sábado, 18 de dezembro de 2021

CATEQUESE

Inspiração catecumenal e conversão pastoral (II)

Por João Fernandes Reinert, ofm

 

3.2. (Re)começar a partirde Jesus Cristo

 

A reflexão anterior não deixou margem a dúvidas sobre a lucidez da missionariedade catecumenal em não pressupor o primeiro anúncio. Com base nisso, torna-se mais evidente a pretensão das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil ao enfaticamente convocar a pastoral para “partir de Jesus Cristo” (CNBB, 2015, cap. 1). À luz da inspiração catecumenal, esse urgente apelo pode ser lido de vários ângulos.


A convocação ajuda a entender o cristianismo – e, consequentemente, a pastoral – como proposta. Dois equívocos pastorais muito comuns consistem em pressupor ou impor a fé. Em nome de uma pseudofidelidade à tradição, tende-se, por vezes, a impor a fé, a moral, as normas, a instituição religiosa…


Propor a fé é, sem dúvida, a chave hermenêutica das ações eclesiais que queiram estar no processo de conversão pastoral, de saída missionária. Propor é conduzir mistagogicamente à descoberta de Deus, é despertar, é apresentar, é atrair, mais por testemunho do que por argumentações ou explicações. A pastoral precisa, cada vez com maior urgência, estruturar-se como proposta, como oferta, como processo, como redescoberta, encantamento, apaixonamento.


Estes três verbos – pressupor, impor, propor – apontam para três perspectivas distintas no cotidiano da evangelização.


Ao primeiro verbo, supor, convergem todas as expressões de pastoral de manutenção. Supõem-se a vigência da tradição, a força da instituição, o encontro pessoal com Cristo etc. e, em decorrência disso, negligencia-se um anúncio mais explícito, contagiante, da proposta cristã. Cai-se facilmente na pastoral da suposição.


A segunda orientação, impor, expressa as tendências que ressurgem com força na atualidade. São as tentativas equívocas de responder à crise religiosa. No afã de recuperar o monopólio religioso perdido, tende-se a impor. Não vêm de hoje tentativas equivocadas de resposta à crise de fé. Ganha destaque a pastoral apologética, que, ao defender a instituição, faz frente à secularização, às outras religiões. Trata-se de pastoral não apenas voltada à manutenção da fé, mas também à defesa, ao embate, ao enfrentamento, por entender que as mudanças culturais viriam abalar o catolicismo tranquilo e, consequentemente, a tranquila instituição religiosa.


A terceira via, propor, indica a direção da nova evangelização, porque recupera a maturidade das origens, perdida com a cristandade. Conversão pastoral é a concretização da passagem da pressuposição para a proposição. Não nos é permitido, em tempos de crise religiosa, pressupor a fé, pressupor a dimensão comunitária da fé, a consciência de que a caridade e o amor ao próximo são constitutivos da fé e tantas outras dimensões inerentes ao cristianismo. Para a religiosidade líquida, essas questões não são evidentes. Iniciação à vida cristã é iniciação à totalidade do ser cristão, a qual, se não se pode pressupor, também não se dá por imposição, mas por “atração”, por meio da “alegria do evangelho”.


Outro modo de ler a convocação pastoral “começar a partir de Jesus Cristo”– leitura que, de certa forma, já apareceu neste texto – é como chamada de atenção para a volta ao essencial da fé cristã, ao núcleo do evangelho, à Pessoa de Jesus Cristo. A conversão pastoral tem diante de si a tarefa de resgatar a originalidade da fé cristã. Essa conversão passa necessariamente pela distinção da essência da fé cristã daquilo que é secundário, que só tem sentido à luz do essencial. Não se trata, obviamente, de descartar o doutrinal, mas de perceber que o conjunto de preceitos está a serviço da experiência da fé, e não o contrário. O doutrinal, o ritual e o legal visam expressar e recordar um encontro primeiro, uma experiência fundadora, do contrário s tornariam fins em si mesmos.


Muitas são as expressões do agir eclesial desprovido do querigma. “O querigma não é uma propaganda para ganhar visibilidade. Alguns têm denominado de querigma, por exemplo, um anúncio que se limita a um reavivamento religioso, uma busca por milagres, sem compromisso profético e sem o seguimento” (CNBB, 2017, n. 156).


O tempo atual mostra-se propício à volta ao essencial. O processo de separação ou distinção entre sociedade e cristianismo, o qual chamamos de secularização, apresenta-se como oportunidade única para a recuperação da originalidade da fé cristã. Chaves de leitura para entender a lógica da sociedade secular são os conceitos de autonomia e pluralismo. A visão de mundo passa a ser plural, as culturas são policêntricas, as fontes de sentido da realidade são igualmente multiformes, o que significa que já não existe mais um princípio norteador para o todo social. A autonomia das realidades sociais oferece ao cristianismo a possibilidade de novamente ser autônomo, isto é, a oportunidade para a comunidade dos seguidores de Cristo novamente se distinguir da sociedade, no sentido de romper com aquela identificação social que lhes priva da identidade e da missão de serem fermento na massa. Trata-se da volta às fontes, do retorno aos primeiros séculos da era cristã, em que o cristianismo já era secular, isto é, autônomo, com sua lei própria, o evangelho.


A conversão pastoral se concretiza no resgate da identidade cristã, no tornar o cristianismo novamente uma comunidade alternativa. Sem a clareza da necessidade dessa distinção, sem a volta ao essencial, a ação pastoral será vítima de saudosismos, privilégios, acordos, benefícios, entre outras deturpações pastorais. A distinção em questão é, portanto, potencialização para a própria identidade cristã. A autonomia das realidades, a qual a secularização reivindica, requer do cristianismo clareza da própria identidade, de sua lei própria (autonomia).


Conversão eclesial é, antes de tudo, conversão de fé, volta ao essencial, com base na qual surgem outras conversões, as saídas pastorais, a missionariedade. O movimento mais importante da saída pastoral é, portanto, para “dentro”. Antes de quaisquer outros movimentos, mais do que multiplicar pastorais e serviços, a Igreja em saída aponta primeiramente para a volta ao essencial como condição de toda ação eclesial.

 

  1. Mistagogia, paradigma de conversão pastoral

Querigma e mistagogia são, em nosso entender, as duas colunas da inspiração catecumenal. Nas páginas anteriores, debruçamo-nos sobre o querigma e suas implicações na conversão eclesial e pastoral. Cabe-nos agora mergulhar na dimensão mistagógica da evangelização. Enquanto o paradigma doutrinal tem como representante máximo o argumento, a explicação, a doutrina, o paradigma catecumenal tem como chave hermenêutica o querigma, a mistagogia, a experiência, a iniciação, o encontro.

 

4.1. Relação entre querigma e mistagogia

 

Mistagogia, antes de ser a última etapa do processo da iniciação à vida cristã de inspiração catecumenal, é sua característica maior, do mesmo modo que “o querigma não é somente uma etapa, mas o fio condutor de um processo que culmina na maturidade do discipulado de Jesus Cristo” (DAp 278).


Apesar de o último tempo do percurso catecumenal receber o nome de mistagogia, é decisivo não perder de vista que todo o processo catecumenal é mistagógico, vivencial, experiencial, por colocar o iniciante, do início ao fim do itinerário, em contato vital com Jesus Cristo e com a comunidade de fé. Decorre dessa afirmação uma possível definição de mistagogia. A palavra, de origem grega, composta do substantivo mystes (mistério) e do verbo agein, tem o sentido de conduzir. Mistagogia é, portanto, o ato de conduzir alguém ao mistério, revelado em Jesus Cristo. Refere-se a tudo aquilo que conduz ao encontro com Cristo, que gera experiência de fé, conversão, discipulado, missão. A mistagogia, na metodologia catecumenal, está na linguagem, nos ritos celebrativos, na gradualidade do processo, na densidade da experiência, na acolhida, na comunidade, no catequista, no introdutor, no padrinho, na Palavra, nos sacramentos celebrados e vividos, enfim, está em cada instância ou elemento que auxiliam no encontro com Cristo e com a comunidade eclesial. Todas essas dimensões são canais de encontro e de experiência.


Querigma, por sua vez, é a proclamação da Pessoa de Jesus Cristo, de seu mistério salvífico, a qual não pode ser feita de qualquer modo, sob o risco de não ser ouvida nem experimentada. A proclamação do querigma, da Boa-Nova, tem como exigência a mistagogia; ou seja, é necessário proclamá-los mistagogicamente. Vigora, portanto, uma relação inseparável entre querigma e mistagogia, comparável à relação entre palavra e som.


O anúncio querigmático não é uma proclamação doutrinarista. Ele é realizado mistagogicamente, torna-se algo contagiante e envolvente, apaixonante, provocativo, dinâmico, convicto; essa é a lógica, o modo do “anúncio claro e inequívoco de Jesus Cristo” (EN 22). Há que lembrar que nem todo anúncio do querigma tem sido mistagógico. Há formas de anúncio que não condizem com a riqueza do conteúdo anunciado. Não há novidade em afirmar que muitos ruídos pastorais e eclesiais dificultam, quando não impossibilitam, o eco do querigma na vida e no coração de quem está sendo iniciado. Muitas são as expressões pastorais dessa natureza; geralmente são proclamações autorreferenciais, focadas mais na instituição do que na espiritualidade. São ações de preceitos, de assimilação de verdades religiosas, obcecadas pelo ritualismo legalismo desumanizantes. Podem estar presentes na homilia, no atendimento, na acolhida, na formação, na liturgia, no confessionário, enfim, podem entrar por todas as portas do ser e agir da Igreja. São atitudes ou ações pastorais por demais predeterminadas que enquadram, quando não aniquilam, a individualidade.

 

4.2. O tempo da mistagogia, o último do itinerário catecumenal, e seu significado para a conversão pastoral

 

Se até aqui enfatizamos a dimensão transversal da mistagogia na metodologia catecumenal, cabe igualmente agora uma palavra específica sobre a mistagogia enquanto último tempo do percurso catecumenal e sua inspiração para uma nova evangelização.


O significado teológico e pastoral do tempo da mistagogia, o último do percurso catecumenal, é de uma atualidade inquestionável, ainda a ser descoberta e explorada em muitos ambientes eclesiais. Conquanto todo o itinerário catecumenal seja mistagógico, a última etapa do processo recebe o mesmo nome, cujos objetivos são “novo senso da fé, da Igreja e do mundo” (RICA 38), “aprofundamento das relações com a comunidade dos fiéis” (RICA, 7d), “conhecimento mais completo e mais frutuoso” do mistério (RICA 38).


Chama a atenção o destaque que o Ritual da iniciação cristã de adultos, denominado RICA, dá ao tempo da mistagogia, à conclusão do processo de iniciação: “Para encerrar o tempo da mistagogia, realiza-se uma celebração ao terminar o tempo pascal, nas proximidades do domingo de Pentecostes, até mesmo com festividades externas” (RICA 237). Não há dúvida de que igualmente o tempo da mistagogia, por meio de seus objetivos específicos, tem algo para dizer à nova evangelização. Ele convoca a pastoralidade para o investimento no constante processo de formação permanente, para a continuação do acompanhamento pastoral após a administração dos sacramentos, quando este geralmente é interrompido.


O tempo da mistagogia inspira a evangelização a pensar a pastoral de modo mais conjunto e gradual e superar as lacunas no acompanhamento e projetos pastorais pós-sacramentos, as quais são consequência da herança sacramentalista, que visa aos sacramentos em si e por si. Nessa lógica, após conquistá-los, não há espaço para nem necessidade de aprofundamento, de continuação da formação permanente, em vista da crescente maturação da vida cristã. Citemos como exemplo o acompanhamento pós-matrimônio, cujo vazio é reconhecido em Amoris Laetitia:


Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são (AL 36).


 Fato é que, se a paróquia precisa ser lugar da iniciação à vida cristã, necessita igualmente assumir o compromisso com o contínuo aprofundamento da fé dos já iniciados, caso contrário, correria o risco de, conforme um ditado bastante brasileiro, “morrer na praia”, ou seja, todo o esforço da transmissão da fé, de iniciar na vida cristã torna-se em vão, quando não se oferecem estruturas comunitárias para viver essa mesma fé e aprofundá-la continuamente (REINERT, 2015, p. 188).

 

Conclusão

 

Se a pastoral catequética fala, com razão, de inspiração catecumenal para toda forma de iniciação à vida cristã, deve-se, com a mesma pertinência, falar de inspiração catecumenal para o todo da pastoral. A isso denominamos dimensão catecumenal transversal da pastoralidade. A inspiração catecumenal é um paradigma evangelizador, e iniciação à vida cristã é mais do que um setor pastoral da Igreja. Em tempos de crise de fé, de religiosidade líquida, não se pode simplesmente pressupor que os “iniciados” já estejam iniciados na fé e nas demais dimensões da vida cristã. Portanto, urge a cada atividade eclesial assumir renovada compreensão de iniciação. Urge, na nova etapa evangelizadora, tomar sempre maior consciência daquilo que compete à iniciação, ou seja, da sua tarefa de gerar filhos na fé e do seu esforço para tornar cristãos adultos.

 

Referências bibliográficas

 

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários. Brasília, DF: CNBB, 2017. (Documentos da CNBB, 107).

______. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019. Brasília, DF: CNBB, 2015. (Documentos da CNBB, 102).

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus/Paulinas, 2007.

FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família. Brasília, DF: CNBB, 2016.

______. Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

GEVAERT, J. Primera evangelización. CCS: Madrid, 1992.

PAULO VI. Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo.Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1975.

REINERT, J. F. Paróquia e iniciação à vida cristã: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumenal. São Paulo: Paulus, 2015.

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Ritual da iniciação cristã de adultos. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1972.

TABORDA, F. Apresentação.In: PARO, Thiago Faccini. As celebrações do RICA: conhecer para bem celebrar. Petrópolis: Vozes, 2017.

 

João Fernandes Reinert, ofm

Frei João Fernandes Reinert, ofm, mestre e doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor do Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis). Pároco da Paróquia Santa Clara de Assis, em Duque de Caxias-RJ. Autor de Pode hoje a paróquia ser uma comunidade eclesial? (Vozes),Paróquia e iniciação cristã e Inspiração catecumenal e conversão pastoral (Paulus). E-mail: frreinert@yahoo.com.br

https://www.vidapastoral.com.br/edicao/inspiracao-catecumenal-e-conversao-pastoral/

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