sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

REFLEXÃO DOMINICAL I SAGRADA FAMÍLIA, JESUS, MARIA E JOSÉ – B

 

 

REFLEXÃO DOMINICAL  I

SAGRADA FAMÍLIA, JESUS, MARIA E JOSÉ – B

 

A Festa da Sagrada Família insere-se, teologicamente, na linha da missa da Noite de Natal: a contemplação da condição humana de Jesus. Mas aproveita esta contemplação para encaminhar algumas atitudes concretas para a vida de todos os cristãos de boa vontade, especialmente no relacionamento para com a família, a célula “mater” da sociedade.

A vida da família de Jesus, e, especialmente, a vida de Jesus é um modelo para a vida de todas as famílias cristãs e de todas as comunidades, não somente na linha moralista, nas na linha de comunhão de vida e comunhão de amor, aonde as vidas se fundem em um só coração e em uma só alma.

O importante no dia de hoje é presenciarmos o mistério da Família de Nazaré, para, imbuídos pelo seu espírito, voltar à nossa própria situação pessoal.

Meus irmãos,

A primeira e a segunda leitura elencam um código moral para que possamos viver na nossa vida de família. Estas perícopes não ensinam apenas um bom comportamento, mas, sobretudo, a participação do Mistério da humanidade de Deus: o amor entre os pais e os filhos é extensão e seguimento do amor que Deus tem por nós. Somente depois de ter colocado esta fundamentação, Paulo lembra aos seus paroquianos os bons costumes da civilização judaica na qual vivem. A lição para nós hoje é a seguinte: tomando consciência de que a vida familiar é inserir-se no plano salvífico de Deus, valorizemos positivamente as chances que a estrutura familiar nos dá, para realizar algo de amor que Deus nos mostrou, nos ensinou e nos encaminhou, para que tudo o que fizermos, fazermos em nome do Senhor Jesus.

Caros irmãos,

A primeira leitura (cf. Eclo 3,3-7.14-17a) apresenta indicações práticas em que os filhos devem ter em conta nas relações com os pais. A palavra que preside a este conjunto de conselhos do livro do Eclesiástico é a palavra “honrar” (repete-se 5 vezes, nestes poucos versículos).

O que é que significa, exatamente, “honrar os pais”? Vamos nos reportar ao Decálogo do Sinai (“honra teu pai e tua mãe” – Ex 20,12). Aí, o verbo utilizado é o verbo “kabad”, que costuma traduzir-se como “dar glória”, “dar peso”, “dar importância”. Assim, “honrar os pais” é dar-lhes o devido valor e reconhecer a sua importância; é que eles são os instrumentos de Deus, fonte de vida. Ora, reconhecer que os pais são os instrumentos através dos quais Deus concede a vida deve conduzir os filhos à gratidão; e a gratidão não é apenas uma declaração de intenções, mas um sentimento que implica certas atitudes práticas. O escritor sagrado aponta algumas: “honrar os pais” significa ampará-los na velhice e não os desprezar nem abandonar; significa assisti-los materialmente – sem inventar qualquer desculpa – quando já não podem trabalhar (cf. Mc 7,10-11); significa não fazer nada que os desgoste; significa escutá-los, ter em conta as suas orientações e conselhos; significa ser indulgente para com as limitações que a idade ou a doença trazem. Dado o contexto da época em que o livro foi escrito, é natural que, por detrás destas indicações aos filhos, esteja também a preocupação com o manter bem vivos os valores tradicionais, esses valores que os mais antigos preservam cuidadosamente e que os mais novos, às vezes, negligenciam. Como recompensa desta atitude de “honrar os pais”, assim quem o segue receberá como recompensa o perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus.

Prezados irmãos,

A segunda leitura(cf. Cl 3,12-21) nos questiona: “O que é revestir-se do Homem Novo”? O Apóstolo Paulo ensina que viver como “Homem Novo” é cultivar um conjunto de virtudes que resultam da união do cristão com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, mansidão, paciência. Lugar especial ocupa o perdão das ofensas, a exemplo de Cristo que sempre manifestou uma grande capacidade de perdão. Estas virtudes, que devem ornar a vida do cristão, são exigências e manifestações da caridade, que é a fonte de onde brotam todas as virtudes do cristão. Catálogos de exigências como este apareciam também nos discursos éticos dos gregos. O que é novo aqui é a fundamentação: tais exigências resultam da íntima relação do cristão com Cristo; viver “em Cristo” implica viver, como Ele, no amor total, no serviço, na disponibilidade, no dom da vida. Uma vez apresentado o ideal da vida cristã nas suas linhas gerais, São Paulo aplica o que acabou de dizer ao âmbito mais concreto da vida familiar. Às mulheres, recomenda o respeito para com os maridos (a referência à submissão das esposas deve ser entendida na perspectiva da linguagem e da prática da época); aos maridos, convida a amar as esposas, evitando o domínio tirânico sobre elas; aos filhos, recomenda a obediência aos pais; aos pais, com intuição pedagógica, pede que não sejam excessivamente severos para com os filhos, pois isso pode impedir o normal desenvolvimento das suas capacidades. Para uns e para outros, é essa “caridade” (“agapê”) – entendida como amor de doação, de entrega, a exemplo de Jesus que amou até ao dom da vida – que deve presidir às relações entre os membros de uma família. É desta forma que, no espaço familiar, se manifesta o Homem Novo, o homem transformado por Cristo e que vive segundo Cristo.

O emprego dos termos “eleito, santo, amado”, que antigamente se referiam a Israel, sublinha o fato de que os cristãos estavam conscientes de formar nova comunidade como povo de Deus, e isso devia se refletir em suas mútuas relações. Segue-se uma lista de virtudes que destacam a transformação interna necessária para adquirir um novo comportamento, uma vida nova conformada à de Cristo: humildade, mansidão, paciência etc. A expressão “uns aos outros”, repetida duas vezes (Cl 3, 13.16), sublinha que as responsabilidades são mútuas. A obediência ao Senhor será demonstrada por meio do modo como as responsabilidades comunitárias e familiares são assumidas por todos como testemunho para o mundo. O elenco das regras familiares acentua muito mais as responsabilidades do que os direitos de cada um. Isso é um testemunho para nossa época, na qual as pessoas geralmente põem a exigência dos direitos em primeiro lugar, seja no ambiente eclesial ou familiar.

Irmãos e Irmãs,

Hoje não é possível mais vivermos a família patriarcal. Na maioria das famílias já é reconhecida a paridade, isto é, os direitos iguais, responsabilidades semelhantes para o homem e para a mulher, dentro daquilo que o Código de Direito Canônico ilumina toda a vida matrimonial: “O matrimônio é uma união indissolúvel e unitária, como comunhão de vida e de amor, para toda a vida”. Dentro desta comunhão de amor e de vida, de doação, dando-se e recebendo-se mutuamente, todos nós somos convidados a construir a família na corresponsabilidade do amor, edificando a Igreja Doméstica, como prefiguração da “civilização do amor” nas palavras do Beato Papa Paulo VI, de santa memória.

Meus irmãos,

Ao celebrar, hoje, a Sagrada Família, a Liturgia quer realçar o ambiente humano, concreto, em que se criou o Filho de Deus. Uma família externamente igual a todas as famílias de Nazaré. Uma mãe, que tecia a roupa do marido e do filho. Um homem, José, pai legal de Jesus, que trabalhava na carpintaria. Uma família normalíssima também na pobreza, que levava uma vida diária no trabalho, na oração, na alegria e no sofrimento.

A Sagrada Família ilumina a nossa reflexão acerca do papel de seus atores. José, chamado de “homem justo” (Cf. Mt 1,19). Maria, a “agraciada por Deus”(Cf. Lc 1,28). Jesus, o menino, por ser o primogênito, fora consagrado ao Senhor, como mandava a Lei de Moisés(Cf. Ex 13,2.12.15). E Jesus teve que aprender a ler e a escrever como todas as crianças da escola e decorar as orações costumeiras das famílias judaicas e assimilar a Lei de Moisés, com as diferenças estabelecidas pelos Doutores do templo. Sobre esta família pousava o Espírito Santo de Deus. Com esta família “estava a graça de Deus”(Cf. Mt 13,44), porque José fazia às vezes de Deus Pai, Maria se tornara a Mãe de Deus e o menino era o “Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os Séculos”(Cf. ensinamento do Símbolo da Fé).

A Festa da Sagrada Família é o momento privilegiado que a liturgia nos oferece para celebrarmos esta realidade tão importante e atual em nossas vidas: somos família. O Pai Eterno quis ser hóspede em nossa vida: somos Igreja Família. Deus, na sua misericórdia infinita, se fez tão próximo, tão íntimo, que se tornou familiar para nós, tornou-se um de nós, membro da nossa família, gente muito próximo, ou seja, de casa.

Somos família também porque a fé em Cristo nos faz todos irmãos e irmãs. Jesus veio fazer parte da grande família humana, revelando a dignidade de todos e de cada ser humano. Veio também congregar numa só família, que é a Santa Igreja Católica, aqueles e aquelas que, acolhendo ao projeto do Pai, se põem a viver e construir novas relações entre si, relações de amor, de serviço e de vida.

Diante de tudo isso cabe uma pergunta: aonde vai a família? Como vai a família? Aqui vale a mensagem de Dona Carmem Damasceno Assis, falecida em 2008, depois de uma vida virtuosíssima, ao se dirigir a outro Santo, Dom Luciano Mendes de Almeida: “Senhor Arcebispo, reze muito pela família. Parece que ela está desaparecendo. Sem família não há Deus”.

A preocupação da saudosa confessora da fé, Dona Carmem, deve ser a preocupação de todos os homens e mulheres de boa vontade: olhar para a realidade de sua família e procurar ajudar que a sua família se configure cada vez mais aos mistérios da Família de Nazaré. Não há tesouro maior do que o amor de pai, o amor de mãe, o amor de filho para pai e vice-versa.

Como a Encarnação do Cristo eleva a natureza humana a ser capaz de conter Deus – assim também sua habitação num lar humano faz deste lar uma casa de Deus, o que é a vocação de todos os lares: serem lugares de tanta bondade, que até Deus aí se sinta em casa. Esta é a missão nossa, fazer de nossas famílias, casa e morada de Deus, assim, construiremos aqui e agora a grande família de paz e solidariedade em Cristo Senhor.

Não poderia deixar neste dia da família de lembrar de muitas crianças são órfãs de pais vivos, passam o dia nas praças e nos sinais de trânsito, quando seus pais deveriam cuidar para que estivessem na escola, com acesso à educação e ao aprendizado sobre cidadania. Outras são entregues aos avós, que, apesar da velhice e das enfermidades, têm de assumir a responsabilidade pelos netos. Da mesma forma, filhos abandonam os pais idosos em asilos e abrigos filantrópicos, pois não aprenderam o significado do mandamento de honrar pai e mãe. A família estável, fundamentada no amor do casal, o qual acolhe os filhos como dons de Deus, é a única viável e possível. Somente o amor fiel e verdadeiro entre o casal pode acolher e educar os filhos como verdadeiros seres humanos, na transmissão dos valores que nos foram legados por Cristo. Além disso, a verdadeira família não é fechada em si mesma, mas age em interação com outras famílias, formando comunidades que difundem a responsabilidade e o cuidado de uns para com os outros. Por meio da interação comunitária também se corrigem posturas retrógradas e egoístas, fazendo que o bem progrida na sociedade humana. Seria bom dizer sobre a família o mesmo que é dito sobre Jesus no texto do Evangelho desta liturgia: “crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria e da graça de Deus”.

Caros irmãos,

O Evangelho fala do menino que crescia cheio de sabedoria(cf. Lc 2,22-40). A cena da apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém apresenta uma catequese bem amadurecida e bem refletida, que procura dizer quem é Jesus e qual a sua missão no mundo. Antes de mais, o autor sublinha repetidamente a fidelidade da família de Jesus à Lei do Senhor (vers. 22.23.24), como se quisesse deixar claro que Jesus, desde o início da sua caminhada entre os homens, viveu na escrupulosa fidelidade aos mandamentos e aos projetos do Pai. A missão de Jesus no mundo passa por aí – pelo cumprimento rigoroso da vontade e do projeto do Pai.

No Templo, duas personagens acolhem Jesus: Simeão e Ana. Eles representam esse Israel fiel que espera ansiosamente a sua libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu Povo.

De Simeão se sabe que era um homem “justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel” (vers. 25). As palavras e os gestos de Simeão são particularmente sugestivos: Simeão toma Jesus nos braços e apresenta-O ao mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus que oferecer “a todos os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel” (vers. 28-32). Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como esse Messias libertador e salvador, a quem Deus enviou – não só ao seu povo, mas a todos os povos da terra. Aqui desponta um tema muito querido a Lucas: o da universalidade da salvação de Deus. Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para todos os povos, independentemente da sua raça, da sua cultura, das suas fronteiras, dos seus esquemas religiosos. As palavras que Simeão dirige a Maria (“este menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; e uma espada trespassará a tua alma” – vers. 34-35) aludem, provavelmente, à divisão que a proposta de Jesus provocará em Israel e ao resultado dessa divisão – o drama da cruz.

Ana é, também, uma figura do Israel pobre e sofredor (“viúva”), que se manteve fiel a Deus (não se voltou a casar, após a morte do marido – vers. 37), que espera a salvação de Deus. Depois de reconhecer em Jesus a salvação anunciada por Deus, ela “falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém” (vers. 38). A palavra utilizada por Lucas para falar de libertação é a palavra grega “lustrosis” (“resgate”), utilizada no Êxodo para falar da libertação da escravidão do Egito (cf. Ex 13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16). Jesus é, assim, apresentado por Lucas como o Messias libertador, que vai conduzir o seu Povo do domínio da escravidão para o domínio da liberdade. A apresentação no Templo de um primogénito celebrava precisamente a libertação do Egito e a passagem da escravidão para a liberdade (cf. Ex 13, 11-16).

O texto termina com uma referência ao resto da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” e “graça”. Trata-se de atributos que lhe vêm do Pai e que atestam, portanto, a sua divindade (vers. 40). Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens com uma missão que lhe foi confiada pelo Pai. O objetivo de Jesus é cumprir integralmente o projeto do Pai. E esse projeto passa por levar os homens da escravidão para a liberdade e em apresentar a proposta de salvação de Deus a todos os povos da terra, mesmo àqueles que não pertencem tradicionalmente à comunidade do Povo de Deus.

Meus caros irmãos,

A Família de Nazaré é para nós um vivo exemplo de modelo de fé.  Maria foi uma mulher, uma mãe que acreditou no Senhor em todas as circunstâncias, inclusive na paixão e morte de Jesus, inclusive quando sepultou o Filho, para quem estava prometido “o trono de Davi e um reinado sem fim”(Cf. Lc 1,32-33). Pode-se dizer que aquilo que São José fez o uniu, de maneira magnífica e especial, à fé de Maria: ele soube aceitar como verdade proveniente de Deus o que Maria tinha aceitado na Anunciação. Maria e José fizeram o seu itinerário de caminhada de fé. Foram verdadeiros “peregrinos da fé”. Fé nas promessas escutadas. Fé vivida no cotidiano na guarda, educação e crescimento do menino. Foram os primeiros depositários do mistério divino.

A Liturgia de hoje, também, apresenta uma outra família, a de Abraão, Sara e Isaac. Abraão é chamado de nosso “pai na fé”. Ele funda toda a vida unicamente sobre Deus e não vacila nem mesmo no momento em que Deus lhe pede o sacrifício do filho único(Cf. Gn 22,1-19). É bom notar a esperança de Abraão a quem Deus prometera multiplicar a descendência como as estrelas do céu(Cf. Gn 15,5). Podemos proclamar que Abraão acreditou no Senhor. São Paulo, assim, nos ensina que Abraão encarna a fé que é o fundamento do que se espera e a convicção das realidades que não vêem(Cf. Hb 11,1).

Por isso, a Igreja coloca a Sagrada Família e a Família de Abraão, Sara e Isaac como modelos a serem seguidos. Modelos de quem aderiu, com fé autêntica e verdadeira, à vontade de Deus. A fé verdadeira, que se abre para Deus, ouve a sua Palavra e a coloca em prática(Cf. Lc 8,21), mesmo que seja necessário esperar contra toda a esperança humana(Cf. Rm 4,18). A fé que devemos professar ao mundo é integrante da nossa família, da nossa condição humana, e é isso que hoje celebramos. Celebrar a vida na família, como experiência de uma caminhada de fé autêntica e atuante, evangelizadora. Que Jesus, Maria e José nos ajude neste bom propósito.

Padre Wagner Augusto Portugal.

 

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