Inspiração catecumenal e conversão pastoral (II)
Por João Fernandes Reinert, ofm
3.2.
(Re)começar a partir
de Jesus Cristo
A
reflexão anterior não deixou margem a dúvidas sobre a lucidez da
missionariedade catecumenal em não pressupor o primeiro anúncio. Com base
nisso, torna-se mais evidente a pretensão das Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil ao enfaticamente convocar a pastoral para
“partir de Jesus Cristo” (CNBB, 2015, cap. 1). À luz da inspiração catecumenal,
esse urgente apelo pode ser lido de vários ângulos.
A
convocação ajuda a entender o cristianismo – e, consequentemente, a pastoral –
como proposta. Dois equívocos pastorais muito comuns consistem em pressupor ou
impor a fé. Em nome de uma pseudofidelidade à tradição, tende-se, por vezes, a
impor a fé, a moral, as normas, a instituição religiosa…
Propor a
fé é, sem dúvida, a chave hermenêutica das ações eclesiais que queiram estar no
processo de conversão pastoral, de saída missionária.
Propor é conduzir mistagogicamente à descoberta de Deus, é despertar, é
apresentar, é atrair, mais por testemunho do que por argumentações ou
explicações. A pastoral precisa, cada vez com maior urgência, estruturar-se
como proposta, como oferta, como processo, como redescoberta, encantamento,
apaixonamento.
Estes
três verbos – pressupor, impor, propor – apontam para três perspectivas
distintas no cotidiano da evangelização.
Ao
primeiro verbo, supor, convergem todas as expressões de pastoral de manutenção.
Supõem-se a vigência da tradição, a força da instituição, o encontro pessoal
com Cristo etc. e, em decorrência disso, negligencia-se um anúncio mais
explícito, contagiante, da proposta cristã. Cai-se facilmente na pastoral da
suposição.
A segunda
orientação, impor, expressa as tendências que ressurgem com força na
atualidade. São as tentativas equívocas de responder à crise religiosa. No afã
de recuperar o monopólio religioso perdido, tende-se a impor. Não vêm de hoje
tentativas equivocadas de resposta à crise de fé. Ganha destaque a pastoral
apologética, que, ao defender a instituição, faz frente à secularização, às outras
religiões. Trata-se de pastoral não apenas voltada à manutenção da fé, mas
também à defesa, ao embate, ao enfrentamento, por entender que as mudanças
culturais viriam abalar o catolicismo tranquilo e, consequentemente, a
tranquila instituição religiosa.
A
terceira via, propor, indica a direção da nova evangelização, porque recupera a
maturidade das origens, perdida com a cristandade. Conversão pastoral é a
concretização da passagem da pressuposição para a proposição. Não nos é
permitido, em tempos de crise religiosa, pressupor a fé, pressupor a dimensão
comunitária da fé, a consciência de que a caridade e o amor ao próximo são
constitutivos da fé e tantas outras dimensões inerentes ao cristianismo. Para a
religiosidade líquida, essas questões não são evidentes. Iniciação à vida
cristã é iniciação à totalidade do ser cristão, a qual, se não se pode
pressupor, também não se dá por imposição, mas por “atração”, por meio da
“alegria do evangelho”.
Outro
modo de ler a convocação pastoral “começar a partir de Jesus Cristo”– leitura
que, de certa forma, já apareceu neste texto – é como chamada de atenção para a
volta ao essencial da fé cristã, ao núcleo do evangelho, à Pessoa de Jesus
Cristo. A conversão pastoral tem diante de si a tarefa de resgatar a originalidade
da fé cristã. Essa conversão passa necessariamente pela distinção da essência
da fé cristã daquilo que é secundário, que só tem sentido à luz do essencial.
Não se trata, obviamente, de descartar o doutrinal, mas de perceber que o
conjunto de preceitos está a serviço da experiência da fé, e não o contrário. O
doutrinal, o ritual e o legal visam expressar e recordar um encontro primeiro,
uma experiência fundadora, do contrário s tornariam fins em si mesmos.
Muitas
são as expressões do agir eclesial desprovido do querigma. “O querigma não é
uma propaganda para ganhar visibilidade. Alguns têm denominado de querigma, por
exemplo, um anúncio que se limita a um reavivamento religioso, uma busca por
milagres, sem compromisso profético e sem o seguimento” (CNBB, 2017, n. 156).
O tempo
atual mostra-se propício à volta ao essencial. O processo de separação ou
distinção entre sociedade e cristianismo, o qual chamamos de secularização,
apresenta-se como oportunidade única para a recuperação da originalidade da fé
cristã. Chaves de leitura para entender a lógica da sociedade secular são os
conceitos de autonomia e pluralismo. A visão de mundo passa a ser plural, as
culturas são policêntricas, as fontes de sentido da realidade são igualmente
multiformes, o que significa que já não existe mais um princípio norteador para
o todo social. A autonomia das realidades sociais oferece ao cristianismo a
possibilidade de novamente ser autônomo, isto é, a oportunidade para a
comunidade dos seguidores de Cristo novamente se distinguir da sociedade, no
sentido de romper com aquela identificação social que lhes priva da identidade
e da missão de serem fermento na massa. Trata-se da volta às fontes, do retorno
aos primeiros séculos da era cristã, em que o cristianismo já era secular, isto
é, autônomo, com sua lei própria, o evangelho.
A
conversão pastoral se concretiza no resgate da identidade cristã, no tornar o
cristianismo novamente uma comunidade
alternativa. Sem a clareza da necessidade dessa distinção, sem a
volta ao essencial, a ação pastoral será vítima de saudosismos, privilégios,
acordos, benefícios, entre outras deturpações pastorais. A distinção em questão
é, portanto, potencialização para a própria identidade cristã. A autonomia das
realidades, a qual a secularização reivindica, requer do cristianismo clareza
da própria identidade, de sua lei própria (autonomia).
Conversão
eclesial é, antes de tudo, conversão de fé, volta ao essencial, com base na
qual surgem outras conversões, as saídas pastorais, a missionariedade. O
movimento mais importante da saída pastoral é, portanto, para “dentro”. Antes
de quaisquer outros movimentos, mais do que multiplicar pastorais e serviços,
a Igreja em saída aponta
primeiramente para a volta ao essencial como condição de toda ação eclesial.
- Mistagogia, paradigma de conversão pastoral
Querigma
e mistagogia são, em nosso entender, as duas colunas da inspiração catecumenal.
Nas páginas anteriores, debruçamo-nos sobre o querigma e suas implicações na
conversão eclesial e pastoral. Cabe-nos agora mergulhar na dimensão mistagógica
da evangelização. Enquanto o paradigma doutrinal tem como representante máximo
o argumento, a explicação, a doutrina, o paradigma catecumenal tem como chave
hermenêutica o querigma, a mistagogia, a experiência, a iniciação, o encontro.
4.1.
Relação entre querigma e mistagogia
Mistagogia,
antes de ser a última etapa do processo da iniciação à vida cristã de
inspiração catecumenal, é sua característica maior, do mesmo modo que “o
querigma não é somente uma etapa, mas o fio condutor de um processo que culmina
na maturidade do discipulado de Jesus Cristo” (DAp 278).
Apesar de
o último tempo do percurso catecumenal receber o nome de mistagogia, é decisivo
não perder de vista que todo o processo catecumenal é mistagógico, vivencial,
experiencial, por colocar o iniciante, do início ao fim do itinerário, em
contato vital com Jesus Cristo e com a comunidade de fé. Decorre dessa
afirmação uma possível definição de mistagogia. A palavra, de origem grega,
composta do substantivo mystes (mistério)
e do verbo agein,
tem o sentido de conduzir. Mistagogia é, portanto, o ato de
conduzir alguém ao mistério, revelado em Jesus Cristo. Refere-se a tudo
aquilo que conduz ao encontro com Cristo, que gera experiência de fé,
conversão, discipulado, missão. A mistagogia, na metodologia catecumenal, está
na linguagem, nos ritos celebrativos, na gradualidade do processo, na densidade
da experiência, na acolhida, na comunidade, no catequista, no introdutor, no
padrinho, na Palavra, nos sacramentos celebrados e vividos, enfim, está em cada
instância ou elemento que auxiliam no encontro com Cristo e com a comunidade
eclesial. Todas essas dimensões são canais de encontro e de experiência.
Querigma,
por sua vez, é a proclamação da Pessoa de Jesus Cristo, de seu mistério
salvífico, a qual não pode ser feita de qualquer modo, sob o risco de não ser
ouvida nem experimentada. A proclamação do querigma, da Boa-Nova, tem como
exigência a mistagogia; ou seja, é necessário proclamá-los mistagogicamente.
Vigora, portanto, uma relação inseparável entre querigma e mistagogia,
comparável à relação entre palavra e som.
O anúncio
querigmático não é uma proclamação doutrinarista. Ele é realizado
mistagogicamente, torna-se algo contagiante e envolvente, apaixonante,
provocativo, dinâmico, convicto; essa é a lógica, o modo do “anúncio claro e
inequívoco de Jesus Cristo” (EN 22). Há que lembrar que nem todo anúncio do
querigma tem sido mistagógico. Há formas de anúncio que não condizem com a
riqueza do conteúdo anunciado. Não há novidade em afirmar que muitos ruídos
pastorais e eclesiais dificultam, quando não impossibilitam, o eco do querigma
na vida e no coração de quem está sendo iniciado. Muitas são as expressões
pastorais dessa natureza; geralmente são proclamações autorreferenciais, focadas
mais na instituição do que na espiritualidade. São ações de preceitos, de
assimilação de verdades religiosas, obcecadas pelo ritualismo legalismo
desumanizantes. Podem estar presentes na homilia, no atendimento, na acolhida,
na formação, na liturgia, no confessionário, enfim, podem entrar por todas as
portas do ser e agir da Igreja. São atitudes ou ações pastorais por demais
predeterminadas que enquadram, quando não aniquilam, a individualidade.
4.2.
O tempo da mistagogia, o último do itinerário catecumenal, e seu significado
para a conversão pastoral
Se até
aqui enfatizamos a dimensão transversal da mistagogia na metodologia
catecumenal, cabe igualmente agora uma palavra específica sobre a mistagogia
enquanto último tempo do percurso catecumenal e sua inspiração para uma nova evangelização.
O
significado teológico e pastoral do tempo da mistagogia, o último do percurso
catecumenal, é de uma atualidade inquestionável, ainda a ser descoberta e
explorada em muitos ambientes eclesiais. Conquanto todo o itinerário
catecumenal seja mistagógico, a última etapa do processo recebe o mesmo nome,
cujos objetivos são “novo senso da fé, da Igreja e do mundo” (RICA 38),
“aprofundamento das relações com a comunidade dos fiéis” (RICA, 7d),
“conhecimento mais completo e mais frutuoso” do mistério (RICA 38).
Chama a
atenção o destaque que o Ritual
da iniciação cristã de adultos, denominado RICA, dá ao tempo
da mistagogia, à conclusão do processo de iniciação: “Para encerrar o tempo da
mistagogia, realiza-se uma celebração ao terminar o tempo pascal, nas
proximidades do domingo de Pentecostes, até mesmo com festividades externas”
(RICA 237). Não há dúvida de que igualmente o tempo da mistagogia, por meio de
seus objetivos específicos, tem algo para dizer à nova evangelização. Ele
convoca a pastoralidade para o investimento no constante processo de formação
permanente, para a continuação do acompanhamento pastoral após a administração
dos sacramentos, quando este geralmente é interrompido.
O tempo
da mistagogia inspira a evangelização a pensar a pastoral de modo mais conjunto
e gradual e superar as lacunas no acompanhamento e projetos pastorais
pós-sacramentos, as quais são consequência da herança sacramentalista, que visa
aos sacramentos em si e por si. Nessa lógica, após conquistá-los, não há espaço
para nem necessidade de aprofundamento, de continuação da formação permanente,
em vista da crescente maturação da vida cristã. Citemos como exemplo o
acompanhamento pós-matrimônio, cujo vazio é reconhecido em Amoris Laetitia:
Também
não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos,
com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas
preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do
matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da
situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são (AL
36).
Fato
é que, se a paróquia precisa ser lugar da iniciação à vida cristã, necessita
igualmente assumir o compromisso com o contínuo aprofundamento da fé dos já
iniciados, caso contrário, correria o risco de, conforme um ditado bastante
brasileiro, “morrer na praia”, ou seja, todo o esforço da transmissão da fé, de
iniciar na vida cristã torna-se em vão, quando não se oferecem estruturas
comunitárias para viver essa mesma fé e aprofundá-la continuamente (REINERT,
2015, p. 188).
Conclusão
Se a
pastoral catequética fala, com razão, de inspiração catecumenal para toda forma
de iniciação à vida cristã, deve-se, com a mesma pertinência, falar de
inspiração catecumenal para o todo da pastoral. A isso denominamos dimensão
catecumenal transversal da pastoralidade. A inspiração catecumenal é um
paradigma evangelizador, e iniciação à vida cristã é mais do que um setor
pastoral da Igreja. Em tempos de crise de fé, de religiosidade líquida, não se
pode simplesmente pressupor que os “iniciados” já estejam iniciados na fé e nas
demais dimensões da vida cristã. Portanto, urge a cada atividade eclesial
assumir renovada compreensão de iniciação. Urge, na nova etapa evangelizadora, tomar
sempre maior consciência daquilo que compete à iniciação, ou seja, da sua
tarefa de gerar filhos na fé e do seu esforço para tornar cristãos adultos.
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João Fernandes Reinert, ofm
Frei João Fernandes Reinert, ofm, mestre e doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor do Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis). Pároco da Paróquia Santa Clara de Assis, em Duque de Caxias-RJ. Autor de Pode hoje a paróquia ser uma comunidade eclesial? (Vozes),Paróquia e iniciação cristã e Inspiração catecumenal e conversão pastoral (Paulus). E-mail: frreinert@yahoo.com.br
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/inspiracao-catecumenal-e-conversao-pastoral/
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