A
PASTORAL DA PALAVRA (III)
4 – A
Pregação: Ação Litúrgico-Celebrativa
1. No
íntimo da liturgia
Com
relação à homilia existe hoje uma consciência bem clara: ela é a pregação que
ocorre dentro da liturgia e, de modo especialíssimo, na Santa Missa.
A noção
conciliar de homilética é reveladora dessa sua importante dimensão:
«Recomenda-se
encarecidamente, como parte da própria liturgia, a homilia, em que, durante o
ciclo do ano litúrgico, se expõe, com base nos textos sagrados, os mistérios da
fé e as normas da vida cristã. E mais: nas missas que se celebram aos domingos
e festas de preceito, com assistência do povo, nunca se omita a homilia, a não
ser por causa grave» (SC 52).
Temos um
exemplo desta doutrina conciliar num dos textos mais antigos da Igreja
apostólica, ao descrever a liturgia primitiva, a Apologia I de
s. Justino, ao redor do ano 153, onde lemos:
«E no dia
chamado do sol, tem-se uma reunião num mesmo local para todos os que moram nas
cidades ou nos campos. E lêem-se as memórias dos apóstolos ou as escrituras dos
profetas, conforme o tempo o permita. Em seguida, quando o leitor já terminou,
quem preside faz um convite e uma exortação no sentido de se imitarem estas
coisas excelsas. Depois, todos nós nos levantamos de uma só vez e recitamos
orações. E […], ao acabarmos de orar, apresentamos pão, vinho e água, e quem
preside eleva […] ações de graças […] E o povo aclama dizendo: ‘Amém’»
O termo
usado por Justino para aludir à homilia (exortação ou proklésis) é
variante do termo para descrever a pregação de Paulo em Antioquia da Psídia (At 13,15ss)
e de Pedro depois de Pentecostes (At 2,41: paráklesis).
Nesta última passagem ele vem unido, como sinônimo, ao verbo dar
testemunho, que conhecemos como termo habitual para a pregação ou para o
ministério querigmático.
2. Pregão
gozoso na pregação e na anáfora
Fica
claro diante dos textos anteriores que a homilia faz parte da liturgia. Agora
nos interessa perguntar-nos sobre o como. Uma resposta interessante
nos vem da SC 52 ao afirmar que a pregação deve estar
relacionada tanto com o ano litúrgico quanto com a missa; mais concretamente
com seus textos sagrados.
No
entanto este estar dentro ou formar parte não deve ser entendido de modo
extrínseco, exterior, como mera circunstância externa, mas como algo interno e
intrínseco. A homilia não pode ser um corpo estranho dentro do conjunto
litúrgico mas um elemento sintonizado intimamente com o
conjunto litúrgico.
Para isso
vamos agora analisar os passos que o pregador homilético deve dar a fim de
realizar essa tarefa.
Primeiramente
mostrará as relações concretas que existem entre a Palavra de Deus
proclamada e o comentário do pregador sobre esta palavra, de um lado, e a
liturgia, de outro. Estas relações são três: o anúncio gozoso ou
pregão/proclamação, o memorial e o hoje.
Não só a
pregação cristã é evangelização, ou seja, anúncio e proclamação da boa nova. A
liturgia também o é, e concretamente, a liturgia eucarística. Assim é a
compreensão de S. Paulo quando afirma: «Cada vez que comeis deste pão e bebeis
deste cálice anunciais a morte do Senhor até que Ele volte» (1Cor 11,26).
O verbo utilizado kataggelein, sinônimo de ‘evangelizar’:
“proclamar a boa nova”. Portanto, S. Paulo afirma que a eucaristia é
proclamação gozosa, da mesma forma que o é a pregação cristã. O que se anuncia
na eucaristia é o mistério pascal, a morte e ressurreição do Senhor, conteúdo
básico do querigma. Por conseguinte fica clara a coincidência entre liturgia
(eucarística) e pregação.
Como a
eucaristia realiza esta proclamação? Através de seus gestos, símbolos e textos
oracionais.
Fazendo
esta síntese entre palavra e liturgia, sob o aspecto da proclamação evangélica,
a homilia chegará a ser pregão e anúncio gozoso. É o que diz a SC:
«Por ser
o sermão parte da ação litúrgica, indicar-se-á também nas rubricas o lugar mais
apto[…]. As fontes principais serão a Sagrada Escritura e a liturgia, já que
esta pregação ‘r proclamação das maravilhas operadas por Deus na história da
salvação ou mistério de Cristo, que está sempre presente e atuante em nós,
particularmente na celebração da liturgia» (35,2)
3 – O
memorial
Um segundo
ponto de convergência entre a Palavra de Deus e a liturgia que a homilia deve
mostrar é o caráter de memorial. Não só a pregação é memorial, como
relato narrativo, a liturgia como anamnese também o é.
No texto
de 1Cor 11,25, ao concluir o rito eucarístico, na Última Ceia
Jesus diz: “Cada vez que bebeis (deste cálice), fazei-o em memória de mim”.
Antes, a propósito de comer o pão, seu corpo, dissera o mesmo: “Fazei isto em
memória de mim” (11,24).
Assim, a
eucaristia, em seu núcleo ritual de comida e de bebida sacramentais, é memorial, anamnese de
Cristo que se entrega. Isso também constatamos na oração central, a anáfora.
Ela é uma grande oração doxológica, que apóia seu louvor a Deus e a sua ação de
graças ao Pai em um motivo fundamental: as grandes ações de Deus realizadas ao
longo da história salvífica. Para isto, faz memória sempre desta história
salvífica, quer em seu conjunto, quer em suas etapas fundamentais, quer em
alguma outra de suas etapas. Assim se transforma em relato, narração. A anáfora
é a hagadah cristã.
A hagadah tem
sua origem na liturgia judaica e se refere ao relato central que na celebração
da páscoa se lia, lembrando o que ocorrera naquela noite e em todas as noites
salvíficas da história de Israel. Nós cristãos temos também a nossa hagadah em
que, mediante uma narração, fazemos memória do ocorrido em nossa história como
povo de Deus e, sobretudo, na noite da última ceia, núcleo da história santa
centralizada em Cristo e no seu mistério pascal.
Na
liturgia encontramos exemplos muito claros disto: IV anáfora do Missal
romano, os prefácios dos domingos da quaresma, o prefácio do domingo de
Ramos que alude diretamente ao relato da Paixão e o pregão da vigília pascal
que sob forma de prefácio, hino e proclamação, contém uma síntese admirável da
história sagrada.
Assim,
vemos que o relato feito na liturgia da Palavra reaparece na liturgia
sacramental eucarística. Ora a homilia deve relacionar esta semelhança, mostrar
este caráter comum de relato, memória ou anamnese e expô-los mediante os
elementos que lhe oferecem tanto as leituras quanto os prefácios.
4. O hoje
litúrgico
O
terceiro elemento que nos mostra com evidência a relação entre a Palavra de
Deus e a liturgia é o hoje.
A
liturgia gravita em torno do hoje, do presente, da atualidade. Quando chegam os
tempos litúrgicos, seus textos não se cansam de repetir esta hodiernidade. Por
exemplo na missa vespertina da vigília do Natal, canta o intróito ou antífona
do canto de entrada:
“Hoje sabereis
que o Senhor virá e nos salvará, e amanhã contemplareis a glória de Deus”(Ex 16,6-7).
Um outro exemplo que ilustra esse assunto é o da vigília pascal: nela o pregão
pascal se encarrega de expressar o hoje, ou melhor, o “esta noite” como centro
da celebração e seu memorial.
Assim,
perguntamo-nos: em que sentido a liturgia tem seu centro de gravitação no hoje?
Para entender isso é preciso saber que o memorial litúrgico não é mera
recordação, mas atualização. Torna presente o recordado. Tem força e eficácia
presencializadoras, dado que o distingue do recordar meramente subjetivo, que
só se desenvolve na mente do sujeito. Aqui, ocorre algo que tem a ver com o
hoje da vida do crente e da Igreja.
O fato
salvífico se aproxima do presente, não com suas circunstâncias históricas, mas
em seu núcleo supra-histórico, graças à ação do Espírito. O Espírito é invocado
na epiclese para que com sua presença dinâmica torne real e atual a ação de
Cristo mediante o sacramento. Esta ação começa já com a Palavra de Deus
proclamada, que é eficaz (SC 7), mas culmina na liturgia
sacramental por meio de sinais, de sua assembléia e da força de concretização
que tem a ação sacramental. Daí poder-se predicar o hoje da palavra e do
sacramento. E, assim, a homilia pode e deve mostrar esta estreita relação de
convergência e semelhança. A SC expõe essa doutrina mediante categoria que
repete amiúde ao falar da ação litúrgica: o verbo exercere significa
que a liturgia atualiza o que celebra.
Como
concretização e confirmação de tudo o que foi dito, há uma dado importante da
eucaristia que às vezes passa desapercebido, mas que pode ajudar bastante quem
prepara a homilia: é a communio ou antífona da comunhão, que
possui traço especial em quase todas as missas dos tempos do advento, natal,
quaresma, páscoa e pentecostes.
Nesta
antífona do rito da comunhão se toma um fragmento da leitura do evangelho ou de
alguma das outras leituras proclamadas e é cantado acompanhando o ato da
comunhão. O sentido é claro: no rito da comunhão se está realizando a palavra
proclamada. Assim, esta se presencializa, se converte em atual, hodierna, isto
é, pertencente ao hoje litúrgico. Por meio da celebração e na celebração,
cumpre-se o que anunciamos.
https://presbiteros.org.br/manual-de-homiletica/
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