REFLEXÃO
DOMINICAL I
SAGRADA FAMÍLIA, JESUS, MARIA E JOSÉ –
B
A Festa da Sagrada
Família insere-se, teologicamente, na linha da missa da Noite de Natal: a
contemplação da condição humana de Jesus. Mas aproveita esta contemplação para
encaminhar algumas atitudes concretas para a vida de todos os cristãos de boa
vontade, especialmente no relacionamento para com a família, a célula “mater” da
sociedade.
A vida da família de Jesus, e, especialmente,
a vida de Jesus é um modelo para a vida de todas as famílias cristãs e de todas
as comunidades, não somente na linha moralista, nas na linha de comunhão de
vida e comunhão de amor, aonde as vidas se fundem em um só coração e em uma só
alma.
O importante no dia de hoje é presenciarmos o
mistério da Família de Nazaré, para, imbuídos pelo seu espírito, voltar à nossa
própria situação pessoal.
Meus irmãos,
A primeira e a
segunda leitura elencam um código moral para que possamos viver na nossa vida
de família. Estas perícopes não ensinam apenas um bom comportamento, mas,
sobretudo, a participação do Mistério da humanidade de Deus: o amor entre os
pais e os filhos é extensão e seguimento do amor que Deus tem por nós. Somente
depois de ter colocado esta fundamentação, Paulo lembra aos seus paroquianos os
bons costumes da civilização judaica na qual vivem. A lição para nós hoje é a seguinte:
tomando consciência de que a vida familiar é inserir-se no plano salvífico de
Deus, valorizemos positivamente as chances que a estrutura familiar nos dá,
para realizar algo de amor que Deus nos mostrou, nos ensinou e nos encaminhou,
para que tudo o que fizermos, fazermos em nome do Senhor Jesus.
Caros irmãos,
A primeira leitura (cf. Eclo 3,3-7.14-17a)
apresenta indicações práticas em que os filhos devem ter em conta nas relações
com os pais. A palavra que preside a este conjunto de conselhos do livro do
Eclesiástico é a palavra “honrar” (repete-se 5 vezes, nestes poucos
versículos).
O que é que significa, exatamente, “honrar os
pais”? Vamos nos reportar ao Decálogo do Sinai (“honra teu pai e tua mãe” – Ex
20,12). Aí, o verbo utilizado é o verbo “kabad”, que costuma traduzir-se como
“dar glória”, “dar peso”, “dar importância”. Assim, “honrar os pais” é dar-lhes
o devido valor e reconhecer a sua importância; é que eles são os instrumentos
de Deus, fonte de vida. Ora, reconhecer que os pais são os instrumentos através
dos quais Deus concede a vida deve conduzir os filhos à gratidão; e a gratidão
não é apenas uma declaração de intenções, mas um sentimento que implica certas
atitudes práticas. O escritor sagrado aponta algumas: “honrar os pais”
significa ampará-los na velhice e não os desprezar nem abandonar; significa
assisti-los materialmente – sem inventar qualquer desculpa – quando já não
podem trabalhar (cf. Mc 7,10-11); significa não fazer nada que os desgoste;
significa escutá-los, ter em conta as suas orientações e conselhos; significa
ser indulgente para com as limitações que a idade ou a doença trazem. Dado o
contexto da época em que o livro foi escrito, é natural que, por detrás destas
indicações aos filhos, esteja também a preocupação com o manter bem vivos os
valores tradicionais, esses valores que os mais antigos preservam
cuidadosamente e que os mais novos, às vezes, negligenciam. Como recompensa
desta atitude de “honrar os pais”, assim quem o segue receberá como recompensa
o perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus.
Prezados irmãos,
A segunda leitura(cf. Cl 3,12-21) nos
questiona: “O que é revestir-se do Homem Novo”? O Apóstolo Paulo ensina que
viver como “Homem Novo” é cultivar um conjunto de virtudes que resultam da
união do cristão com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, mansidão,
paciência. Lugar especial ocupa o perdão das ofensas, a exemplo de Cristo que
sempre manifestou uma grande capacidade de perdão. Estas virtudes, que devem
ornar a vida do cristão, são exigências e manifestações da caridade, que é a
fonte de onde brotam todas as virtudes do cristão. Catálogos de exigências como
este apareciam também nos discursos éticos dos gregos. O que é novo aqui é a
fundamentação: tais exigências resultam da íntima relação do cristão com
Cristo; viver “em Cristo” implica viver, como Ele, no amor total, no serviço,
na disponibilidade, no dom da vida. Uma vez apresentado o ideal da vida cristã
nas suas linhas gerais, São Paulo aplica o que acabou de dizer ao âmbito mais
concreto da vida familiar. Às mulheres, recomenda o respeito para com os
maridos (a referência à submissão das esposas deve ser entendida na perspectiva
da linguagem e da prática da época); aos maridos, convida a amar as esposas,
evitando o domínio tirânico sobre elas; aos filhos, recomenda a obediência aos
pais; aos pais, com intuição pedagógica, pede que não sejam excessivamente
severos para com os filhos, pois isso pode impedir o normal desenvolvimento das
suas capacidades. Para uns e para outros, é essa “caridade” (“agapê”) –
entendida como amor de doação, de entrega, a exemplo de Jesus que amou até ao
dom da vida – que deve presidir às relações entre os membros de uma família. É
desta forma que, no espaço familiar, se manifesta o Homem Novo, o homem
transformado por Cristo e que vive segundo Cristo.
O emprego dos termos “eleito, santo, amado”,
que antigamente se referiam a Israel, sublinha o fato de que os cristãos
estavam conscientes de formar nova comunidade como povo de Deus, e isso devia
se refletir em suas mútuas relações. Segue-se uma lista de virtudes que destacam
a transformação interna necessária para adquirir um novo comportamento, uma
vida nova conformada à de Cristo: humildade, mansidão, paciência etc. A
expressão “uns aos outros”, repetida duas vezes (Cl 3, 13.16), sublinha que as
responsabilidades são mútuas. A obediência ao Senhor será demonstrada por meio
do modo como as responsabilidades comunitárias e familiares são assumidas por
todos como testemunho para o mundo. O elenco das regras familiares acentua
muito mais as responsabilidades do que os direitos de cada um. Isso é um
testemunho para nossa época, na qual as pessoas geralmente põem a exigência dos
direitos em primeiro lugar, seja no ambiente eclesial ou familiar.
Irmãos e Irmãs,
Hoje não é possível
mais vivermos a família patriarcal. Na maioria das famílias já é reconhecida a
paridade, isto é, os direitos iguais, responsabilidades semelhantes para o
homem e para a mulher, dentro daquilo que o Código de Direito Canônico ilumina
toda a vida matrimonial: “O
matrimônio é uma união indissolúvel e unitária, como comunhão de vida e de
amor, para toda a vida”. Dentro desta comunhão de amor
e de vida, de doação, dando-se e recebendo-se mutuamente, todos nós somos
convidados a construir a família na corresponsabilidade do amor, edificando a
Igreja Doméstica, como prefiguração da “civilização do amor” nas
palavras do Beato Papa Paulo VI, de santa memória.
Meus irmãos,
Ao celebrar, hoje, a Sagrada Família, a
Liturgia quer realçar o ambiente humano, concreto, em que se criou o Filho de
Deus. Uma família externamente igual a todas as famílias de Nazaré. Uma mãe,
que tecia a roupa do marido e do filho. Um homem, José, pai legal de Jesus, que
trabalhava na carpintaria. Uma família normalíssima também na pobreza, que
levava uma vida diária no trabalho, na oração, na alegria e no sofrimento.
A Sagrada Família
ilumina a nossa reflexão acerca do papel de seus atores. José, chamado de “homem justo” (Cf. Mt
1,19). Maria, a “agraciada
por Deus”(Cf. Lc 1,28). Jesus, o menino, por ser o primogênito,
fora consagrado ao Senhor, como mandava a Lei de Moisés(Cf. Ex 13,2.12.15). E
Jesus teve que aprender a ler e a escrever como todas as crianças da escola e
decorar as orações costumeiras das famílias judaicas e assimilar a Lei de
Moisés, com as diferenças estabelecidas pelos Doutores do templo. Sobre esta
família pousava o Espírito Santo de Deus. Com esta família “estava a graça de Deus”(Cf.
Mt 13,44), porque José fazia às vezes de Deus Pai, Maria se tornara a Mãe de
Deus e o menino era o “Filho
unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os Séculos”(Cf.
ensinamento do Símbolo da Fé).
A Festa da Sagrada Família é o momento
privilegiado que a liturgia nos oferece para celebrarmos esta realidade tão
importante e atual em nossas vidas: somos família. O Pai Eterno quis ser hóspede
em nossa vida: somos Igreja Família. Deus, na sua misericórdia infinita, se fez
tão próximo, tão íntimo, que se tornou familiar para nós, tornou-se um de nós,
membro da nossa família, gente muito próximo, ou seja, de casa.
Somos família também porque a fé em Cristo
nos faz todos irmãos e irmãs. Jesus veio fazer parte da grande família humana,
revelando a dignidade de todos e de cada ser humano. Veio também congregar numa
só família, que é a Santa Igreja Católica, aqueles e aquelas que, acolhendo ao
projeto do Pai, se põem a viver e construir novas relações entre si, relações
de amor, de serviço e de vida.
Diante de tudo isso
cabe uma pergunta: aonde vai a família? Como vai a família? Aqui vale a
mensagem de Dona Carmem Damasceno Assis, falecida em 2008, depois de uma vida
virtuosíssima, ao se dirigir a outro Santo, Dom Luciano Mendes de
Almeida: “Senhor
Arcebispo, reze muito pela família. Parece que ela está desaparecendo. Sem
família não há Deus”.
A preocupação da saudosa confessora da fé,
Dona Carmem, deve ser a preocupação de todos os homens e mulheres de boa
vontade: olhar para a realidade de sua família e procurar ajudar que a sua
família se configure cada vez mais aos mistérios da Família de Nazaré. Não há
tesouro maior do que o amor de pai, o amor de mãe, o amor de filho para pai e
vice-versa.
Como a Encarnação do Cristo eleva a natureza
humana a ser capaz de conter Deus – assim também sua habitação num lar humano
faz deste lar uma casa de Deus, o que é a vocação de todos os lares: serem
lugares de tanta bondade, que até Deus aí se sinta em casa. Esta é a missão
nossa, fazer de nossas famílias, casa e morada de Deus, assim, construiremos
aqui e agora a grande família de paz e solidariedade em Cristo Senhor.
Não poderia deixar neste dia da família de
lembrar de muitas crianças são órfãs de pais vivos, passam o dia nas praças e
nos sinais de trânsito, quando seus pais deveriam cuidar para que estivessem na
escola, com acesso à educação e ao aprendizado sobre cidadania. Outras são
entregues aos avós, que, apesar da velhice e das enfermidades, têm de assumir a
responsabilidade pelos netos. Da mesma forma, filhos abandonam os pais idosos
em asilos e abrigos filantrópicos, pois não aprenderam o significado do
mandamento de honrar pai e mãe. A família estável, fundamentada no amor do
casal, o qual acolhe os filhos como dons de Deus, é a única viável e possível.
Somente o amor fiel e verdadeiro entre o casal pode acolher e educar os filhos
como verdadeiros seres humanos, na transmissão dos valores que nos foram
legados por Cristo. Além disso, a verdadeira família não é fechada em si mesma,
mas age em interação com outras famílias, formando comunidades que difundem a
responsabilidade e o cuidado de uns para com os outros. Por meio da interação
comunitária também se corrigem posturas retrógradas e egoístas, fazendo que o
bem progrida na sociedade humana. Seria bom dizer sobre a família o mesmo que é
dito sobre Jesus no texto do Evangelho desta liturgia: “crescia e tornava-se
forte, cheio de sabedoria e da graça de Deus”.
Caros irmãos,
O Evangelho fala do menino que crescia cheio
de sabedoria(cf. Lc 2,22-40). A cena da apresentação de Jesus no Templo de
Jerusalém apresenta uma catequese bem amadurecida e bem refletida, que procura
dizer quem é Jesus e qual a sua missão no mundo. Antes de mais, o autor
sublinha repetidamente a fidelidade da família de Jesus à Lei do Senhor (vers.
22.23.24), como se quisesse deixar claro que Jesus, desde o início da sua
caminhada entre os homens, viveu na escrupulosa fidelidade aos mandamentos e
aos projetos do Pai. A missão de Jesus no mundo passa por aí – pelo cumprimento
rigoroso da vontade e do projeto do Pai.
No Templo, duas personagens acolhem Jesus:
Simeão e Ana. Eles representam esse Israel fiel que espera ansiosamente a sua
libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu Povo.
De Simeão se sabe que era um homem “justo e
piedoso, que esperava a consolação de Israel” (vers. 25). As palavras e os
gestos de Simeão são particularmente sugestivos: Simeão toma Jesus nos braços e
apresenta-O ao mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus que oferecer “a
todos os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel” (vers.
28-32). Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como esse Messias libertador
e salvador, a quem Deus enviou – não só ao seu povo, mas a todos os povos da
terra. Aqui desponta um tema muito querido a Lucas: o da universalidade da
salvação de Deus. Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para
todos os povos, independentemente da sua raça, da sua cultura, das suas
fronteiras, dos seus esquemas religiosos. As palavras que Simeão dirige a Maria
(“este menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e
para ser sinal de contradição; e uma espada trespassará a tua alma” – vers.
34-35) aludem, provavelmente, à divisão que a proposta de Jesus provocará em
Israel e ao resultado dessa divisão – o drama da cruz.
Ana é, também, uma figura do Israel pobre e
sofredor (“viúva”), que se manteve fiel a Deus (não se voltou a casar, após a
morte do marido – vers. 37), que espera a salvação de Deus. Depois de
reconhecer em Jesus a salvação anunciada por Deus, ela “falava do menino a
todos os que esperavam a redenção de Jerusalém” (vers. 38). A palavra utilizada
por Lucas para falar de libertação é a palavra grega “lustrosis” (“resgate”),
utilizada no Êxodo para falar da libertação da escravidão do Egito (cf. Ex
13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16). Jesus é, assim, apresentado por Lucas como o
Messias libertador, que vai conduzir o seu Povo do domínio da escravidão para o
domínio da liberdade. A apresentação no Templo de um primogénito celebrava
precisamente a libertação do Egito e a passagem da escravidão para a liberdade
(cf. Ex 13, 11-16).
O texto termina com uma referência ao resto
da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” e “graça”.
Trata-se de atributos que lhe vêm do Pai e que atestam, portanto, a sua
divindade (vers. 40). Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens com uma
missão que lhe foi confiada pelo Pai. O objetivo de Jesus é cumprir
integralmente o projeto do Pai. E esse projeto passa por levar os homens da
escravidão para a liberdade e em apresentar a proposta de salvação de Deus a
todos os povos da terra, mesmo àqueles que não pertencem tradicionalmente à
comunidade do Povo de Deus.
Meus caros irmãos,
A Família de Nazaré é
para nós um vivo exemplo de modelo de fé. Maria foi uma mulher, uma mãe
que acreditou no Senhor em todas as circunstâncias, inclusive na paixão e morte
de Jesus, inclusive quando sepultou o Filho, para quem estava prometido “o trono de Davi e um reinado sem fim”(Cf.
Lc 1,32-33). Pode-se dizer que aquilo que São José fez o uniu, de maneira
magnífica e especial, à fé de Maria: ele soube aceitar como verdade proveniente
de Deus o que Maria tinha aceitado na Anunciação. Maria e José fizeram o seu
itinerário de caminhada de fé. Foram verdadeiros “peregrinos da fé”. Fé
nas promessas escutadas. Fé vivida no cotidiano na guarda, educação e
crescimento do menino. Foram os primeiros depositários do mistério divino.
A Liturgia de hoje,
também, apresenta uma outra família, a de Abraão, Sara e Isaac. Abraão é
chamado de nosso “pai
na fé”. Ele funda toda a vida unicamente sobre Deus e não
vacila nem mesmo no momento em que Deus lhe pede o sacrifício do filho
único(Cf. Gn 22,1-19). É bom notar a esperança de Abraão a quem Deus prometera
multiplicar a descendência como as estrelas do céu(Cf. Gn 15,5). Podemos
proclamar que Abraão acreditou no Senhor. São Paulo, assim, nos ensina que Abraão
encarna a fé que é o fundamento do que se espera e a convicção das realidades
que não vêem(Cf. Hb 11,1).
Por isso, a Igreja coloca a Sagrada Família e
a Família de Abraão, Sara e Isaac como modelos a serem seguidos. Modelos de
quem aderiu, com fé autêntica e verdadeira, à vontade de Deus. A fé verdadeira,
que se abre para Deus, ouve a sua Palavra e a coloca em prática(Cf. Lc 8,21),
mesmo que seja necessário esperar contra toda a esperança humana(Cf. Rm 4,18).
A fé que devemos professar ao mundo é integrante da nossa família, da nossa
condição humana, e é isso que hoje celebramos. Celebrar a vida na família, como
experiência de uma caminhada de fé autêntica e atuante, evangelizadora. Que
Jesus, Maria e José nos ajude neste bom propósito.
Padre Wagner Augusto
Portugal.
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