Ir. Valéria Andrade Leal
Ouvimos
repetidas vezes que a Quaresma é tempo de conversão. De jejum, esmola e oração.
É um retiro espiritual em que são fortes as mortificações e penitências e, inclusive,
nos aproximamos de maneira especial do sacramento da confissão. A conversão é pessoal,
é um movimento do coração, ou seja, da pessoa inteira, para uma mudança de projeto
de vida para que esteja mais alinhado, conectado com o projeto de vida de Deus.
Diante disso, alguns dirão: CF na quaresma? Não são coisas diferentes? Como estes
dois tempos se interrelacionam? Em primeiro lugar precisamos nos lembrar de que
CONVERSÃO, para o cristão, tem como referência o Evangelho, ou seja, a vida e a
pregação de Jesus que nos revela o Pai, no Espírito por seus gestos e palavras.
Toda mudança de vida – conversão, em toda espiritualidade cristã tem em vista a
pessoa de Jesus como modelo. “Aprendei de mim” – “sede discípulos meus” Ele nos
diz, “que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Não apenas imitamos o gesto
de Jesus de ir ao deserto rezar e jejuar, mas o imitamos, aprendemos dele, o jeito
de viver, sua opção por fazer a vontade do Pai incondicionalmente. Foi esta opção
que O levou ao deserto assim como O levou a tomar dezenas de outras atitudes. Somos
chamados a imitar a Jesus nas suas opções fundamentais, ou seja, viver movido por
Seu Espírito. Afinal, o Evangelista Mateus diz que Jesus “foi conduzido ao deserto
pelo Espírito” (Mt 4,1). Isso significa dizer que, vivermos a quaresma em comunhão
com Jesus 40 dias no deserto, como nos motiva a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas,
nos une não apenas ao gesto exterior, mas nos coloca em sintonia com as motivações
de Jesus, com sua opção pela Vontade de Deus. Esta opção fará Jesus vencer as tentações
do deserto que remetem as tantas “tentações” que temos, de nos colocarmos fora do
projeto de Deus para nós. Toda a vida cristã, o seguimento a que Cristo nos convida,
consiste neste processo de aprender dEle a realizar a vontade do Pai para nós, para
toda a humanidade. Como lembra Bento XVI (Audiência Geral, 22/02/2012), Jesus esteve
diante da decisão de escolher entre “um messianismo de poder, de sucesso, ou um
messianismo de amor, de doação de si”. A quaresma é tempo de retomar, avaliar e
reavivar nossa opção por estar no seguimento do Mestre, escolhendo com ele a vontade
de Deus sobre nós. Diante disso, podemos nos perguntar qual é o projeto de Deus?
O que Ele espera de nós? Como podemos imitar os gestos de Jesus no concreto da nossa
vida, nesta condição histórica em que nos encontramos? Esse é o desafio da vida
cristã. Papa Francisco sublinha a importância do discernimento na busca da santidade.
Na Gaudete et exsultate, 167, ele insiste que é uma necessidade imperiosa, urgente,
porque a santidade consiste em reconhecer para onde o Espírito nos guia, assim com
a Jesus. Quando olhamos para vida e a missão de Jesus encontramos critérios de discernimento,
pois o ponto de chegada e de partida é Ele. Seu jeito de ser, pensar, agir, seu
sentir são modelos para nós, porque Ele é o primogênito. Ele nos ensina a ser plenamente
humanos, assim como foi sonhado pelo Criador ao insuflar Seu sopro de vida em nós.
Então, olhemos para Jesus. Ele vai ao deserto, sente a condição humana de fome,
cansaço, sede... experimenta as tentações que nos acometem e volta para junto das
pessoas. Ao voltar, convida, cura, ensina, convive, sente compaixão, se aproxima
das pessoas estabelecendo encontros profundos de interioridades. Esses encontros
geram mudanças radicais: o cego volta a ver, o surdo a ouvir, o morto volta a viver...
Outras vezes busca lugares desertos para descansar e estar com o Pai, nos dizem
os evangelistas. Deserto e multidões se alternam, ora se entrelaçam e sempre resultam
em “mais vida”, “mais esperança”, compaixão. Movido pela compaixão Jesus cura para
reintegrar, ressuscita para consolar, proteger, multiplica o pão e dá tudo de si
para que ninguém fique condenado ao isolamento, à fome, à sede, mas para que todos
sejam integrados ao banquete da vida que está preparado para todos. A quaresma para
nós não é deserto do isolamento, mas do silêncio donde brota a experiência de encontro
com o Pai, que nos faz compassivos, à semelhança do Mestre. Logo, caminhando com
Ele, não podemos passar ao largo daqueles a quem Ele se acerca. A Campanha da Fraternidade
nos ajuda a fazer este exercício. Quaresma é exercício de santidade. Santidade é
assumir o projeto de Deus tal como nos mostra Jesus: até as últimas consequências,
mas a partir das coisas pequenas, como nos ensina a vida de tantos santos e santas
que dedicaram suas vidas cuidando de doentes, órfãos, gerando transformação social,
oferecendo educação, inclusive. Se vamos com Jesus ao deserto, precisamos acompanhá-Lo
em sua opção preferencial por aqueles que sofrem, condenados a desertos de pobreza,
desemprego, injustiças, desesperança... As reflexões propostas a cada ano na CF
nos ajudam a estar com Jesus nos desertos da vida onde Ele hoje está, porque é isso
que nos mostra o Evangelho, Jesus se coloca ao lado daqueles a quem ninguém quer
estar: pobres, pecadores, cobradores de impostos. Se nos colocamos com Jesus no
deserto, o deserto nos abre a mente e o coração para a fraternidade universal, assim
como Jesus, por causa do projeto do Pai que é salvar, que é dar “vida em abundância”
(Jo 10,10). Quaresma é tempo propício para olharmos para dentro de nós e vermos
se o deserto nos torna capazes de ir à Galileia, à Cafarnaum, à Jerusalém, Betânia,
Caná, Naim onde o povo clama por justiça, pão, ensino. A CF nos ajuda a identificar
estes lugares “sagrados” no hoje e nos coloca em movimento de saída e em direção
às tantas realidades de nossa vida e sociedade que contradizem o projeto do Pai
pelo qual Jesus deu a vida. Jejum, esmola e oração é o tripé que nos sustenta na
boa e santa vivência da quaresma. Que tenhamos o discernimento necessário para não
deixar em desequilíbrio este tripé. Que nos deixemos ajudar por nossa mãe Igreja,
que através da CF, nos mostra onde e como concretizar o sentir e agir de Jesus no
hoje da história.
https://campanhas.cnbb.org.br/campanha/campanha-da-fraternidade-2022#gallery-5
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