sábado, 12 de novembro de 2022

A PASTORAL DA PALAVRA (III) 4 – A Pregação: Ação Litúrgico-Celebrativa

 

A PASTORAL DA PALAVRA (III)

4 – A Pregação: Ação Litúrgico-Celebrativa

1. No íntimo da liturgia

Com relação à homilia existe hoje uma consciência bem clara: ela é a pregação que ocorre dentro da liturgia e, de modo especialíssimo, na Santa Missa.

A noção conciliar de homilética é reveladora dessa sua importante dimensão:

«Recomenda-se encarecidamente, como parte da própria liturgia, a homilia, em que, durante o ciclo do ano litúrgico, se expõe, com base nos textos sagrados, os mistérios da fé e as normas da vida cristã. E mais: nas missas que se celebram aos domingos e festas de preceito, com assistência do povo, nunca se omita a homilia, a não ser por causa grave» (SC 52).

Temos um exemplo desta doutrina conciliar num dos textos mais antigos da Igreja apostólica, ao descrever a liturgia primitiva, a Apologia I de s. Justino, ao redor do ano 153, onde lemos:

«E no dia chamado do sol, tem-se uma reunião num mesmo local para todos os que moram nas cidades ou nos campos. E lêem-se as memórias dos apóstolos ou as escrituras dos profetas, conforme o tempo o permita. Em seguida, quando o leitor já terminou, quem preside faz um convite e uma exortação no sentido de se imitarem estas coisas excelsas. Depois, todos nós nos levantamos de uma só vez e recitamos orações. E […], ao acabarmos de orar, apresentamos pão, vinho e água, e quem preside eleva […] ações de graças […] E o povo aclama dizendo: ‘Amém’»

O termo usado por Justino para aludir à homilia (exortação ou proklésis) é variante do termo para descrever a pregação de Paulo em Antioquia da Psídia (At 13,15ss) e de Pedro depois de Pentecostes (At 2,41: paráklesis). Nesta última passagem ele vem unido, como sinônimo, ao verbo dar testemunho, que conhecemos como termo habitual para a pregação ou para o ministério querigmático.

2. Pregão gozoso na pregação e na anáfora

Fica claro diante dos textos anteriores que a homilia faz parte da liturgia. Agora nos interessa perguntar-nos sobre o como. Uma resposta interessante nos vem da SC 52 ao afirmar que a pregação deve estar relacionada tanto com o ano litúrgico quanto com a missa; mais concretamente com seus textos sagrados.

No entanto este estar dentro ou formar parte não deve ser entendido de modo extrínseco, exterior, como mera circunstância externa, mas como algo interno e intrínseco. A homilia não pode ser um corpo estranho dentro do conjunto litúrgico mas um elemento sintonizado intimamente com o conjunto litúrgico.

Para isso vamos agora analisar os passos que o pregador homilético deve dar a fim de realizar essa tarefa.

Primeiramente mostrará as relações concretas que existem entre a Palavra de Deus proclamada e o comentário do pregador sobre esta palavra, de um lado, e a liturgia, de outro. Estas relações são três: o anúncio gozoso ou pregão/proclamação, o memorial e o hoje.

Não só a pregação cristã é evangelização, ou seja, anúncio e proclamação da boa nova. A liturgia também o é, e concretamente, a liturgia eucarística. Assim é a compreensão de S. Paulo quando afirma: «Cada vez que comeis deste pão e bebeis deste cálice anunciais a morte do Senhor até que Ele volte» (1Cor 11,26). O verbo utilizado kataggelein, sinônimo de ‘evangelizar’: “proclamar a boa nova”. Portanto, S. Paulo afirma que a eucaristia é proclamação gozosa, da mesma forma que o é a pregação cristã. O que se anuncia na eucaristia é o mistério pascal, a morte e ressurreição do Senhor, conteúdo básico do querigma. Por conseguinte fica clara a coincidência entre liturgia (eucarística) e pregação.

Como a eucaristia realiza esta proclamação? Através de seus gestos, símbolos e textos oracionais.

Fazendo esta síntese entre palavra e liturgia, sob o aspecto da proclamação evangélica, a homilia chegará a ser pregão e anúncio gozoso. É o que diz a SC:

«Por ser o sermão parte da ação litúrgica, indicar-se-á também nas rubricas o lugar mais apto[…]. As fontes principais serão a Sagrada Escritura e a liturgia, já que esta pregação ‘r proclamação das maravilhas operadas por Deus na história da salvação ou mistério de Cristo, que está sempre presente e atuante em nós, particularmente na celebração da liturgia» (35,2)

3 – O memorial

Um segundo ponto de convergência entre a Palavra de Deus e a liturgia que a homilia deve mostrar é o caráter de memorial. Não só a pregação é memorial, como relato narrativo, a liturgia como anamnese também o é.

No texto de 1Cor 11,25, ao concluir o rito eucarístico, na Última Ceia Jesus diz: “Cada vez que bebeis (deste cálice), fazei-o em memória de mim”. Antes, a propósito de comer o pão, seu corpo, dissera o mesmo: “Fazei isto em memória de mim” (11,24).

Assim, a eucaristia, em seu núcleo ritual de comida e de bebida sacramentais, é memorialanamnese de Cristo que se entrega. Isso também constatamos na oração central, a anáfora. Ela é uma grande oração doxológica, que apóia seu louvor a Deus e a sua ação de graças ao Pai em um motivo fundamental: as grandes ações de Deus realizadas ao longo da história salvífica. Para isto, faz memória sempre desta história salvífica, quer em seu conjunto, quer em suas etapas fundamentais, quer em alguma outra de suas etapas. Assim se transforma em relato, narração. A anáfora é a hagadah cristã.

hagadah tem sua origem na liturgia judaica e se refere ao relato central que na celebração da páscoa se lia, lembrando o que ocorrera naquela noite e em todas as noites salvíficas da história de Israel. Nós cristãos temos também a nossa hagadah em que, mediante uma narração, fazemos memória do ocorrido em nossa história como povo de Deus e, sobretudo, na noite da última ceia, núcleo da história santa centralizada em Cristo e no seu mistério pascal.

Na liturgia encontramos exemplos muito claros disto: IV anáfora do Missal romano, os prefácios dos domingos da quaresma, o prefácio do domingo de Ramos que alude diretamente ao relato da Paixão e o pregão da vigília pascal que sob forma de prefácio, hino e proclamação, contém uma síntese admirável da história sagrada.

Assim, vemos que o relato feito na liturgia da Palavra reaparece na liturgia sacramental eucarística. Ora a homilia deve relacionar esta semelhança, mostrar este caráter comum de relato, memória ou anamnese e expô-los mediante os elementos que lhe oferecem tanto as leituras quanto os prefácios.

4. O hoje litúrgico

O terceiro elemento que nos mostra com evidência a relação entre a Palavra de Deus e a liturgia é o hoje.

A liturgia gravita em torno do hoje, do presente, da atualidade. Quando chegam os tempos litúrgicos, seus textos não se cansam de repetir esta hodiernidade. Por exemplo na missa vespertina da vigília do Natal, canta o intróito ou antífona do canto de entrada:

Hoje sabereis que o Senhor virá e nos salvará, e amanhã contemplareis a glória de Deus”(Ex 16,6-7). Um outro exemplo que ilustra esse assunto é o da vigília pascal: nela o pregão pascal se encarrega de expressar o hoje, ou melhor, o “esta noite” como centro da celebração e seu memorial.

Assim, perguntamo-nos: em que sentido a liturgia tem seu centro de gravitação no hoje? Para entender isso é preciso saber que o memorial litúrgico não é mera recordação, mas atualização. Torna presente o recordado. Tem força e eficácia presencializadoras, dado que o distingue do recordar meramente subjetivo, que só se desenvolve na mente do sujeito. Aqui, ocorre algo que tem a ver com o hoje da vida do crente e da Igreja.

O fato salvífico se aproxima do presente, não com suas circunstâncias históricas, mas em seu núcleo supra-histórico, graças à ação do Espírito. O Espírito é invocado na epiclese para que com sua presença dinâmica torne real e atual a ação de Cristo mediante o sacramento. Esta ação começa já com a Palavra de Deus proclamada, que é eficaz (SC 7), mas culmina na liturgia sacramental por meio de sinais, de sua assembléia e da força de concretização que tem a ação sacramental. Daí poder-se predicar o hoje da palavra e do sacramento. E, assim, a homilia pode e deve mostrar esta estreita relação de convergência e semelhança. A SC expõe essa doutrina mediante categoria que repete amiúde ao falar da ação litúrgica: o verbo exercere significa que a liturgia atualiza o que celebra.

Como concretização e confirmação de tudo o que foi dito, há uma dado importante da eucaristia que às vezes passa desapercebido, mas que pode ajudar bastante quem prepara a homilia: é a communio ou antífona da comunhão, que possui traço especial em quase todas as missas dos tempos do advento, natal, quaresma, páscoa e pentecostes.

Nesta antífona do rito da comunhão se toma um fragmento da leitura do evangelho ou de alguma das outras leituras proclamadas e é cantado acompanhando o ato da comunhão. O sentido é claro: no rito da comunhão se está realizando a palavra proclamada. Assim, esta se presencializa, se converte em atual, hodierna, isto é, pertencente ao hoje litúrgico. Por meio da celebração e na celebração, cumpre-se o que anunciamos.

https://presbiteros.org.br/manual-de-homiletica/

 

 

 

 

 

 

 

 

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