Fundamentos, heranças e dimensões 30 anos depois do Decreto “Ad Gentes”
(I)
Por Pe. Paulo Suess
A Igreja é sujeito e objeto da fé: sujeito enquanto “Povo de Deus”,
objeto enquanto “mistério” e “sacramento de salvação”. Sua meta é o Reino de
Deus, Reino de justiça e solidariedade, de misericórdia e paz. O anúncio e o
advento do Reino colocam a Igreja permanentemente em estado de penitência e
missão. A missão da Igreja, que emerge de sua origem e estrutura trinitária, é defender
a plenitude da vida de todos e a integridade da vida de cada um. Essa luta pela
vida que Deus nos deu inclui os espaços particulares e regionais, e, ao mesmo
tempo, ultrapassa todas as fronteiras geográficas, étnicas e culturais.
A missão em defesa da vida envolve a imagem de Deus. É a luta por algo
absoluto. A missão é universal e urgente como a vida (I). Esta missão, porém,
não envolve somente uma imagem abstrata de Deus, mas um Deus Emanuel que se
encarnou no mundo em Jesus de Nazaré. Por isso a missão é histórica. Nas
sandálias dos missionários há poeira e sangue. A inculturação bem-sucedida de
ontem, hoje pode representar um peso morto (II). A missão estabelece relações
novas. A missão é relacional e multidimensional como as pessoas e os grupos sociais.
Segundo seus interlocutores, ela muda seu discurso, sua metodologia, suas
prioridades. A prática missionária, além de ser universal e contextual, é
também sempre específica (III).
I.
FUNDAMENTOS
TEOLÓGICOS
A Igreja é Povo de Deus, comunidade constituída por
comunidades que lutam pela vida a partir de sua fé. Essa é a sua missão. Ela
decorre de sua origem e estrutura trinitária.
A “natureza missionária” da Igreja tem sua origem no envio do Filho e na missão
do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai (cf. AG 2). Sua estrutura é
trinitária porque ela é “Povo de Deus”, “Corpo do Senhor” e “Templo do Espírito
Santo” (LG 17).
“Povo de
Deus” quer dizer “povo eleito por Deus”. Sua “eleição” não significa
“exclusividade”, mas “universalidade”. O “hálito de vida” que Iahweh-Deus
insuflou na “argila do solo” para transformá-la num ser vivente “à sua imagem”
(Gn 1,26s; 2,7) não é privilégio de uns poucos. Desde a criação, a missão —
enquanto luta pela vida segundo a imagem de Deus — tem um destino universal. É
uma luta micro e macroestruturalmente articulada. A missão em defesa da vida
segundo a imagem de Deus é uma luta por algo absoluto. Por isso ela é vinculada
ao monoteísmo, ao Deus único que revelou em Jesus Cristo a superabundância da
graça. A vida não pode ser defendida por deuses exclusivos, que se combatem
entre si, nem por ídolos projetados por cabeças humanas. Ao afirmar a
universalidade da missão da Igreja Povo de Deus, defendemos a abertura e não
exclusividade de contextos, sistemas, grupos humanos e do próprio Deus. Por
isso podemos dizer que, através da Igreja, “todo o gênero humano” é chamado a
constituir-se Povo de Deus para restaurar o mundo em Jesus Cristo (cf. LG 1; 3;
28; AG 4). Os projetos históricos dos povos estão relacionados ao projeto de
Deus que é o Reino.
A missão
da Igreja no mundo é convocar a humanidade para a defesa da vida das criaturas
e da criação de Deus; convocar para a libertação do mundo. Essa missão de
“convocação” e “restauração” representa um exercício permanente de “abertura” e
“inovação”; uma luta histórica contra a “exclusão” e o “conformismo”. A missão
é o “sopro” que dá vida à “argila” teológica, pastoral e institucional da
Igreja. A missão não é apenas um eixo do “ser” eclesial, nem mero “departamento
pastoral”, mas fonte e princípio de vida. Isso dizemos ao afirmar que “o
Espírito Santo é o protagonista de toda a missão eclesial” (RM 21). Ele — “pai
dos pobres” — rejuvenesce, purifica e renova a Igreja (cf. LG 4). Sua missão no
mundo começa com sua conversão aos pobres.
1. Caminhos de aproximação
O
significado da missão se esclarece na relação entre Deus e a humanidade. Essa
relação é uma história de aproximação, comunicação, convocação e solidariedade.
Ela é sempre ameaçada pela ruptura do pecado: pelo distanciamento e pelo
fechamento, pela dispersão e pelo egoísmo. Segundo a tradição da Igreja, o
conjunto dos povos vive — desde a arrogância monocultural de Babel (cf. Gn 11)
—, desarticulado na confusão linguística, na dispersão geográfica e isolados entre
si, sem Iahweh como interlocutor. A confusão e a dispersão marcam, segundo os
escritores da Bíblia, e, mais tarde, os Santos Padres, o início da escuridão e
perversão religiosa do politeísmo e da idolatria, portanto, o início do
paganismo. Os pagãos vivem na dispersão geográfica, na confusão linguística e
na escuridão religiosa.
Repetidas vezes os missionários comparam a situação
linguística das Américas com a “confusão de Babel”. “Na antiga Babel houve
setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de
cento e cinquenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega”, lamentava o
padre Antônio Vieira em 1662[1]. “Aquilo que os gentios imolam, eles o imolam aos
demônios” (1Cor 10,20). Nessa situação, Deus Iahweh está sem interlocutor
autorizado. Assim termina a proto-história do povo de Israel. A confusão de
Babel lembra a confusão do “princípio”, quando a terra ainda estava no caos e a
trevas cobriam o abismo (cf. Gn 1,2).
Os autores bíblicos descrevem lahweh co um Deus das
Alianças, do diálogo, do perdão e Palavra (do Verbo). Nunca se produziu uma
ruptura total entre Deus e a humanidade. A desgraça de Babei se converteu,
através de Abraão, em graça, bênção e promessa para a humanidade
(cf Gn 12). Em Abraão — homem da fé e do caminho — Deus elegeu um novo
interlocutor e retoma a história com a humanidade. Mas o “antissacramento” da
ruptura continua como ameaça no interior do próprio povo eleito. Está presente
na idolatria em torno do bezerro de ouro, na ruptura do exílio, no gueto
fundamentalista em torno da Lei e do templo dos que voltaram da
Babilônia até a crise de identidade da Igreja pós-pascal, por causa do estatuto
teológico dos pagãos. Como justificar a composição do Novo Israel por Judeus
circuncisos, segundo a Lei de Moisés, e pagãos juramentados “apenas” segundo a
Lei de Cristo? A ruptura entre Deus e seu próprio povo e as rupturas no
interior deste povo eram, e continuam sendo, ameaças concretas. E a ruptura tem
um nome comum: pecado pessoal, social e institucional (cf. Medellín 2,15
e DEV 44). E pecado significa “morte”. Seu autor é o diabo, que “é
pecador desde o princípio” (1Jo 3,8). Por sua “inveja entrou a morte no mundo”
(Sb 2,24).
2. Mistérios de libertação
A história de salvação é uma história de
libertação. Nos grandes mistérios desta história lembramos e celebramos um
longo processo histórico, em que Deus realiza sua missão libertadora na
aproximação ao seu povo, na costura das rupturas, na libertação da humanidade.
Já as imagens da criação mostram essa libertação: a criação do mundo
a partir do caos, o discernimento; entre trevas e luz, e a libertação do barro
pelo espírito. A libertação sempre é um processo de criação, de discernimento e
de definição e assunção de um destino novo. No Verbo encarnado o Deus criador
se contextualiza como Emanuel, como “Deus conosco” prometido ao longo da história
(Is 7,14: Mt 1,23; 28,20). A vida de Jesus de Nazaré — desde o presépio até a
cruz (Fl 2,6ss) —, revela a proximidade de Deus para com a humanidade na sua
radicalidade libertadora. O caminho que reconduz a humanidade — de sua
dispersão, confusão e escuridão — ao Pai passa pela encarnação do Filho. Nele
se cumpriu o que foi dito pelo profeta Isaías: “O povo que jazia nas trevas viu
uma grande luz” (Mt 4,16). Ele é o mediador de uma Nova Aliança (Hb 9,15;
12,24) e de um caminho para uma vida nova (Jo 14,6).
A aproximação de Jesus-Emanuel (Deus salva/Deus
conosco) culmina na doação redentora da vida “a fim de que aqueles que vivem
não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles”
(2Cor 5,15). Eis a “natureza missionária” da Igreja! “Ela mesma se edifica como
Igreja de Deus quando coloca no centro de suas preocupações não a si mesma, mas
o Reino que ela anuncia como libertação de todos (…) para que vivam a plena
comunhão com Deus e entre si”[2]. A Igreja não vive para si, mas para servir a
outros povos e ao mundo. Sua condição é a liberdade e a dignidade que lhe
conferiu seu criador; sua lei é o mandamento novo de Jesus; sua meta é o Reino
de Deus (cf. LG 9). No Espírito Santo é enviada para articular universalmente
os povos numa grande “rede” (cf. Jo 21,11) de solidariedade.
Em
Pentecostes acontece, na consciência da Igreja primitiva, a reversão definitiva
de Babel. Pentecostes responde à dispersão e desarticulação pelo envio à
articulação universal e ao diálogo contextual que faz a todos entender as
maravilhas de Deus a partir de seu próprio lugar cultural. “Foi Deus quem nos
tornou aptos a ser ministros de uma Nova Aliança, não da letra, e, sim, do Espírito,
pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida” (2Cor 3,6).
A
“natureza missionária” da Igreja se revela num processo abrangente de luta pela
vida e contra o pecado. É um processo de contextualização de uma mensagem
universalmente libertadora que compreende a unidade da humanidade como
articulação de sua diversidade. A assunção dessa diversidade acontece nas
diferentes comunidades e Igrejas locais. Do envio nascem comunidades pascais
que tentam contextualizar a utopia do primeiro dia da nova criação. Das
comunidades nasce o envio. A missão, com seus dois movimentos, a diástole do
envio à periferia e a sístole que convoca, a partir da periferia, para a
libertação do centro, é o coração da Igreja. Sob a senha do Reino, propõe um
mundo sem periferia e centro.
3. Povo de peregrinação
A missão é expressão da transitoriedade da Igreja,
de sua caminhada histórica e peregrinação escatológica, de seu caráter diaconal
e instrumental. A Igreja tem um início e um fim. Suas realizações históricas
são relativas, em frente ao Reino. Necessitam, para não se tornar “ossos
ressequidos”, permanentemente da “purificação”, “inspiração” e “animação” do
Espírito. Pobres sinais marcam sua trajetória: o vazio, a abertura, a partilha,
a ruptura e a caminhada. A caminhada engloba tudo isso: a “leveza do ser”, a
pobreza, a abertura para o novo, a gratuidade da partilha, a ruptura com os
sistemas e com os caminhos pisados. O presépio e o sepulcro estão vazios; a
porta do cenáculo está aberta; a genealogia, interrompida pelo Espírito. A
expulsão de Jerusalém marca o início da missão. As sandálias do pescador
perseguido estão com manchas de sangue. Quem nasce e renasce aos pés da cruz,
na fuga e na peregrinação, desconfia dos brilhantes falsos do poder e dos
vencedores. Os cristãos “moram na própria pátria, mas como peregrinos. (…) Toda
terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha”[3]. A Igreja não tem pátria, nem cultura, nem é dona
de verdades. Ela é serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal.
Na
história da salvação, a Igreja é um “entreposto” e um “entretempo”. Por isso,
sua missão se realiza em certa urgência escatológica. O anúncio do Reino,
através da realização do “novo mandamento”, é uma questão urgente, de vida e
morte. A missão não pode esperar para amanhã porque a vida não pode esperar. “A
caridade de Cristo nos compele” (2Cor 5,14) a destruir as estruturas da morte,
interromper a lógica dos sistemas e questionar a lentidão das burocracias. A
vida é sempre para hoje.
II.
HERANÇAS HISTÓRICAS
A palavra “missão” abrange um campo semântico muito
vasto, que inclui “tarefa”, “envio”, “testemunho”, “diálogo” e”evangelização”.
Os diversos termos descrevem desdobramentos diferentes da natureza missionária
da Igreja. Nos primórdios do cristianismo, “missão” era, basicamente,
“missão ad gentes”. Hoje nos perguntamos se a missão ad
gentes continua como a missão da Igreja — uma espécie de “estação
central” pela qual passam todos os trens de sua missionariedade — ou se ela é
apenas uma das múltiplas atividades missionárias. Para poder decidir essa
questão, devemos olhar para a evolução do conceito “missão” junto às diferentes
práticas históricas. De antemão descartamos um divisor de águas entre “missão”
e “diálogo”. “Missão” sempre inclui “diálogo”. E “diálogo” nunca é somente uma
“conversa técnica de cientista de religião”, mas um testemunho engajado, a
partir de uma experiência de fé e esperança.
Atrás da expressão “missão ad gentes” está
uma visão que o cristianismo herdou do povo de Israel. Este se considerou povo
eleito e Povo da Aliança e chamou os outros povos “gôjîm” (AT), “éthnä”
(LXX e NT), “gentes” (Vulgata) ou “pagãos”. Também os primeiros cristãos se
consideravam “povo eleito”, o novo Israel. Dividiram a humanidade em duas
parcelas, em “laós”, Povo de Deus, e em “éthnä”, “grupos
étnicos” (gentes). Quem não pertencia ao povo eleito era
considerado “gentio” e “pagão”. O sinal visível de pertencer ao Povo de Deus
não era mais a circuncisão, mas o batismo. Por conseguinte, categorizaram o
mundo em batizados (o “Novo Israel”, a “Igreja-Povo-de-Deus”), circuncisos (o
“Antigo Israel”, os judeus) e em não batizados/não circuncisos (gentes).
Essa visão dualista do mundo é uma herança da literatura e prática apocalíptica
que, ao longo da história, é uma companheira fiel do cristianismo. Por outro
lado, é resultado de sua primeira inculturação no mundo helenístico. A divisão
entre um mundo dos “salvos” e dos “condenados” está em certa tensão com o
ensinamento de Jesus, que se pronunciou contra a separação entre trigo e joio
antes do dia da colheita (cf. Mt 13,24ss). O Reino é o fermento do conjunto,
não uma parte da massa.
O cristianismo primitivo se espalhou, sobretudo,
nos centros urbanos do Império Romano. Os interioranos — os pagani —
que em geral não falavam a koinä — a língua franca, do
Império, e que, ao mesmo tempo, foi a língua da evangelização —, tornaram-se
sinônimo de não batizados, pagãos. A palavra “pagão”, além de designar “não
batizados”, teve também uma conotação de “sincretismo religioso” e de “atraso
cultural”. Os pagãos ainda não tinham assimilado a suposta superioridade
religiosa e cultural do Império.
Desde o
início, os escritos do Novo Testamento e dos Santos Padres refletem uma
contradição em frente ao paganismo. Por um lado, os pagãos foram considerados
radicalmente perdidos nas trevas de sua ignorância religiosa e maldade; por
outro lado, sua maneira de viver representava uma “preparação evangélica” e
“uma pedagogia para Cristo”. Entre estes dois polos moveu-se toda a história da
missão, às vezes destruindo, e, às vezes, assumindo antigas tradições culturais
e religiosas dos povos evangelizados. De um modo geral, podemos dizer que,
quando a “missão” esteve atrelada ao poder — como na cristandade
latino-americana —, a política ditou as regras do jogo também no campo da
evangelização. Diga-se de passagem que, na história da Igreja, grandes áreas
geográficas nunca se “converteram” sem vinculação da ação missionária ao poder
político da respectiva região. A “conversão” religiosa, em grande escala, era
normalmente acompanhada por uma “rendição” ou “assunção” política.
O Vaticano II afirma a necessidade da fé, do
batismo e da Igreja, mas, assegura também a “liberdade religiosa” e admite que
os “que buscam a Deus com coração sincero (…) podem conseguir a salvação
eterna” (LG 16; cf. 14). A tendência fundamentalista que hoje está presente em
quase todas as religiões e continentes, mostra, porém, que a volta à barbárie
religiosa sempre é possível. Como navegar entre as pedras do relativismo e do
fundamentalismo? A questão religiosa não pode ser tratada isoladamente. No
“Mundo dos Dois Terços”, em resposta à sua exclusão, dispersão e
desorganização, a missão universal da Igreja significa convocação, articulação,
libertação. A “opção preferencial pelos pobres” (Puebla, 1132.1134-1165)
é o melhor critério para discernir entre o “vale tudo” de um pluralismo ou
relativismo religioso sem prioridades e um fundamentalismo com opções erradas.
____________________________
[1] Vieira, Antônio, “Sermão da epifania”,
in Sermões, Porto, Lello & Irmão, 1959, vol. 1, tomo 2,
I/4, p. 24.
[2] CNBB, Diretrizes gerais da ação
evangelizadora da Igreja no Brasil: 1995-1998, São Paulo, Paulinas, 1995,
nº 94 (DGAE/95).
[3] “Carta a Diogneto”, V/5, in Padres
Apologistas, Paulus, São Paulo, 1995, vol. 2, pp. 9-30.
[4] Conselho pontifício para a promoção da
unidade dos cristãos, Diretório para aplicação dos princípios e normas
sobre o ecumenismo, São Paulo, Paulinas, 1994, nº 172.
[5] Conselho pontifício para o diálogo
inter-religioso/Congregação para a evangelização dos povos, Diálogo e
anúncio, Petrópolis, Vozes, 1991.
[6] Diretório, 1.c., nº 3.
[7] DGAE/95, nº 158 e 227.
(Continua no próximo Domingo...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário