REFLEXÃO II
29 de março –
SEXTA-FEIRA SANTA
Por
Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
SERVO,
SACERDOTE E REI
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A teologia do Antigo
Testamento destacou três grandes tipos de mediadores entre Deus e o povo: o
Servo do Senhor, o Rei Messias e o Sumo Sacerdote dos últimos tempos. O Rei
deveria manter o povo fiel à aliança e defendê-lo de quaisquer adversários. Ele
era apenas um representante de Deus, do verdadeiro rei de Israel. O Sacerdote
tinha por objetivo fazer o encontro entre o Senhor e o povo por meio de
diversos tipos de sacrifícios. Nesses ritos, pela mediação do sacerdote, o povo
se oferecia a Deus e recebia as bênçãos dessa comunhão espiritual. A missão
desses mediadores era a reconciliação do povo com Deus com base numa
restauração religiosa e moral. Ao realizar essa reconciliação, cada mediador
seria agente de libertação de um cativeiro maior que qualquer outro verificado
na história, a escravidão do pecado. Essas teologias sobre os mediadores estão
reunidas em Jesus, que as assume, corrige e plenifica.
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
Evangelho (Jo 18,1-19,42): Eis o vosso Rei!
Nesse texto, temos o
relato do julgamento, da condenação e da crucificação de Jesus. O sofrimento de
Cristo nos é apresentado à luz da fé no Ressuscitado. Por isso, todo o relato é
envolvido pela soberania de Jesus. Desde a prisão até a crucificação, aparece
sua profunda liberdade. Tudo o que lhe acontece é resultado de sua “entrega
livre e obediente”.
O
que Jesus disse na última ceia a respeito de sua entrega em favor do ser humano
se concretiza agora no processo que culmina com sua morte na cruz. No relato da
traição e prisão (18,1-11), dá-se início à glorificação de Jesus pela via crucis. O
relato é dominado pela liberdade com que Jesus se entrega. Não são seus
“inimigos” que o prendem, mas ele próprio que se entrega para ser preso e
julgado. Manifestam-se, assim, a liberdade com que conduz sua vida e o sentido
que tem sua morte, pois ninguém poderia pôr-lhe as mãos se ele não se
entregasse livremente (cf. 10,17-18).
Durante o julgamento
(18,12–19,16), permanece o significado dado aos acontecimentos: a entrega de
Jesus. E nessa entrega manifesta-se sua realeza, não no sentido que o mundo
conhece, mas como manifestação do dom de si, no amor e na prática da vontade de
Deus. Pois a expressão “reino de Deus” significa a soberania da vontade divina
sobre a criação e a história. No momento de sua morte, Jesus mostra quanto a
vontade de Deus é soberana em sua vida, pois nada o impede de cumpri-la, nem
mesmo a tortura da cruz. E a vontade de Deus, em resumo, é o amor.
A paixão (19,17-42)
caracteriza-se como reação do mundo às palavras de Jesus. A rejeição que ele
sofreu durante seu ministério encontra, aqui, sua forma definitiva. Deus dá sua
resposta ante a recusa do mundo: uma resposta de amor, pois aquele a quem o
mundo rejeita é o vencedor. A entrega de Jesus manifesta-se na sua atitude de dirigir-se
livremente ao encontro da cruz. Sua hora chegou, a hora de sua exaltação.
A crucificação de
Jesus também é antecipação do juízo divino. Na cruz, Jesus se torna juiz de
seus acusadores. Aqueles a quem foi enviado rejeitam-no. Na cruz realiza-se o juízo
escatológico, salvação para os discípulos e condenação para o mundo.
Na cena da mãe e do
discípulo, o texto mostra em primeiro plano a comunidade messiânica que nasce
em torno da cruz. Ambos, mulher e Discípulo Amado, desempenham papéis
representativos. A mulher representa a personificação de Sião/Jerusalém (cf. Is
66,7-8; 60,4), e o Discípulo, a comunidade.
Na
cruz se consuma a missão de Jesus. O “tudo está consumado” não significa que
“chegou ao fim”, mas, sim, que “a vontade do Pai foi realizada, em tudo e
perfeitamente”. A obra que o Pai confiou ao Filho para levá-la a termo é
a revelação do amor:
aquele amor que tem sua origem na comunhão entre Pai e Filho e sua realização
histórico-eclesial na unidade dos fiéis (17,23).
O que celebramos na
sexta-feira santa não é a morte de Jesus, mas sua vitória sobre a morte, sobre
a violência, sobre a maldade humana, sobre o egoísmo e sobre tudo o que impede
o ser humano de aceitar livremente o amor de Deus e sua vontade.
Jesus, por sua
obediência ao Pai, aceita livremente a paixão e a transforma em dom, em
revelação de amor. Toda a vida e obras de Jesus foram um reflexo desse amor
obediente. E isso se concretiza aqui na cruz. O cume dessa obediência no amor é
atingido no ato de entrega de sua vida na cruz por amor. E nessa entrega o
caminho para todo ser humano, o caminho do amor filial, se concretiza na
obediência do amor àquele que é fonte de toda a existência humana.
2.
I leitura (Is 52,13-53,12): Eis o meu servo!
Esse texto se inicia
assegurando que o Servo triunfará (v. 13), mesmo que sua extrema humilhação e
sofrimentos (v. 14) causem admiração em muitas pessoas. Seu triunfo será tão
admirável, que impressionará muitas nações e reis ficarão boquiabertos diante
dele.
A informação de que
as pessoas desviavam o rosto ou o olhar para não vê-lo (53,3) indica que se
envergonhavam dele. Contudo, apesar dessa atitude de desprezo, ele é o Servo do
Senhor, e isso é garantia de seu triunfo sobre as dores.
O texto de Is 53,4-7
constitui um avanço na teologia do Antigo Testamento, ao introduzir um elemento
que é a aceitação, por parte de Deus, da vida e morte do Servo como sacrifício
expiatório em favor do povo.
Os versículos 10 e 11
deixam entrever a fé na ressurreição, porque afirmam que o Servo, mesmo depois
de entregar a própria vida, verá seus descendentes.
O texto termina com a
mesma nota de vitória com que começou: o Servo triunfará (52,13; 53,12).
Contudo, as palavras finais destacam o alcance universal da atividade do Servo,
que carrega os pecados de uma multidão. Outro aspecto comum entre o início e o
fim da seção é que as palavras são pronunciadas diretamente por Deus. Dessa
maneira, Deus corrobora o anúncio profético, antes mesmo que comece e também
depois que termina.
3. II leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9): És sacerdote para sempre!
O texto nos apresenta
o sumo sacerdote superior a todos os demais, que atravessou os céus, entrou na
presença de Deus e exerce seu ministério sacerdotal no santuário celeste.
Contudo, esse sumo sacerdote, Filho de Deus, também é um ser humano como os
demais, sem, todavia, pecar. Sendo humano, entende nossas necessidades e
fraquezas e por isso é solidário conosco. Enquanto Filho de Deus, recebeu
autoridade acima de todos os seres. Por tudo isso o autor bíblico exorta os
cristãos à perseverança na fé recebida pela palavra da pregação.
O versículo 15
explica a importância da humanidade de Jesus. Ele é capaz de se compadecer de
nossas fraquezas porque foi tentado e venceu a tentação. Por isso, pode
interceder por nós, para que alcancemos a vitória sobre a tentação, sobre o
pecado e sobre a morte. O ministério sacerdotal de Jesus nos dá confiança para
nos aproximarmos do trono de Deus. Ele atravessou os céus, como ser humano
vitorioso sobre a morte, e por isso nos abriu um caminho para Deus.
Além de passar pelas
tentações, o nosso sumo sacerdote teve medo da morte e pediu a Deus, com forte
clamor e lágrimas, que lhe preservasse a vida – e foi atendido, porque Deus o
ressuscitou. Assim, Jesus teve a experiência comum dos seres humanos, a morte.
Por isso, ele é solidário conosco na nossa maior angústia, porque enfrentou o
sofrimento e a morte com os mesmos recursos que temos: a oração e a obediência
da fé. Ele não buscou uma saída sobrenatural que não está ao nosso alcance.
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO
Chamar
a atenção para o paganismo disfarçado de cristianismo, ou seja, para a poluição
da fé por elementos nocivos. Não se trata de sincretismo propriamente dito, mas
da mistura, e até mesmo da identificação, do cristianismo com aspectos
contrários à revelação. Antigamente, os mediadores tinham a função de mostrar
ao povo quem realmente era Deus e qual era a vontade divina a respeito do ser
humano. Jesus plenificou na própria vida, morte e ressurreição a função desses
mediadores. Mesmo assim, de modo mais escandaloso que antes, no cristianismo de
hoje há uma “baalização da fé” (uma relação com Baal disfarçada de relação com
Deus). A corrupção, a avareza, a ambição e todo tipo de dureza de coração são
piores que qualquer sincretismo. Esses elementos são o oposto de tudo que Jesus
mostrou – tanto por sua vida quanto por sua morte – sobre a identidade de Deus
e do ser humano. Isso se torna mais escandaloso ainda se a liderança religiosa
tolerar, apoiar ou até mesmo viver a baalização da fé.
Aíla Luzia Pinheiro
Andrade, nj
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/29-de-marco-sexta-feira-santa/
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