sexta-feira, 19 de maio de 2023

ANTO AGOSTINHO E A MARIOLOGIA Aspectos eclesiológicos da mariologia agostiniana

 

SANTO AGOSTINHO E A MARIOLOGIA

Aspectos eclesiológicos da mariologia agostiniana

A piedade católica costuma dedicar o mês de maio à Virgem Maria. No hemisfério norte, o louvor mariano mistura-se à exuberância e ao perfume da primavera. Já aqui, no hemisfério sul, a recordação da Virgem Mãe confunde-se com a rutilante e calorosa luz do outono. Independente da estação, uma coisa é certa: em maio, os cristãos católicos cedem ao afeto e o mundo canta Maria.

            Sem sombra de dúvida, conforme demonstrou o fundador da psicologia analítica Carl Gustav Jung (1875 – 1961), a veneração católica à Mãe de Jesus é sinal de saúde psíquica.[1] Contudo, não faltam exemplos, corre-se sempre o risco de supervalorizar a figura de Maria e, com isso, incorrer em atentados ao depositum fidei. A Igreja ama e venera a Santíssima Virgem, mas dentro de uma moldura que é a confissão de Jesus, como único Senhor e Mediador entre Deus e os homens (1 Tm 2, 5). Nas palavras do Catecismo: “o que a fé católica crê acerca de Maria funda-se no que ela crê acerca de Cristo” (Cat. 487).

            Neste sentido, o Concílio Vaticano II, teve o cuidado de incluir a Virgem Maria na constituição dogmática que expunha a doutrina da Igreja.[2] Desta forma o Concílio relaciona Mariologia e Eclesiologia. Ou seja, Maria é membro excelente da Igreja e, ao mesmo tempo, ícone desta mesma Igreja. Isto posto, conclui-se que a piedade mariana precisa desembocar na eclesiologia. Essa compreensão, resgatada e valorizada pelo Concílio, é tipicamente agostiniana. E este é o tema que tentaremos desenvolver neste breve artigo: aspectos eclesiológicos da mariologia agostiniana.

            Salientamos que não é nosso interesse esgotar o tema; muito menos apresentar uma densa teologia mariológica agostiniana, até porque, Agostinho não compôs uma Mariologia sistemática. Nosso interesse é, apenas, provocar e contribuir para uma adequada e saudável piedade mariana; e, minimamente, divulgar o pensamento agostiniano. Destaque-se, de antemão, que para Agostinho, Maria é Virgo Virginum e Thetókos. E são justamente estas categorias de virgindade e maternidade que Agostinho vai explorar em sua Eclesiologia.

Para o Hiponense, Maria se inscreve como parte da Igreja. É Mãe de Cristo, mas é, também, membro do Corpo Místico de Cristo. No sermão 72 ele deixa claro: “Santa é Maria! Abençoada é Maria! Mas a Igreja é superior à Virgem Maria. Por quê? Porque Maria é uma porção da Igreja, um membro, um membro excelente, um membro supereminente, mas membro do Corpo total. Ora, se é parte do corpo total, sem dúvida o corpo é maior do que um membro”.[3] Ao destacar a superioridade da Igreja, Agostinho não despreza ou desconsidera a singularidade de Maria, mas, ao contrário, ratifica a inevitável ligação de Maria com a natureza e ao mistério da Igreja.

            Segundo Nair de Assis Oliveira, “o relacionamento de Maria com a Igreja constitui um capítulo particularmente rico na teologia mariológica agostiniana. [...] Em resumo, a ideia fundamental da relação mútua entre Maria e a Igreja consiste em que ela é a pessoa na qual se recapitula toda a Igreja”.[4] Conforme lembra o Concílio Vaticano II, a Mãe de Deus é a figura da Igreja na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo (cf. LG n.63). Ora, se ela é a “pessoa na qual se recapitula toda a Igreja”, é preciso identificar os principais aspectos dessa recapitulação. Na compreensão agostiniana então três são os aspectos que se destacam: a virgindade, a maternidade e o discipulado.

            No início de sua missão sacerdotal, Agostinho escreveu uma pequena obra intitulada De fide et symbolo (393 d.C.). Nela está registrado um firme testemunho da fé na perfeita e perpétua virgindade de Maria.[5] A metáfora usada nesta obra é a do sepulcro novo, no qual foi depositado o corpo de Jesus na noite da paixão (cf. Mt 27, 59-60, Jo 19, 41). Segundo ele, “assim como nesse sepulcro nenhum morto foi sepultado, nem antes, nem depois, também no seio virginal de Maria, nem antes nem depois, ser mortal algum foi concebido”.[6] Já que Deus veio habitar num seio materno, “deixando-o intacto”.[7]

            A virgindade de Maria, preconiza a virgindade da Igreja. “Cristo, que haveria de fazer germinar a virgindade no coração de sua Igreja, antecipou-a no corpo de Maria”, [8] diz Agostinho. Conforme ensina o Vaticano II, a Igreja é “a virgem que guarda íntegra epura a fé jurada ao Esposo, e, à imitação da Mãe do seu Senhor, pela graça do Espírito Santo, conserva virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança, sincera a caridade” (LG n. 64). Para o hiponense é na integridade da fé, da esperança e da caridade que reside a virgindade da Igreja. Uma integridade que é extremamente fecunda. Porque “nem em Maria nem na Igreja, a virgindade impede a fecundidade. E nem em uma nem em outra a fecundidade destrói a virgindade”.[9]

            A maternidade é o segundo aspecto que se destaca na relação entre Maria e a Igreja, na compreensão agostiniana. Enquanto figura da Igreja, Maria encontra-se intimamente unida a ela pelo “dom e cargo da maternidade” (LG n.63). Maria é mãe de Cristo-Cabeça. E a Igreja, é mãe dos membros de Cristo, sendo ela, ao mesmo tempo, o Corpo Místico de Cristo. Nas palavras de Santo Agostinho: “Maria deu à luz corporalmente à Cabeça deste corpo. A Igreja dá à luz espiritualmente os membros dessa Cabeça”.[10]

            Esta relação da Igreja mãe, foi posta por Agostinho no coração de sua eclesiologia. Para ele, ao contemplar a fecundidade de Maria, a Igreja reconhece sua própria vocação à maternidade e, “a exemplo da mãe de Cristo, todos os dias dá à luz a novos membros para ele”.[11] Contemplando a santidade misteriosa de Maria, imitando a sua caridade, e cumprindo fielmente a vontade do Pai, pela pregação e pelo batismo, a Igreja gera filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus (cf. LG n.64). Ela é mãe, sobretudo, porque manifesta ao mundo a paternidade universal de Deus. É mãe porque, vivificada pelo Espírito Santo, infunde a lei da caridade; e a caridade é, essencialmente, materna. Em suma, a Igreja é mãe pelo ardor da caridade (Mater visceribus caritatis).[12]

            O terceiro aspecto, inclusive o mais louvável, é o discipulado. Um aspecto que, conforme lembra Agostinho, foi louvado pelo próprio Jesus ao dizer que sua mãe e seus irmãos são todos aqueles que fazem a vontade do Pai que está nos céus (cf. Mt 12, 46-50). “Isso também acontece com Maria, visto que ela sempre está a fazer a vontade do Pai. É isso o que o Senhor pretende glorificar nela: o ter cumprido a vontade do Pai, não o fato de haver em sua carne gerado a sua própria carne. Que Vossa Caridade fique atenta (ainda a este ponto): Enquanto o Senhor suscitava a admiração do povo por causa de seus milagres e prodígios, manifestando o que ocultava em sua carne, alguém exclamou com admiração: ‘Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!’ Ele, porém, respondeu: ‘Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam’ (Lc 11, 27-28). Isso significa: minha mãe, ela mesma, a quem chamais de feliz, é feliz porque guarda a palavra de Deus. Não é feliz somente porque nela a Palavra ‘se fez carne e habitou entre nós’ (Jo 1, 14). É feliz, porque guardou essa mesma Palavra de Deus, por quem foi feita e que nela se fez carne”.[13] Para o santo bispo de Hipona, “Maria tornou-se mais feliz recebendo a fé de Cristo do que concebendo a carne de Cristo”.[14] Assim, ela não só é icônica da Igreja pela virgindade e maternidade, mas também pelo cumprimento perfeito da vontade do Pai, mediante a fé: “valeu mais para ela ser discípula de Cristo do que a mãe de Cristo. Maior felicidade para ela ter sido discípula do que mãe. [...] Porque já antes de dar à luz o Mestre, ela já o trazia em seu espírito”.[15]

            Ao que parece, para Agostinho a maternidade de Maria e, consequentemente, da Igreja dependem do discipulado. Desta abertura à palavra de Deus, da observância desta palavra depende a fecundidade. Maria só pôde ser mãe de Cristo porque, antes ouviu e guardou a palavra de Deus. “Guardou a Verdade na mente, mais do que em seu seio”,[16] diz Agostinho. Ela foi fecundada pelo ouvido (fecundis in auris). A Igreja, da mesma forma, conforme ensina o Vaticano II, “torna-se mais semelhante ao seu modelo tão excelso, progredindo continuamente na fé, na esperança e na caridade, buscando e cumprindo em tudo a vontade de Deus” (LG n. 65).

            Pelo discipulado, todos os crentes tornam-se, a seu modo, “mães de Cristo”. E, em certa medida, esta é a primordial tarefa cristã: acolher a fé de Cristo e gerá-lo para o mundo. Conforme lembra Agostinho, “sua mãe, a Virgem Maria, trouxe-o em seu seio. Tragamo-lo a Ele, em nosso coração. A Virgem ficou grávida pela encarnação de Cristo. Engravidem-se nossos corações pela fé de Cristo. A Virgem deu à luz o Salvador. Que nossas almas gerem a salvação e entoem louvores. Não sejamos estéreis. Sejam nossas almas fecundas para Deus!”.[17]

            A esta altura podemos nos perguntar o que significa gerar Cristo para o mundo? O que significa ser discípulo (a) como Maria? Como podemos ser fecundos para Deus? A exemplo da Virgem precisamos, antes de tudo, acolher a palavra do Senhor. Acolhe-la no coração, deixando que a palavra molde nossa existência, renove nossa mentalidade e condicione nosso agir. Depois, precisamos, como a Santíssima Virgem, frutificar. Fazer a palavra dar frutos em nós. Não basta ouvir a palavra de Deus; não basta divulgá-la; é preciso vivê-la. E nisto reside a profundidade da verdadeira devoção à Santíssima Virgem: viver a palavra de Deus; moldar a própria vida a partir de seus valores, custe o que custar.

            Com esta breve exposição cremos ter apresentado, ainda que epidermicamente, os principais aspectos eclesiológicos da mariologia agostiniana. Aspirando com isto, divulgar a teologia agostiniana e contribuir para uma adequada e saudável piedade mariana que honre Maria, nos limites da moldura da fé cristológica, e se traduza em sincero e fértil esforço de discipulado.

Frei Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA.
Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte MG). E-mail: j.felipecruz05@gmail.com

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[1] Cf. JUNG, Carl Gustav. A resposta de Jó. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 103-112.
[2] Constituição Dogmática Lumen Gentium.
[3] Sermão, 72 A, 7.
[4] SANTO AGOSTINHO. A Virgem Maria: em textos marianos com comentários. Tradução: Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1996, p. 12-13.
[5] Atente-se que o dogma da Virgindade perpétua de Maria não é cunhado por Agostinho. Ele apenas é herdeiro e defensor. Além de todos os relatos bíblicos, no ano 107, por exemplo, Inácio de Antioquia já descrevia a virgindade de Maria. “Estais firmemente convencidos acerca de Nosso Senhor, que é verdadeiramente da raça de Davi segundo a carne, Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus, verdadeiramente nascido de uma virgem...” (Ad Smyrn, I-II).
[6] De fide et symbolo V, 11.
[7] De fide et symbolo IV, 8.
[8] Sermão 188, 4.
[9] A virgindade consagrada II, 2.
[10] A virgindade consagrada II, 2.
[11] Enchiridion X, 34.
[12] Cf. TRAPÈ, Agostino. Introduzione Generale a Sant’Agostino. Roma: Città Nuova Editrice, 2006, p. 210.
[13] Comentário ao Evangelho de João X, 3.
[14] A Virgindade consagrada III, 3.
[15] Sermão 72 A, 7.
[16] Sermão 72 A, 7.
[17] Sermão 189, 2-4.

 

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