Reflexão para a Solenidade da Santa Mãe de Deus,
Maria – Lc 2,16-21
Para marcar a conclusão da
oitava de natal e o início do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade da
Santa Mãe de Deus, Maria, recordando a afirmação do Concílio de Éfeso (ano 431)
que a definiu como “Theotókos”, cujo significado literal é geradora de Deus. O
objetivo da Igreja com esta festa e com a definição conciliar, no entanto, é
afirmar a identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e não
necessariamente promover o culto e a devoção a Maria. No ano de 1968, o então
papa Paulo VI proclamou o dia primeiro de janeiro também como o Dia Mundial da
Paz.
Apenas um versículo separa o texto do evangelho da noite de Natal do indicado
para a liturgia de hoje: Lc 2,15. Enquanto na noite de Natal o evangelho foi Lc
2,1-14, na solenidade de hoje o texto proposto é Lc 2,16-21. Por isso,
acreditamos que o primeiro passo para uma boa compreensão do evangelho de hoje
é recordar o versículo que o antecede: “Quando os anjos os deixaram e foram
para o céu, os pastores disseram uns aos outros: ‘Vamos já a Belém para ver o
que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer’” (Lc 1,15). Ora, os pastores
ficaram maravilhados com a Boa Notícia que o anjo lhes tinha anunciado: um
Salvador nasceu para eles (cf. Lc 2,10). Ao anúncio do anjo, seguiu-se o canto
da multidão da corte celeste, glorificando a Deus (cf. 2,13-14) diante dos
pastores. Portanto, era inevitável a surpresa e a perplexidade nos pobres
pastores e, mais ainda, a dúvida, afinal, conforme os parâmetros religiosos da
época, eles seriam os últimos a receber uma mensagem do céu, pois pertenciam à
categoria das pessoas impuras e desprezíveis da sociedade.
Uma das grandes novidades de Jesus, desde o nascimento, foi contradizer o que a
sua religião tinha afirmado sobre o Messias e sobre Deus. Ora, a religião
oficial tinha classificado as pessoas como puras e impuras, justas e pecadoras,
imaginando que a vinda do Messias seria marcada pelo extermínio das
classificadas como impuras e pecadoras, como eram considerados os pastores na
época. Ao invés de seguir as determinações da religião, Jesus prefere, desde o
início, exatamente as categorias excluídas, contradizendo e frustrando muitas
expectativas. É nessa perspectiva que podemos e devemos compreender a reação
dos pastores ao anúncio do nascimento de Jesus. A eles, a religião tinha
ensinado que estava fora de cogitação a salvação, pois eram gente da pior
qualidade e que não observava a Lei. De repente, eles recebem um anúncio de
salvação e sentem-se amados por Deus. Perplexos ainda, decidem ir a Belém para
conferir e tirar todas as dúvidas (cf. Lc 2,15).
Diante de uma novidade sem precedentes, é impossível esperar, por isso diz os
textos que “Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José, e o
recém-nascido deitado na manjedoura” (v. 16). Merece destaque a expressão
adverbial “às pressas”, a qual possui grande relevância no vocabulário da
teologia lucana: encontra-se logo após o anúncio do anjo a Maria, introduzindo
a visita a Isabel (cf. Lc 1,39), e na ordem de Jesus a Zaqueu, para que desça depressa
da árvore, para acolher a salvação em sua casa (cf. Lc 19,5-6). Para Lucas, a
salvação é uma Boa Notícia que não pode ser adiada, mas deve ser experimentada
sem demora. Tanto quem recebe quanto quem proclama o anúncio da salvação devem
ter pressa. No caso dos pastores, mais ainda: como passaram a vida inteira às
margens, sofrendo o desprezo e a exclusão, não poderiam mais perder tempo. Para
eles e todas as categorias de pessoas marginalizadas, a inclusão tem que ser
agora, hoje. Por isso, foram às pressas a Belém.
Se os pastores ficaram surpresos com o anúncio do anjo, talvez tenham ficado
mais ainda com o que viram em Belém: “encontraram Maria, José, e o
recém-nascido deitado na manjedoura” (v. 16b). Ouviram que tinha nascido para
eles um Salvador, e encontram na manjedoura, junto aos pais, uma pequena
criança, provavelmente em meio às moscas e esterco de gado, sem nenhum sinal
distintivo. Porém, o que encontraram confirmava o que lhes tinha sido anunciado
(cf. Lc 2,12). Apesar da inevitável surpresa, veio a consciência da novidade e
da nova história que estava começando. Ora, se tivesse nascido um Salvador
conforme as expectativas da religião oficial, os pastores não conseguiriam
sequer chegar perto, e seriam os últimos a saber. Aos poucos, foram compreendendo
que um novo tempo com uma nova ordem estava surgindo, quem estava às margens
estava passando para o centro.
Após contemplarem a cena, ainda maravilhados, os pastores “contaram tudo o que
lhes fora dito sobre o menino” (v. 17), tornando-se assim, também eles
mensageiros de salvação, portadores de Boa Notícia. Contaram que o anjo lhes
aparecera anunciando o nascimento do Salvador, e que depois “uma multidão da
corte celeste” baixou perto deles glorificando a Deus e anunciando a paz a quem
Ele ama (cf. Lc 2,10-14). Contaram coisas maravilhosas, de modo que quem os
escutava também se maravilhava, ou seja, ficavam perplexos, admirados, pois,
até então, não se tinha notícia de um Deus que fizesse conta de gente pouco
importante e sem currículo, como eram eles, conforme os padrões da religião da
época.
De todas as pessoas que ouviram o relato dos pastores e ficaram maravilhadas, o
texto destaca a reação de Maria como mais profunda, com menos surpresa e mais
reflexão. Afinal de contas, ela já estava habituada às maravilhas de Deus, pois
foi a primeira destinatária do anúncio salvífico através do anjo Gabriel (cf.
Lc 1,26-38) e assistira à exaltação de Isabel quando a visitou (cf. Lc
1,39-52). No entanto, ela não deixará de maravilhar-se, pois a trajetória de
Jesus lhe trará outras surpresas, como no episódio da apresentação no templo,
quando ela e José ficam admirados com o que se dizia do menino (cf. Lc 2,33). A
sua reação de Maria é diferenciada, pois nela o evangelista está construindo a
imagem da discípula modelo: “guardava todos esses fatos e meditava sobre eles
em seu coração” (v. 19). O verbo grego traduzido por meditar é συμβαλλω –
symbálô, o qual possui um significado muito mais profundo do que meditar;
literalmente, significa “colocar junto”, “unir”, “reunir”.
Certamente, a meditação de Maria consistia em relacionar os acontecimentos do
presente com as ações libertadoras de Deus ao longo da história, como ela mesma
já expressara no Magnificat (cf. Lc 1,46-55) e experimentara em sua vida. É
exatamente aqui que ela se sobressai sobre os demais ouvintes, porque ela
guardava, ou seja, escutava com atenção tudo o que os pastores tinham dito, e
juntava com o que já sabia: as palavras do anjo Gabriel e as declarações de
Isabel, e o histórico de Deus em favor dos pobres e humildes. Aquela que já era
mãe, inicia agora uma nova etapa, o discipulado, e isso ela vai fazer ao longo
de toda a sua vida e a de Jesus; ao invés de ver os fatos isoladamente, ela vai
juntando cada um, unindo as peças e percebendo, no seu coração, que a história
da salvação está sendo reescrita com novos parâmetros, uma inversão de ordem:
os últimos, como ela e os pastores, passaram a ser os primeiros. E é essa a
prova de que o Reino de Deus, de fato, irrompeu na história.
Tendo comprovado e visto que tudo o que lhes tinha sido anunciado era verdade,
“os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus” (v. 20). Realmente,
não faltavam motivos para os pobrezinhos dos pastores glorificarem a Deus! É
importante lembrar que a alegria e o louvor são traços bem característicos de
Lucas; quem faz a experiência do amor misericordioso de Deus reage louvando e
glorificando. O louvor dos pastores mostra que, em Jesus, o abismo entre o
humano e o divino foi eliminado; céus e terra foram unidos definitivamente.
Cantar glória a Deus era função dos anjos no céu, que excepcionalmente desceram
à terra e louvaram a Deus diante dos pastores (cf. Lc 1,13-14), mas logo
retornaram para o céu. Agora, também aos pastores, os últimos da terra, tem
esse direito. Temos aqui uma mudança completa de paradigma: o que era
privilégio dos primeiros do céu, se torna acessível aos últimos da terra.
No final, vem evidenciado o papel importante de José e Maria na educação de
Jesus, levando para a circuncisão conforme previa a lei e, ao mesmo tempo, a
liberdade que tinham para seguir mais a Deus do que a Lei: “deram-lhe o nome de
Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido” (v. 21). Ao dar um
nome contrário ao que Lei previa, nome de parente próximo, Maria e José se
declaram a favor da nova história que Deus está começando a escrever com a
colaboração de homens e mulheres, principalmente os mais simples e humildes.
O significado do nome Jesus é “Deus salva”, porque agora a salvação entrou
definitivamente na história, como o anjo tinha anunciado aos pastores: “Hoje,
nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (cf. 2,11). Portanto, hoje,
especialmente, é mais do que justo recordarmos a Mãe desse Salvador, e seguir
seu exemplo de discípula fiel.
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