quinta-feira, 6 de julho de 2023

A missão nasce do amor

 

 

A missão nasce do amor

Por Maria Antônia Marque; Shigeyuki Nakanose, svd

 

Uma leitura de Atos dos Apóstolos 20,17-38

Do amor nasce o compromisso com o crescimento e o desenvolvimento das pessoas. E o amor nos torna responsáveis uns pelos outros. Essa atitude faz parte do nosso cotidiano. Há muitos anos, assistimos a morte de Rosalina Matos, 76 anos, mulher simples da roça, mãe de seis filhos. No seu último fio de vida, ela fez uma recomendação: “Cuidem do Joãozinho para mim”. Joãozinho era o seu filho mais velho, que era dependente do álcool e vivia separado da família. O coração da mãe, sentindo que suas forças estavam no fim, preocupou-se exclusivamente com a continuidade da vida de seu filho mais necessitado.

Rosalina fez um pedido, uma súplica. Esse foi o seu último discurso. Tratava-se de um profundo gesto de amor. Na Bíblia, nós encontra­mos muitos discursos de despedida. Isso era comum e muito importante na tradição judaica (cf. Js 23-24; 1Sm 12; 1Mc 2,49-69; Jo 13-17). Em geral, esse tipo de discurso era proferido na eminência da morte ou às vésperas de uma partida sem possibilidade de retorno. O discurso de despedida tem uma estrutura própria: apresenta a vida da pessoa, relembra o seu passado, aponta para a situação presente e futura; faz algumas exortações e deixa o seu testamento, motivado pelo amor e pelo desejo de que as pessoas sejam fiéis ao projeto deixado por quem está partindo.

O capítulo 20,17-38 do livro dosAtos dos Apóstolos é um discurso de despedida. Paulo convoca as lideranças das comunidades de Éfeso e faz as últimas recomendações, comunica-lhes o essencial, pede que continuem firmes no anúncio e na vivência do evangelho. Uma vivência que exige capacidade de amar, de ser solidário com os empobrecidos e enfraquecidos. Esse discurso foi escrito por volta do ano 85. No entanto, Paulo foi morto por volta do ano 68.

Veja que interessante: na memória das comunidades permanece viva a lembrança de que Paulo ama as comunidades cristãs e se compromete com elas. Ele se preocupa com a continuidade da vivência do evangelho nelas. Ele se sente pai: “Fui eu que, pelo evangelho, vos gerei em Jesus Cristo” (1Cor 4,15; cf. Fl 4,19; 1Ts 2,11; Fm 10).

Nos escritos de Paulo, é possível perceber que ele tem um relacionamento muito próximo e afetuoso com as pessoas. Em sua vida e missão, a preocupação com a perseverança das comunidades na vivência do evangelho era uma constante. Tendo presente os seus ensinamentos, as comunidades fazem memória de suas últimas recomendações. Redigem um discurso de despedida para os anciãos de Éfeso, atualizando a palavra de Paulo para o ano 85, tempo do imperador Domiciano, perseguidor dos cristãos. Por isso, o conteúdo desse discurso é a realidade da vida das comunidades, o dia a dia e os desafios de ser cristão em tempos de perseguição. Nesse texto, a comunidade faz um resumo do livro dos Atos dos Apóstolos, especificando o significado de Paulo na vida das primeiras comunidades, a insistência na vivência do amor solidário e a fidelidade ao serviço do Senhor.

Vamos ver, passo a passo, como esse discurso foi construído? 

1.    Comentário ao texto

 

a) Os anciãos de Éfeso são convocados (At 20,17-18a)

O destinatário desse discurso é o grupo de líderes das comunidades cristãs de Éfeso. É o terceiro grande discurso de Paulo (At 20,17-38). Você se lembra dos outros? O primeiro foi dirigido aos judeus (cf. At 13,16-41), o segundo aos gregos (cf. At 17,22b-31). Esse gênero de discurso normalmente é dirigido a um grupo determinado, situando-o num lugar concreto. Assim, podemos nos perguntar: por que Paulo privilegia os anciãos das comunidades cristãs de Éfeso?

No livro dos Atos dos Apóstolos, o uso do termo ancião, para designar os responsáveis pelas comunidades cristãs, ocorre várias vezes (cf. At 11,30; 14,23; 15,2.4.6.22-23; 16,4; 20,17; 21,18). Nas comunidades cristãs, como nas comunidades de origem judaica, havia o grupo de anciãos, cuja função era guiar e orientar a comunidade.

No capítulo 19, Paulo chega à cidade de Éfeso. Aí fica durante dois anos e três meses, pregando a Palavra. Essa cidade era a maior e mais influente da Ásia Menor, com uma população estimada em 250.000 habitantes. Aí havia vários templos, um dos quais era dedicado a Roma e a Júlio César, religião oficial do império. Outro templo famoso é o da grande deusa Ártemis (cf. 19,27). Havia também uma importante sinagoga, cujas autoridades perseguiam as comunidades cristãs.

Na cidade de Éfeso, Paulo foi perseguido pelos judeus fariseus e alguns adoradores da deusa Ártemis; em seguida, foi obrigado a sair da cidade e seguiu rumo à Macedônia, atravessou essas regiões e chegou à Grécia. Paulo já havia tomado a decisão de voltar a Jerusalém (cf. 19,21). Por causa de uma conspiração dos judeus contra ele, vai para Filipos, de lá embarca para Assos, passa pela ilha de Samos e, em seguida, chega a Mileto. Paulo não passa por Éfeso, mas manda chamar os anciãos, os responsáveis pelas comunidades daquela cidade, para dar-lhes as últimas recomendações.

Os primeiros destinatários desse discurso são os anciãos de Éfeso, possivelmente os mais necessitados, por causa da diversidade religiosa dessa metrópole, da perseguição dos judeus fariseus, das elites gregas e do império romano. Outro motivo era o número significativo de empobrecidos que existiam nessa cidade e necessitavam de cuidados especiais. Posteriormente, o discurso de Paulo foi relido e ampliado e transformou-se em um testamento endereçado a todos os responsáveis das Igrejas, de ontem e de hoje. Nesse texto, está delineado o ideal do(a) missionário(a). A capacidade de amar e de se doar totalmente a serviço da defesa da vida é imprescindível para aquelas e aqueles que desejam seguir na trilha deixada por Jesus.

 

b) Retrospectiva do passado (At 20,18b-21)

Estes versículos apresentam a atividade missionária de Paulo na Ásia. Com todas as letras, ele reforça: “Servi ao Senhor com toda a humildade, com lágrimas e no meio das provações que sofri por causa das ciladas dos judeus” (At 20,19). O próprio Jesus trilhou o caminho da humildade (cf. Mt 11,29; 18,1-5). Na carta aos Filipenses, lemos que Jesus se esvaziou a si mesmo. Ele foi obediente até a morte (cf. Fl 2,6-11). Assim, servir com humildade significa seguir o exemplo de Jesus.

A lágrima indica situação de mágoa profunda, de sofrimento extremo (cf. Lc 7,38; 44). Nesse discurso, a palavra lágrima aparece duas vezes: “servi com lágrimas”; “… durante três anos, eu não cessei, com lágrimas, de admoestar a cada um de vós” (vv. 19.31). Na segunda carta aos Coríntios, encontramos: “Eu vos escrevi em meio a muitas lágrimas…” (2Cor 2,4). Esta carta também foi escrita em Éfeso. Ao que tudo indica, nessa região Paulo sofreu várias perseguições da parte dos judeus, porém o compromisso com as pessoas o ajudou a permanecer firme no projeto de Jesus.

No anúncio do evangelho, as dificuldades e as provações foram muitas, mas nada intimidou o missionário. Ao contrário, ele aproveitou todas as oportunidades, em público e de casa em casa (cf. At 20,20), para anunciar o evangelho a todas as pessoas, sem distinção de raça: judeus e gregos (cf. At 20,21). Em uma de suas cartas, ele repete: “O amor de Cristo nos constrange” (2Cor 5,14). Por amor a Cristo, ele foi capaz de amar as pessoas, a ponto de entregar a própria vida. As hostilidades das autoridades judaicas e das elites gregas não impediram a ação missionária de Paulo, que pregou incansavelmente a todas e todos. “O meu testemunho chamava tanto a judeus como a gregos a se converterem a Deus e a crerem em Jesus Cristo” (At 20,21).

A palavra grega diamartyromai significa “dar testemunho de”, “exortar”, “testificar a”. Essa palavra também é empregada nos versículos 23 e 24 e está relacionada com a proclamação da mensagem de Jesus como o Cristo (cf. At 18,5) e com a obrigação de tornar conhecida a vontade de Deus (cf. At 20,24). A palavra metanoia significa “mudança de opinião”, “arrependimento”, “conversão” — “fazer a volta”. O chamado à conversão implica convocação à fé; é voltar-se do mal para Deus (cf. At 20,21; 26,18.20).

Paulo proclamou o evangelho com a sua vida e palavra, foi capaz de amar até o fim. As suas cartas testemunham quanto ele amava as pessoas, e o seu maior desejo era que as pessoas vivessem no amor (cf. Gl 5,13; Fl 1,9; 2,2; 1Ts 3,12). Ao fazer a apresentação de sua vida, atividades missionárias e resistência diante das perseguições, Paulo deseja que seus ouvintes, espelhando-se no seu exemplo de vida, assumam o mesmo compromisso. Para as comunidades, a vida e a missão de Paulo fundamentam-se na teologia do servo sofredor, que, mesmo perseguido, assumiu a sua missão até o fim, na humildade e no serviço constante (cf. Is 42,1-9; 49,1-8; 50,4-11; 52,13­-53,12).

 

c) Momento presente (At 20,22-24)

Após relatar o passado, o texto passa a descrever o momento presente. Agora, Paulo é prisioneiro do Espírito (cf. At 20,22). Ele está a caminho de Jerusalém e pressente que o seu fim se aproxima: “O Espírito Santo me atesta, de cidade em cidade, que cadeias e tribulações lá estão à minha espera” (At 20,23).

Jesus, em sua última viagem a Jerusalém, anunciou sua paixão e morte e, ao mesmo tempo, preparou seus discípulos. Paulo está seguindo o mesmo caminho. Ele está disposto a cumprir sua missão até o fim. As palavras de Paulo fazem lembrar a atitude do mártir cristão: “Quem ama a sua vida perde-a; e quem deixa de se apegar a ela neste mundo guardá-la-á para a vida eterna” (Jo 12,25; Mc 8,35; Lc 9,24). Isso dava ânimo para as comunidades cristãs enfrentarem as tribulações.

A palavra usada para tribulação é thlipsis, que significa “aflições”, “premir”, “apertar”, “esmagar”, “oprimir”. “Muitas são as aflições do justo” (Sl 34,19). Essa era a realidade vivida em várias comunidades: Corinto (cf. 2Cor 1,4), Tessalônica (cf. 1Ts 1,6; 3,3-4) e Macedônia (cf. 2Cor 8,2). A tribulação produz a perseverança (cf. Rm 5,3-5). “É necessário que passemos por mui­tas tribulações para entrar no Reino de Deus” (At 14,22). Entregar-se até a morte não é um ato de suicídio, mas sim uma disposição em vista de um projeto maior. O livro dos Atos dos Apóstolos descreve, com muitos detalhes, a prisão de Paulo (cf. At 21,18; 23,18; 25,14.27; 28,17).

Muitos advertem sobre o perigo que Paulo corre em Jerusalém (cf. At 21,4.11). Contudo, ele segue em frente. Responde: “De modo nenhum considero minha vida preciosa, contanto que eu leve a bom termo a minha carreira e o serviço que recebi do Senhor Jesus, ou seja, testemunhar o evangelho da graça de Deus” (At 20,24; Mc 8,35; Lc 9,24; Jo 12,25). Paulo, como Jesus, testemunhará até o fim. Ele assume a diakonia, o serviço fiel ao anúncio do evangelho. A sua única preocupação nasce do amor que transborda em compromisso com a vida das pessoas.

 

d) Despedida e exortação (At 20,25-28)

O discurso atinge aqui um momento emocionante. Paulo apela para os sentimentos de seus interlocutores: “Agora, porém, tenho certeza de que vocês não verão mais o meu rosto, todos vocês entre os quais passei pregando o Reino” (At 20,25). Essas palavras devem ter caído fundo no coração dos ouvintes. Nós sabemos como é difícil despedir-se para sempre de uma pessoa querida. Dói muito.

Novamente Paulo evoca o seu testemunho e se sente tranquilo, pois nada omitiu: “Eu estou puro do sangue de todos” (At 20,26). Essa é uma frase bíblica que indica inocência (cf. Dn 13,46; At 5,28; 18,6). Paulo sempre esteve atento às necessidades das comunidades, soube guiar e animar as pessoas na vivência do amor mútuo, essência do evangelho.

Agora, a responsabilidade cabe à nova liderança. Os anciãos foram instituídos como guardiões da comunidade pelo Espírito Santo. Por isso, Paulo faz-lhes várias recomendações: cuidem de vocês! Sejam bons, coerentes, pessoas fiéis à missão. Isso exige amor concreto. Cuidem do rebanho, poimnion — esta palavra aparece poucas vezes no Novo Testamento. No evangelho de Lucas, a comunidade cristã é chamada de rebanho: “Não temas, pequeno rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o Reino” (Lc 12,32).

A palavra rebanho supõe um grupo que necessita de alguém que cuide e acompanhe. Essa é a função dos epíscopos (cf. At 20,28; Fl 1,1; 1Tm 3,2; Tt 3,2; 1Pd 2,25). Eles têm a missão de animar as comunidades cristãs, de ajudar a cuidar das sementes do evangelho, para que elas floresçam. Que o amor seja o cimento que unifique as pessoas na vivência comunitária. Esse grupo foi escolhido para apascentar a “Igreja de Deus, que ele adquiriu para si com o sangue do seu próprio Filho” (At 20,28; Is 53,10). É preciso permanecer vigilantes.

e) O futuro da comunidade (At 20,29-31)

Seguindo a estrutura do discurso de despedida, após as exortações, Paulo faz algumas advertências. Ele diz bem claro: “Após a minha partida, vão se introduzir entre vós lobos ferozes que não pouparão o rebanho; do meio de vós mesmos surgirão homens de palavras perversas, que arrastarão os discípulos atrás de si” (At 20,30).

No evangelho de Mateus, encontramos um alerta contra os falsos profetas: “Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós vestidos de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes” (Mt 7,15). Os perigos internos são uma referência contra os membros que se deixarão arrastar por outras ideologias (cf. Lc 21,8). Com certeza, no ano 85, muitos já tinham abandonado a comunidade cristã.

Paulo recomenda: “Fiquem vigiando”. Vigiar é cuidar, amar, proteger. Não desanimem. Paulo se apresenta como exemplo: “Durante três anos, dia e noite, não parei de admoestar com lágrimas a cada um de vocês” (At 20,31).

f) Recomendação ao Senhor (At 20,32)

Paulo reza pelos dirigentes: “Eu os entrego ao Senhor e à palavra de sua graça”. Quem dirige a comunidade, sob a guia dos pastores, é a Palavra do Senhor. É a Palavra de Deus que capacita os seus servos no serviço fiel e constante do anúncio da boa nova, na construção e animação da comunidade.

A herança de Paulo aos presbíteros não se constitui de estruturas ou formas de organizar as comunidades, mas da Palavra de Deus, da exigência do amor solidário e da oração. Esse tripé sustenta a comunidade. A herança de Paulo é o seu próprio exemplo de missionário, guiado pela Palavra..

g) As exortações continuam (At 20,33-35)

Nestes versículos, mais uma vez, Paulo se apresenta como exemplo para os presbíteros: “Não cobicei prata, nem ouro, nem vestes de ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos providenciaram o que era necessário para mim e para os que estavam comigo”.

O ouro, a prata e as vestimentas de luxo, no mundo bíblico, significam riqueza acumulada. Paulo é contra a acumulação e pede que os presbíteros se libertem desse perigo. Apresenta suas mãos — provavelmente, mãos calejadas —, a única prova de sua dedicação aos pobres. O fruto do trabalho tem de ser partilhado, nada de acumulação e nem de viver à custa da comunidade. E assim o discurso termina, com um provérbio grego que lembra o ensinamento de Jesus: “Há mais felicidade em dar do que em receber” (At 20,35; Lc 6,38; 6,30.35).

h) Oração final (At 20,36-38)

Todos se põem de joelhos e rezam. A emoção é muito forte. A oração sela o compromisso e renova a confiança. Todos choram. O choro é um grito. É a reação natural que temos diante de uma situação de perda. Sinal do envolvimento afetivo da comunidade para com Paulo e vice-versa. A comunidade sabe que não mais verá Paulo, mas ele continuará sempre presente por meio de seus ensinamentos, sobretudo por meio de seus gestos de amor e doação. Como ele mesmo disse: eu dei tudo… Agora é com vocês.

Em síntese, o discurso de Paulo apresenta a verdadeira imagem da missionária e do missionário, como aquela(e) que se põe a serviço do Senhor, no anúncio fiel e constante da Palavra. Essa entrega é fruto do amor e da convivência fraterna. A oração, a fidelidade ao evangelho e o amor solidário constituem a mística que sustenta a vida e a missão das pessoas que exercem alguma forma de liderança nas comunidades. O texto insiste: o compromisso da missionária e do missionário é assumir a missão de serva e de servo do Senhor. Isso requer capacidade de amar a ponto de se comprometer com as pessoas.

É preciso anunciar o evangelho com doação e despojamento, mas acima de tudo com amor. O(a) missionário(a) é chamado(a) a ser solidário(a) com os pobres e buscar o bem comum de todas e todos, mesmo que custe a própria vida. Esse discurso era uma exortação às lideranças das comunidades dos anos 80, as quais estavam vivendo em meio a uma situação de forte conflito: perseguidas pelas autoridades judaicas, pelo império romano, pelas elites dos gregos e pela população em geral. Essa situação atingia o miudinho da vida. Era um verdadeiro fogo cruzado. Permanecer fiel à proposta cristã exigia muita convicção.

Vamos conhecer um pouco mais a história desses conflitos?

 

2. Conflitos externos

a) Conflitos com o judaísmo oficial

No início do movimento de Jesus, as seguidoras e os seguidores eram apenas um grupo de contestação dentro da religião judaica. Esse grupo cresceu; aos poucos, acolheu os estrangeiros, os pobres, os doentes, os deficientes, as mulheres… Para os judeus fariseus, que, após a Guerra Judaica (63-73), exigiam a observância estrita da Lei de Moisés, essas pessoas eram consideradas impuras e pecadoras. As leis se multiplicaram, chegaram a existir 613 regras para ser cumpridas. Aqueles que não cumpriam a Lei eram perseguidos, torturados e expulsos da sinagoga (cf. Mt 10,17).

Os judeus tinham alguns privilégios no império romano, como o direito de praticar a sua religião. Eles eram dispensados de prestar culto ao imperador. Com a separação da sinagoga, as cristãs e os cristãos, além do sofrimento — por terem de se afastar da religião de seus antepassados —, estavam agora desprotegidos, sem direito de se reunir e de realizar seus cultos. Fora da sinagoga, esse grupo ficou exposto à perseguição do império romano.

b) Conflitos com o império romano

O movimento de Jesus foi desenvolvendo-se à sombra da sinagoga e do templo. Como judeus, eles também eram protegidos pelas leis do império romano. A perseguição e a morte de alguns membros da comunidade cristã, como a de Tiago, Pedro e Paulo, foram provocadas pelas acusações das autoridades judaicas. A perseguição de Nero (65 d.C.) foi localizada e esporádica, atingiu apenas a comunidade cristã de Roma.

No tempo de Domiciano (81-96 d.C.), a situação piorou para os judeu-cristãos. O novo imperador reforçou o culto oficial do império: decretou que o imperador devia ser cultuado em todas as cidades sob o domínio de Roma. As doutrinas religiosas que não aceitassem a política imperial seriam enquadradas como religião ilícita.

As cristãs e os cristãos recusaram o culto ao imperador. Foi nessa época que o império romano começou a distinguir a doutrina desse grupo como uma nova religião. Eles apresentavam Cristo como o Senhor, título atribuído ao imperador. Essa pregação era inaceitável, verdadeira afronta à autoridade de Roma. Assim, começou uma perseguição sistemática contra os seguidores e seguidoras de Jesus, a qual durou até o século IV da era cristã.

Muitas pessoas, por causa de sua crença, foram condenadas à morte ou escravizadas e enviadas para as minas, obrigadas a trabalhos forçados. A pena durava dez anos. Nas minas, as condições de trabalho eram totalmente desumanas, o calor era sufocante, muitos não resistiam e morriam lentamente.

 

3. O cotidiano das comunidades cristãs

O anúncio do evangelho e a vivência das seguidoras e dos seguidores de Jesus geraram desconfianças e preconceitos nas cidades. A prática das cristãs e dos cristãos entrou em choque com o interesse das classes dominantes que, muitas vezes, usavam da religião para explorar as pessoas. Isso provocou conflitos e perseguições (cf. At 13,44-52; 16,16-40; 19,13-20).

Nesse contexto, como era o miudinho da vida das seguidoras e seguidores de Jesus?

 

— O cotidiano na cidade: As cidades eram muito pequenas, boa parte do espaço era dedicada a edifícios públicos. A maioria da população morava em casas pequenas. As pessoas passavam a maior parte do tempo nas ruas e nas calçadas, nas praças e nos pórticos. Tudo o que acontecia logo se espalhava pela cidade como rastilho de pólvora. Nesse contexto, surgiam muitas fofocas sobre as reuniões cristãs. Os cultos, feitos às escondidas, geravam dúvidas e desconfianças por parte dos não cristãos. Imagine só: um grupo que se reunia para comer a carne do seu Deus — isso era visto como um rito canibal. Começaram a surgir boatos de que os cristãos imolavam crianças! As cristãs e os cristãos eram também acusados de incesto. Chamavam-se de irmãos entre si. Os de fora viam como uma abominação irmão casando com sua irmã. Era uma verdadeira tortura psicológica. Só mesmo com muita convicção e uma verdadeira experiência de Deus para manter-se fiel.

 

— Na família: A conversão de um membro gerava verdadeiro drama de consciência. Era difícil não comer as carnes sacrificadas aos ídolos sem levantar suspeitas. As saídas secretas para a reunião cristã eram um risco. Dentro da própria casa a pessoa podia ser denunciada pelo pai, pelo marido, pelos filhos ou pelos servos (cf. Lc 21,16; Mt 10,21).

 

— Na escola: O professor era obrigado a consagrar à deusa Minerva o dinheiro do primeiro pagamento de um aluno. Isso era uma tortura para um mestre cristão. Fazia parte do ensino o estudo das divindades e as normas das religiões gregas. Aos cristãos era proibida a leitura dos livros pagãos.

 

 Soldados: O soldado tinha o dever de prestar culto aos deuses romanos, bem como fazer sacrifícios. Aquele que desobedecia era preso e torturado.

 

— Festas: Cada cidade tinha suas festas públicas, que comportavam refeições e divertimentos. As cristãs e os cristãos não participavam dessas festas da cidade, por isso eram malvistos e mesmo hostilizados.

 

Aqui e ali, a comunidade cristã era desprezada e alvo de muitas calúnias e injúrias. Aquele que denunciava uma cristã ou um cristão era recompensado. A pessoa acusada de ser cristã tinha seus bens confiscados e postos em leilão. Nesse caso, as pessoas que moravam mais próximas — os vizinhos — é que tinham o direito de arrematar. Diante das constantes perseguições, muitas pessoas abandonaram a comunidade; outras, por terem vivido uma profunda experiência de amor e de acolhida, resistiram e enfrentaram. A vivência fraterna possibilitou a vivência e a expansão do evangelho.

O sangue de muitos cristãos e cristãs não deixou morrer a nova proposta de vida. Ao contrário, a vivência do amor cresceu dando força e ânimo para as comunidades cristãs continuarem a missão. O livro dos Atos dos Apóstolos, escrito nos anos 80, no contexto da perseguição, faz uma releitura das perseguições vividas pelas comunidades cristãs entre os anos 30 e 60. É um olhar para o passado, a fim de enfrentar o presente e projetar luzes para o futuro. O amor mútuo e a fidelidade dos primeiros cristãos e cristãs animavam as comunidades a continuar firmes na missão.

 

4. O que Paulo diria às comunidades de hoje?

Essa pergunta estava na mente e no coração da comunidade nos anos 80. Numa situação de grande sofrimento, perseguição, morte e evasão dos membros, as comunidades buscam, no ensinamento de Paulo, forças para seguir em frente. E encontram! Paulo enfrentou vários perigos e adversidades, mas não deixou de anunciar, com a vida e a Palavra, o evangelho. Foi um verdadeiro exemplo!

Hoje, o grande problema que as pessoas enfrentam é a luta pela sobrevivência. As tribulações manifestam-se de várias formas na vida do povo. Intensifica-se a perseguição contra os valores que sustentam a vida comunitária. Multiplicam-se os miseráveis e os desvalidos. O desemprego faz parte do cotidiano de milhões de pessoas. A lógica do “salve-se quem puder” prevalece em muitos ambientes. O valor das pessoas é medido por seu poder de consumo. Convivemos com o máximo desenvolvimento das novas tecnologias ao lado de uma multidão de analfabetos. Rápida olhada ao nosso redor é suficiente para percebermos que as desigualdades sociais são muitas.

O neoliberalismo preocupa-se com o bem-estar das elites. A cultura individualista ganha, cada vez mais, espaço na sociedade atual, em detrimento da preocupação com os problemas sociais. A realidade de pobreza, miséria e sofrimento não faz parte do universo de interesse de muitas pessoas. As religiões que mais crescem são aquelas que não se preocupam com as questões sociais, com a fome e a miséria das pessoas, mas com a paz, a harmonia universal, a alegria e a prosperidade.

Nesse contexto, Paulo pediria às comunidades que voltassem às raízes do evangelho, que olhassem para a prática de Jesus e renovassem seu compromisso com os pobres e pequenos. Ele nos daria a mesma recomendação que recebeu da Igreja de Jerusalém: não se esqueçam dos pobres (cf. Gl 2,10). É imprescindível exercer a solidariedade, ser capaz de comprometer-se com as pessoas mais necessitadas. Comprometer-se com a outra e com o outro. Amar e deixar-se amar pelas pessoas. Ter o mesmo amor de mãe e de pai, que, no último momento de vida, ainda são capazes de pensar na continuidade da vida de outra pessoa. Paulo gostaria de dizer: agora eu posso partir, pois sei que as comunidades serão bem cuidadas. Possivelmente, Rosalina também partiu com a certeza de que Joãozinho seria bem cuidado.

O que você acha que a sua comunidade precisa ouvir para manter viva a esperança e continuar fiel no seguimento de Jesus?

Bibliografia

 

Centro Bíblico Verbo, No caminho das comunidades… Atos dos Apóstolos: roteiros e subsídios para encontros, vol. 1, São Paulo, Paulus, 2001.

Centro Bíblico Verbo, No caminho das comunidades… Atos dos Apóstolos: roteiros e subsídios para encontros, vol. 2, São Paulo, Paulus, 2001.

 

Maria Antônia Marque; Shigeyuki Nakanose, svd

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-biblicos/a-missao-nasce-do-amor/

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