica aos filhos de
Zebedeu, mas uma interpretação do caminho do Cristo).
A 2ª
leitura cabe bem neste contexto litúrgico. Embora a figura do sacerdote não
seja exatamente a do Servo, entendemos perfeitamente que é o Cristo-Servo que,
pela fidelidade à sua missão, se torna o verdadeiro “santificador”. Hb acentua
que exatamente a participação de Jesus nos mais profundos abismos da condição
humana – exceto o pecado – o qualifica para ser o melhor sacerdote imaginável.
Um sacerdote que não está do outro lado da barra, mas que participa conosco. E,
num seguinte passo, dirá ainda que este sacerdote não precisa de sacrifícios
alheios à nossa condição humana (portanto, meramente simbólicos), mas torna sua
própria vida instrumento de salvação.
A grande ambição: servir e dar
a vida
O
evangelho de hoje é provocador. Os melhores alunos de Jesus solicitam uma coisa
totalmente contrária ao que ele tentou ensinar. Pedem para sentar nos lugares
de honra no seu reino, à sua direita e à sua esquerda. Não compreenderam nem a
pessoa, nem o modo de agir de Jesus. Seu pedido era tão vergonhoso que o
evangelista Mateus, quando contou mais tarde a mesma história, disse que foi a
mãe deles que pediu (MT 20,20).
Devemos
situar esse episódio no seu contexto. Mc 8,31-10,45 é a grande instrução de
Jesus a caminho, balizada pelos três anúncios da Paixão. O evangelho de hoje é
a continuação do 3° anúncio da Paixão: estamos no fim da instrução, e parece
que até os melhores alunos ainda não aprenderam nada. De fato, só aprenderão
depois da morte e ressurreição de Jesus. Por enquanto, em contraste com a
incompreensão dos alunos, eleva-se a grandeza da lição final: o dom da própria
vida.
A 1ª
leitura prepara-nos para compreender melhor o evangelho. É o 4° cântico do
Servo Sofredor. No seu sofrimento ele assumiu a culpa de muitos. Por isso, Deus
o ama duplamente: porque ele é justo e porque seu sangue leva os outros a serem
justos. Infelizmente, a humanidade precisa de vítimas da injustiça para
reencontrar o caminho da justiça. A recente história da América Latina está
cheia disso: os mártires que com seu sangue testemunharam o caminho da
fraternidade. E ao lado desses mártires de sangue temos ainda os mártires do
dia-a-dia, que não são poucos: pessoas que sacrificam sua juventude para cuidar
de pais idosos, que sacrificam carreira lucrativa para se dedicar à educação
dos pobres … São estes que santificam nosso mundo cruel.
O justo
que dá sua vida pelos outros é chamado “servo”, porque serve. Ele é o anti-poder.
O povo diz: “Quem pode mais, chora menos”. O Servo diria: “Quem pode mais,
serve menos”. Jesus diria: “Quem ama mais, sofre mais”. Jesus é a plena
realização do “servo”. Aos apóstolos ambiciosos que desejam ter os primeiros
lugares no Reino ele opõe seu próprio exemplo: “Quem quiser ser o maior entre
vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o
escravo de todos. O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar a vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).
Casualmente,
este evangelho coincide com o trecho de Hb lido na 2ª leitura. Aí o servo de
Deus é chamado de sacerdote. Não no sentido do Antigo Testamento – pois aí os
sacerdotes eram muitos e deviam ser descendentes de Aarão, o que Jesus não era.
Mas no sentido de oferecer a Deus, por todos nós, a própria vida. Aliás, ele é
o único sacerdote conforme o Novo Testamento. Aqueles a quem chamamos de
sacerdotes são na realidade “ministros”, servos do sacrifício exercido por
Jesus. Eles ministram no altar o sacrifício de Jesus, exercendo o sacerdócio
ministerial. E os fiéis unem-se ao dom da vida Jesus exercendo na vida
cotidiana o sacerdócio batismal do povo de Deus.
franciscanos.org.br
https://diocesejacarezinho.org/2018/10/29o-domingo-do-tempo-comumano-b/
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