A
riqueza é um bem quando ajuda os outros
O papa prefacia o livro do cardeal Müller sobre a
pobreza e a missão da Igreja
Quem
de nós não se sente desconfortável até mesmo com a palavra “pobreza”? Há muitas
formas de pobreza: física, econômica, espiritual, social, moral. O mundo
ocidental identifica a pobreza principalmente com a falta de poder econômico e
enfatiza negativamente essa condição. Seus governos, aliás, se baseiam
essencialmente no enorme poder que o dinheiro tem hoje, um poder aparentemente
superior a qualquer outro. É por isso que a falta de poder econômico significa
irrelevância política, social e até mesmo humana. Quem não tem dinheiro só é
levado em conta na medida em que pode servir a outros fins. Há muitas pobrezas,
mas é a pobreza econômica que é vista com mais horror. Esta é uma grande
verdade. O dinheiro é um instrumento que, de alguma forma, assim como a propriedade,
prolonga e aumenta as capacidades da liberdade humana, permitindo-lhe operar no
mundo, agir, dar frutos. Em si mesmo, é um instrumento bom, como quase todas as
coisas de que o homem dispõe: é um meio que expande as nossas possibilidades.
No entanto, esse meio pode se voltar contra o homem. O dinheiro e o poder
econômico podem ser um meio que afasta o homem do homem, confinando-o num
horizonte egocêntrico e egoísta.
A
própria palavra aramaica que Jesus usa no Evangelho, “mammom”, ou seja, tesouro
escondido (cf. Mt 6,24; Lc 16,13), é significativa: quando o poder econômico é
um instrumento que produz tesouros que guardamos apenas para nós mesmos,
escondendo-os dos outros, ele produz iniquidade, perde o seu originário valor
positivo. A palavra grega usada por São Paulo em sua Carta aos Filipenses (cf.
Fl 2, 6), “arpagmos”, também remete a um bem que se mantém zelosamente só para
si, ou mesmo o fruto do que se roubou de outros. Isso acontece quando os bens
são usados por homens que conhecem a solidariedade apenas para o círculo,
pequeno ou grande, dos próprios conhecidos, ou quando se trata de recebê-la,
mas não de oferecê-la. Isso acontece quando um homem, tendo perdido a esperança
no horizonte transcendente, perdeu também o gosto da gratuidade, o gosto de
fazer o bem pela simples beleza de fazer o bem (cf. Lc 6, 33).
Já
quando o homem é educado para reconhecer a fundamental solidariedade que o liga
a todos os outros homens, e disso quem nos lembra é a Doutrina Social da
Igreja, então ele bem sabe que não pode guardar para si os bens de que dispõe.
Quando vive habitualmente na solidariedade, o homem sabe que o que nega aos
outros e retém para si mesmo se voltará mais cedo ou mais tarde contra ele
próprio. No fundo, Jesus alude a isto no Evangelho quando acena à ferrugem e à
traça que arruínam as riquezas acumuladas de maneira egoísta (cf. Mt 6, 19-20;
Lc 12, 33).
Quando,
porém, os bens de que se dispõe são utilizados não apenas para satisfazer as
próprias necessidades, eles se multiplicam e se espalham, dando muitas vezes um
fruto inesperado. Há uma ligação original entre o lucro e a solidariedade, uma
circularidade entre ganho e dom, que o pecado tende a romper e ofuscar. É
tarefa dos cristãos redescobrir, viver e anunciar a todos esta valiosa e original
unidade entre lucro e solidariedade. Como o mundo de hoje precisa redescobrir
esta bela verdade! Quanto mais o mundo concordar em acertar as contas com este
fato, mais diminuirão as pobrezas econômicas que tanto o afligem.
Mas
não podemos nos esquecer de que não existem apenas as pobrezas relacionadas com
a economia. É Jesus mesmo quem nos lembra, advertindo-nos, de que a nossa vida
não depende apenas “dos nossos bens” (cf. Lc 12, 15). Originalmente, o homem é
pobre, necessitado e indigente. Quando nascemos, precisamos, para viver, dos
cuidados dos nossos pais, e, assim, em cada época e fase da vida, cada um de
nós nunca será capaz de prescindir completamente da necessidade e da ajuda dos
outros, nunca será capaz de se livrar do limite da impotência diante de alguém
ou de alguma coisa. Esta também é uma condição que caracteriza o nosso “ser
criaturas”: não fomos feitos por nós mesmos e, sozinhos, não podemos nos
proporcionar tudo aquilo de que precisamos. O leal reconhecimento desta verdade
nos convida a permanecer humildes e a praticar com coragem a solidariedade,
como virtude indispensável ao próprio viver.
Em
todo caso, dependemos de alguém ou de algo. Podemos viver esta realidade como
uma fraqueza da vida ou como uma possibilidade, como um recurso para lidarmos
com um mundo em que ninguém pode prescindir do outro, em que todos somos úteis
e valiosos para todos, cada um à sua maneira. Não há como descobrir isto sem
adotar uma práxis responsável e responsabilizadora, em vista de um bem que é,
então, de verdade, indissociavelmente pessoal e comum. É evidente que essa
práxis só pode surgir de uma nova mentalidade, da conversão a uma nova maneira
de olharmos uns para os outros! Só quando o homem se concebe não como um mundo
fechado em si mesmo, e sim como alguém que, pela sua natureza, está ligado a
todos os outros, percebidos originariamente como “irmãos”, é que é possível uma
práxis social em que o bem comum não é mera palavra vazia e abstrata!
Quando
o homem se concebe e se educa para viver assim, a originária pobreza criatural
não é mais vista como uma desvantagem, e sim como um recurso em que aquilo que
enriquece cada um e é doado livremente se torna um bem e um dom para o
benefício de todos. Esta é a luz positiva com que o Evangelho nos convida a
olharmos para a pobreza. É esta luz que nos ajuda a entender por que Jesus
transforma esta condição em uma autêntica “bem-aventurança”: “Bem-aventurados
vós, os pobres!” (Lc 6, 20).
Mesmo
fazendo tudo isso que está em nosso poder e evitando todas as formas de irresponsabilidade
para com as nossas próprias fraquezas, não tenhamos medo de nos reconhecer
necessitados e incapazes de nos dar tudo aquilo de que precisamos, pois,
sozinhos e apenas com as nossas forças, não podemos superar todos os limites.
Não tenhamos medo desse reconhecimento, porque Deus mesmo, em Jesus, se curvou
(cf. Fil 2, 8) e se curva sobre nós e sobre a nossa pobreza, para nos ajudar e
nos dar os bens que por nós mesmos nunca poderíamos ter.
É
por isso que Jesus elogia os “pobres em espírito” (Mt 5, 3), ou seja, aqueles
que olham assim para as suas necessidades e, necessitados que são, se confiam a
Deus, sem medo de depender dele (cf. Mt 6, 26). De Deus podemos obter aquele
Bem que nenhum limite pode obstaculizar, porque Ele é mais poderoso que qualquer
limite e nos deu mostra disso ao vencer a morte! Deus, sendo rico, se fez pobre
(cf. 2 Cor 8, 9) para nos enriquecer com os seus dons! Ele nos ama; cada fibra
do nosso ser lhe importa; aos seus olhos, cada um de nós é único e tem um valor
imenso: “Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados… Vós valeis mais
do que muitos pardais” (Lc 12 ,7).
https://pt.aleteia.org/2020/11/05/a-riqueza-e-um-bem-quando-ajuda-os-outros/
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