sábado, 18 de dezembro de 2021

HISTÓRIA OU ESTÓRIA? UM CONTO DE NATAL

"Na ausência da certeza nada há de errado com a esperança” (Carl Simonton)

(*) Lindolivo Soares Moura

Dizem que o que chamamos "casualidade” não é senão a alternativa escolhida por Deus para permanecer no anonimato. Pelo sim e pelo não, o certo é que cabe ao ser humano, ou seja, a cada um de nós, discernir os tempos e sobretudo os sinais que vão tornando visível essa invisibilidade. Pascal dizia que a fé é uma espécie de aposta na existência do Divino, enquanto Unamuno, filósofo árabe, na mesma linha de pensamento afirmava que "acreditar em Deus não é senão desejar que Ele exista". 

Ao contrário, portanto, do que pensam e afirmam fanáticos e fundamentalistas, Deus está longe de ser uma unanimidade. Certos fatos, entretanto, se revelam desafiadores quando confrontados com a tarefa de se interpretá-los: fatos realmente, "fakes", ou simplesmente ficção? Ouça e analise com atenção essa pequena história - ou "estória", você decide - que ouvi contar, e tire você mesmo suas próprias conclusões.

Certos relatos afirmam que numa pequena cidade do sul do Brasil, chamada Gramado, sempre foi um tanto incomum e inusitada a forma de se celebrar e comemorar o Natal (viria daí a fama e a procura pelo "Natal de Gramado"?). Tais relatos asseguram que em dezenas de comunidades o ponto culminante das Celebrações do dia 25 de Dezembro resume-se no seguinte: em lugar da pequena imagem do recém-nascido, Jesus, são previamente convidadas todas as crianças - meninos e meninas, observe-se bem - de mesmo nome do aniversariante, a atuar como integrante do grande Presépio construído numa das laterais do interior da Igreja. Ao final da Celebração todos os presentes são convidados a se aproximar e saudar os (as) recém-nascidos(as) meninos(as) Jesus(es), reverenciá-los(as), homenageá-los(as) e entoar-lhes cânticos solenes.

Outro fato curioso, segundo tais relatos, é que, ato continuo à cantata da tradicional "Noite Feliz", entoa-se solenemente outra canção que diz: "tudo seria bem melhor, se o Natal não fosse um dia, se as mães fossem Marias e se os pais fossem Josés, e se a gente parecesse com Jesus de Nazaré". Geradora inicialmente de muitos protestos, sobretudo por parte dos menos adeptos a mudanças e inovações - "guardiães dos princípios e dos bons costumes", como se auto-denominam -  essa espécie de "transposição" foi pouco a pouco caindo na tolerância e finalmente na graça da grande maioria. A Igreja parece "vir abaixo" quando as vozes dos diversos "Jesuses" se juntam às de todos os demais presentes, em repetição a essa espécie de refrão: "...se o Natal não fosse um dia, se as mães fossem Marias e se os pais fossem Josés...".

Certas versões, entretanto, asseguram que num determinado ano e numa determinada oportunidade algo diferente e inusitado aconteceu. Antes que esse momento culminante tivesse lugar, adentrou a Igreja em verdadeira disparada um cego incrédulo que à porta se postava, e ao final da Celebração não se constrangia em recolher as moedas que lhe eram deixadas como esmola. "Parem, parem -  gritava ele - suspendam as homenagens. Há lá fora um Jesus que não conseguiu entrar, mas que se esforça e insiste em fazê-lo". Orientados pelo Celebrante, dois dos Ministros presentes se dirigiram rapidamente à porta de entrada e se depararam com o tal Jesus, que implorava por ajuda e insistia em fazer parte do grupo do(a)s recém-nascidos(as) Jesuses do Presépio. Mas havia um problema: não se tratava de um Jesus criança, mas sim de um Jesus ancião, por sinal de idade bem avançada. Consultado, o Celebrante, que àquela altura já ouvira não poucos cochichos desfavoráveis pelo fato de justo a Igreja não ter se adiantado em facilitar o acesso de tais pessoas ao seu recinto, a ordem foi expressa e taxativa: "Jesus criança ou não, tragam-no imediatamente à minha presença".

A cena que se seguiu foi hilariante, provocadora de risos e comentários. Um misto de papai Noel, Pai de Santo, Orixá ou fosse lá o que fosse, foi introduzido e desfilou triunfalmente por todo o corredor principal da Igreja, com uma alegria e um sorriso tão marotos e contagiantes, que mais parecida uma criança ou um adulto feito menino. Tudo isso, "escoltado" por dois seguranças, guarda-costas ou algo equivalente. Só faltou que os sinos repicassem naquela hora para que o ritual tivesse sido completo.

 "Abram alas, vamos, abram alas" - insistiu o Celebrante, buscando recobrar certa autoridade que por alguns instantes imaginara haver perdido. "Deem passagem ao Jesus menino mais velho que já tivemos e que acaba de chegar. Vejam quanto brilho e quanta alegria em seus olhos!".  Enquanto ouvia tais palavras, pensava consigo mesmo Jesus ancião: "mal sabe ele o que ainda está por vir e o que, todavia, me está reservado. Jerusalém que o diga!".  Apenas pensou... Mas era tanto riso e tanta alegria que não chegou a pronunciar palavra.

E lá foi ele sendo conduzido em desfile aberto pelo corredor principal, até chegar e ser colocado em meio aos(às) demais Jesuses. Os olhares de todos, incluindo o do Celebrante, pousaram então sobre ele, acompanhados de um silêncio profundo e respeitoso. Menos o olhar de uma jesus menina, olhar tristonho, que insistia em permanecer voltado para baixo como se parecesse ignorá-lo e ao que estava se passando. Jesus ancião se aproximou e depositou com delicadeza suas mãos sobre os ombros da pequenita, enquanto seu rosto e de resto todo o seu corpo como que se transfiguravam e davam lugar a um semblante condoído e um olhar cheio de compaixão.  "Pode me ver?", perguntou ele. "Não, Senhor, não posso!", respondeu quase monossilabicamente a menina. "Então como sabe que sou um senhor?".   "Não sei, Senhor!".  "Há quanto tempo você não vê?". "Desde sempre, Senhor!". "Que tal fazermos um trato, eu lhe dou meus olhos por um tempo e você passa para essa 'bendita' cadeira de rodas pelo mesmo espaço de tempo; Já estou cansado dela". "Como assim, Senhor, como vamos fazer isso? Sei que se chama Jesus, mas pelo que sei não pode fazer milagres como o Verdadeiro. Se pudesse, com certeza já teria se livrado de sua cadeira".

Nenhum dos presentes parecia entender bem o que estava acontecendo, mas ninguém ousava repreender Jesus ancião, questiona-lo, e menos ainda exigir que se calasse. Até mesmo o Celebrante parecia haver se esquecido de seu lugar e de sua função na Celebração. Surpreso, permaneceu atento e num silêncio obsequioso, possibilitando assim que aquele estranho, mas comovente diálogo tivesse continuidade.

"Todos podemos operar milagres", continuou Jesus ancião, "não é preciso ser um Deus para isso. Basta que a gente 'se pareça com Jesus de Nazaré'.  Não é isso que diz a canção que vocês repetem a cada ano no Natal?".  "Sim, Senhor, e eu creio nisso, creio no que diz a canção!".  "0ra, ora - retrucou Jesus ancião - mas se você crê que se parecermos com Jesus de Nazaré, tudo pode ser diferente e melhor, não é melhor poder ver que continuar sem enxergar?". "Sim, Senhor, e foi com isso que sempre sonhei, com Jesus me curando e me deixando ver, e continuaria desejando mesmo que para isso tivesse que viver a vida inteira sentada sobre uma cadeira de rodas!".  "Um milagre de cada vez, replicou Jesus ancião, um milagre de cada vez. Quem sabe com o tempo você não consiga um outro milagre e então vai poder ver e andar sem a ajuda de ninguém, de quem quer que seja. E então, o que me diz, aceita minha proposta?".  "Seria maravilhoso, Senhor, mas falando sério, acha mesmo que se parece tanto com Jesus de Nazaré, que poderá operar milagres e tornar o mundo e a mim melhores, como disse?".  "Acho, não, tenho certeza. Mas isso só é possível àquele que crê. E você já me deu provas de sua fé. Portanto, que tal rezarmos juntos?".

Nesse momento uma brisa amena e agradável tomou conta do lugar em que se encontravam. Uma espécie de pássaro ou pomba, cuja presença até aquele momento ninguém havia notado, voava de um lado para outro por sobre os presentes. Como que impulsionados por uma força estranha todos dobraram simultaneamente os joelhos, passando a ouvir vozes e cantos de onde e de quem não se sabia bem dizer. Luzes em forma de raios estonteantes penetravam de todos os lados, lugares e frestas. De repente Jesus ancião se ergueu, elevou bem alto aos céus suas mãos, e se pôs a pronunciar solenemente a seguinte oração:  "Pai, Senhor do céu e da terra, Eu sei que Tu me vês, Eu sei que Tu me ouves! Sei também que tudo Te é possível. Tu sabes que que Eu Te amo, Pai, como também sabes, pois conheces, o desejo desta tua filha e o amor que ela tem por Ti. Por isso Eu Te suplico: que venha sobre ela a Tua graça, e faças descer sobre ela o Teu Espírito! Espírito de poder e força! Que o Teu poder e a Tua glória se manifestem, Pai:  QUE ESTA TUA FILHA POSSA VER!  Seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu!".

De nada mais se ouviu falar ou contar do que ali aconteceu. De forma estranha e curiosa, como se houvessem combinado entre si por alguma razão, todos, inclusive aquela criança, decidiram guardar para si em seus corações o que ali havia se passado e o que haviam presenciado. E quando ainda assim alguém insistia em perguntar sobre Jesus, o ancião da cadeira de rodas, ou saber notícias de Jesus, a menina cega que passara a ver, ninguém se arriscava a dizer algo. Era como se pairasse sobre todos uma nítida e vívida recordação de um Natal tão maravilhoso, e de fatos e coisas tão grandiosos, que o inefável e o indescritível pareciam haver se apoderado de todos. Ninguém, absolutamente ninguém, ousava sequer afirmar terem tais fatos e tais acontecimentos realmente se passado.

O que, todavia, estava ali, bem aos olhos de todos, e ao alcance de quem desejasse ver e constatar, é que uma menina antes cega passara a ver, um pedinte incrédulo a acreditar, e uma cidade inteira passara a ver, comemorar e celebrar o Natal de uma maneira como em nenhuma outra antes se fizera. Se para Jesus menina outros milagres teriam ocorrido, ou estariam por acontecer, só ela e mais ninguém saberia dizer. Também isso e outras coisas ela decidira guardar apenas para si, em seu coração. De Jesus ancião os relatos não poderiam ser mais controvertidos. Uns afirmam que Ele sequer existiu; outros atestam que Ele, numa espécie de ascensão fantasmagórica, simplesmente havia subido ao céu em retorno de onde viera; outros ainda, que Ele continua mais vivo do que nunca, podendo ser facilmente encontrado ora em "meio" ora "em" cada um de nós. O certo é que ano após ano, única e exclusivamente no dia de Natal, essa história - ou seria "estória", um simples conto de Natal? - é contada e recontada. Não só esta, mas também inúmeras outras, "histórias" estranhas de papais e mamães noéis, duendes, florestas encantadas e tantos outros personagens, reais ou não, que pelo seu poder mágico e encantador continuam a despertar o melhor de cada um de nós.

L.S.M., Natal de 2021

(*) Lindolivo Soares Moura

(**) Possui graduação em teologia pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha, ES. Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente, cursou a pós-graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.

(*) Reflexão enviada pelo WhatsApp.

(**) https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura

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