REFLEXÃO
DOMINICAL I
10º Domingo do Tempo
Comum
Por Aíla Luzia
Pinheiro Andrade, nj*
I. Introdução geral
As leituras de hoje falam sobre pecado, condição que
atinge todo ser humano, conforme afirma o apóstolo Paulo, quando diz que em
Adão “todos pecaram” (Rm 5,12). Adão e Eva representam todos os seres humanos
pecadores diante de Deus. Mas a ênfase das leituras não é o tema do pecado, e
sim da misericórdia divina que perdoa o pecador. Afirma o Concílio Vaticano II
que o próprio Deus “veio libertar o homem e dar-lhe força, renovando-o no
íntimo e expulsando ‘o príncipe deste mundo’ (Jo 21,31), que o mantinha na
escravidão do pecado” (GS 13).
Jesus, verdadeiramente homem, Filho de Deus, realizou a
vocação humana, destruiu definitivamente o mal e nos associou à sua vitória
sobre o pecado e a morte. Essa intervenção de Jesus na história é algo tão
concreto, que ignorá-la constitui pecado contra o Espírito Santo. Esse tipo de
pecado não é algo que se pratique aqui e ali, é opção de vida somente conhecida
por Deus, que sonda os corações. Trata-se de decisão consciente e livre de
recusa ao perdão divino.
Afirma o Catecismo da Igreja Católica que
a “misericórdia de Deus não tem limites, mas quem se recusa deliberadamente a
acolher a misericórdia de Deus rejeita o perdão de seus pecados” e a ação
santificadora do Espírito Santo (cf. n. 1.864). O perdão de nossos pecados é
uma graça, mas essa graça somente nos alcança se quisermos: a salvação é obra
de Deus em nós, mas não sem nós.
Por outro lado, quem se torna discípulo e missionário de
Cristo se associa intimamente à família de Deus, da qual nunca se aparta, pois
fazer a vontade divina é a perfeita comunhão com o mistério de Cristo. Somos
família de Jesus.
II. Comentário dos textos
bíblicos
- Evangelho (Mc 3,20-35):
Tudo vos será perdoado
Cristo, com sua fidelidade ao Pai até a morte de cruz,
realizou aquilo que foi o oposto da desobediência humana, simbolizada pelo
pecado de Adão e Eva. A intervenção de Cristo na história instaura, a partir de
então, o Reino definitivo. Os exorcismos de Jesus são a prova de que o Reino de
Deus chegou e de que o mal é obrigado a ceder espaço à verdadeira soberania
deste mundo, o senhorio de Cristo.
Nos esportes de luta corporal, ficamos cientes de que o
lutador mais forte, seja pela força física, seja pelas estratégias mais
elaboradas, é quem vence o mais fraco. A luta de Jesus contra o mal é explicada
com metáforas esportivas ou bélicas. Jesus é o mais forte, ele veio em socorro
da nossa fraqueza no embate cotidiano contra todas as manifestações do mal.
Cabe a nós aderir a esse nosso campeão e saborear essa vitória que também é
nossa, pois Jesus nos representa.
É à luz desse tipo de simbolismo que podemos entender o
pecado sem perdão, o qual nada mais é que atribuir ao mal aquilo que é ação
redentora do Espírito Santo em Jesus. É sem perdão porque Deus respeita nosso
livre-arbítrio e, portanto, não pode nos perdoar quando o nosso orgulho atribui
ao mal a ação libertadora de Jesus. É sem perdão não por causa de Deus, que a
todos perdoa, mas por causa de quem se exclui voluntariamente do perdão e da
salvação.
Somente o Pai, que conhece as profundezas dos corações,
sabe quem assim procede, não nos cabe julgar ninguém. Portanto, devemos
focalizar nossa atenção na palavra de Jesus, segundo o qual o Pai está disposto
a perdoar todo pecado. Lembremos que Jesus pediu perdão ao Pai por aqueles que
o torturaram e o mataram. Se os algozes de Jesus se abriram ao perdão, foram
perdoados, porque Deus tudo perdoa.
De outra parte, não esqueçamos que todos os que abraçam a
vontade do Pai e a cumprem perfeitamente, seguindo o exemplo do Filho, estão
unidos a Jesus com fortes vínculos, comparados aos mais estreitos laços
afetivos familiares. Dessa união com Cristo, na única vontade do Pai, é que os
cristãos tiram a força para vencer o mal.
- I leitura (Gn 3,9-15): E,
chamando-o, disse o Senhor: “Onde estás?”
Culpada por transgredir o mandamento divino, a humanidade
é reencontrada por Deus, que toma a iniciativa de retomar os vínculos de
amizade rompidos. O homem lança a culpa na companheira, e esta, na serpente.
Mas Deus os conduz pedagogicamente a assumir a responsabilidade pelos próprios
atos e as consequências de suas atitudes. A justiça de Deus é pedagógica; ele
se compadece do ser humano, não o deixa à mercê do próprio egoísmo e
promete-lhe a vitória sobre o mal, simbolizada no esmagamento da cabeça da serpente.
Uma luta deve ser travada entre o ser humano e o mal;
dessa luta ele sairá machucado no calcanhar, mas será totalmente vitorioso e
não terá ferimento mortal, suas feridas serão sinais de que lutou intensamente.
Eis a sublime vocação humana.
- II leitura (2Cor
4,13-5,1): O Senhor nos dará o perdão e a sustentação
Quaisquer que sejam as obrigações e os problemas,
próprios das limitações da criatura e da história, os cristãos têm motivo
suficiente para não sucumbir ou desanimar. Os cristãos possuem a fé, antídoto
eficaz contra o desânimo em tempos de angústias e tribulações.
A fé permite discernir tudo corretamente. Ela nos dá como
foco aquilo que é invisível aos que não têm fé. Ver além das aparências é
acreditar no perdão para todos, acreditar na bondade de quem age de modo que
nos parece errado, acreditar na fé de quem parece afastado da Igreja. Ver com o
olhar de fé é ver o outro como Deus o vê; por isso, onde existe fé, não há
preconceito nem exclusão. Quem não tem fé se apega às aparências, ao que é transitório,
temporário, superficial. Ao contrário do que comumente se pensa, as coisas
invisíveis são muito mais reais e verdadeiras do que as coisas que nos parecem
mais concretas.
A expectativa da felicidade após a morte é assegurada
pela fé na misericórdia de Deus, que a todos perdoa. A Bíblia usa um símbolo
muito forte para expressar isso. A nossa vida terrestre é comparada a uma
tenda, que pode ser desarmada a qualquer momento, e a vida pós-morte é como uma
“moradia”, um lugar de descanso, a casa do Pai. Quem deu morada a Deus na tenda
terrestre terá lugar assegurado na cidade celeste.
III. Pistas para reflexão
O evangelho de hoje traz questões aparentemente difíceis,
como o pecado contra o Espírito Santo e “os irmãos de Jesus”. São difíceis
quando se tira o foco da intenção do evangelista e se passa a concentrar a
atenção no que é secundário.
Primeiramente, o principal é a misericórdia de Deus, que
nos perdoa sempre. Se alguém não quer ser perdoado, isso é problema de Deus, é
da competência do Pai, não cabe a nós resolver. A menção ao pecado contra o
Espírito tem por objetivo apenas garantir o livre-arbítrio do ser humano e uma
chamada de atenção para que não confundamos a ação de Deus com a ação do mal,
totalmente distintas uma da outra.
Na nossa época não é diferente, muitas pessoas confundem
o bem com o mal. Atualmente muitos consideram bom algo que é mau, como a pena
de morte, a eutanásia, a intolerância, o enriquecimento ilícito por meio da
desonestidade, da corrupção ou da injustiça etc., ou consideram más coisas que
são boas, como a fraternidade, a justiça social, a tolerância. Quem assim
procede, orientando toda a vida nesse sentido, está apostando na vitória do mal
sobre o bem no mundo atual e dificilmente pode ter fé num mundo futuro,
definitivo, sem a presença do mal.
Também tira o foco do que é essencial uma homilia que se
dedique a explicar a expressão “irmãos de Jesus”. Sobre essa expressão, o
presidente da celebração deve orientar os fiéis para que leiam na própria
Bíblia as notas de rodapé que a explicam. Isso educa os católicos a usar a
Bíblia ou a fazer um estudo bíblico introdutório. A homilia não deve perder
tempo com isso, porque vai tirar o foco do que é essencial.
O evangelista está tentando mostrar que os parentes de
Jesus, da mesma forma que os escribas, não entendiam a missão dele. Enquanto os
escribas orgulhosos e invejosos atribuíam as ações de Jesus ao poder do mal, os
parentes de Jesus pensavam que ele estava em perigo e tentavam protegê-lo,
faziam o que é próprio da família. Amar as pessoas é preocupar-se com elas.
Jesus sabe disso e, sem desfazer-se dos familiares, amplia a noção de família
para além dos laços sanguíneos, remetendo-a aos vínculos de amor.
Não esqueçamos que a narrativa menciona que Jesus e seus
discípulos chegaram à casa de alguém e pretendiam tomar uma refeição, mas um
grande número de pessoas foi ali à procura dele e Jesus lhes deu atenção. Ele
já não tinha tempo para si, e seus familiares se preocuparam, achando que
estivesse ficando louco – literalmente, “fora de si”. Os familiares não
entenderam aquelas atitudes e quiseram levá-lo de volta para cuidar dele. Jesus
pensa numa família mais ampla, nos que são filhos obedientes da vontade do Pai,
quer doar-se a esses irmãos, servir a essa família universal.
Nos tempos atuais, também soa como loucura doar-se aos
serviços da comunidade, no serviço a Deus e aos irmãos, pois vivemos num mundo
de relações mercantilizadas, segundo as quais “tempo é dinheiro” e é
considerado “coisa de louco” perder tempo com aquilo que não dá nenhum retorno
financeiro.
Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj*
*Graduada
em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e
doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona
na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora
do livro Eis que faço novas todas as coisas
– teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: aylanj@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/10o-domingo-do-tempo-comum-10-de-junho/
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