REFLEXÕES PARA A SEXTA-FEIRA
SANTA- ANO B
REFLEXÃO I
Mais um beijo de adoração
Volto a
publicar esse texto nessa sexta-feira santa, porque continuo percebendo a
necessidade de compreendermos a temática em torno à adoração da cruz.
“Que a
nossa inteligência, iluminada pelo Espírito da Verdade, acolha, com o coração
puro e liberto, a glória da cruz que se irradia pelo céu e a terra” (S. Leão
Magno). O mesmo santo nos diz que a santa cruz “é fonte de todas as bênçãos e
origem de todas as graças. Por ela, os que creem recebem na sua fraqueza a
força; na humilhação, a glória; na morte, a vida”. Cantemos, nós também, a
glória da Santa Cruz.
A
liturgia da sexta-feira santa ao referir-se ao culto à Cruz se expressa dizendo
que se trata de uma “solene adoração da santa Cruz”, deixando inclusive a
possibilidade de dobrar o joelho diante dela. Penso que essas palavras calaram
no coração de mais de um cristão deixando-o pensativo, com maior razão se
refletimos naquilo que realizamos: aproximamo-nos da imagem do Cristo
crucificado e o beijamos; adoramos a Cristo, a sua Cruz. Na verdade, Cristo e a
sua Cruz são identificados nesta liturgia solene de hoje.
Duas
perguntas: porque adoramos a Cruz? Porque a beijamos? No Brasil, devido a
influência de teorias provindas de ambientes evangélicos não é raro encontrar
também entre católicos certa desconfiança e aversão pelo culto às imagens.
Gostaria de conversar com você sobre esse tema sem uma finalidade defensiva,
apologética, mas simplesmente observando o que a liturgia da Igreja nos diz no
dia de hoje. Tendo em conta que qualquer consequência apologética será
colateral, quero dialogar especialmente com aqueles católicos que aceitam com
toda paz a sua fé celebrada na liturgia de hoje.
Nós adoramos
a Santa Cruz porque ela foi o madeiro no qual o próprio Deus feito homem
retirou a maldição do pecado que pesava sobre nós. A cruz era sinal de
maldição, suplicio dos culpados e grandes marginais da sociedade. Cristo quis
transformar esse sinal de maldição em sinal de benção. Mas, contudo, para
entender melhor por que adoramos a Santa Cruz é preciso que compreendamos uma
realidade: as coisas contêm um significado. Por exemplo: beijar uma pessoa tem
distintos significados quando realizado em diversas circunstâncias. Uma criança
que dá um beijo na sua mãe quer significar todo o carinho e agradecimento que
sente por ela; duas pessoas que se dão os dois beijinhos sociais quando se
conhecem não querem significar mais que o prazer que sentem em conhecer-se e
celebrar dessa maneira ritual essa nova relação de amizade que começa; dois
namorados que se beijam querem expressar o amor que sentem mutuamente. Há
beijos que significam pura sensualidade, outros são exposições das escórias e
dos desvios humanos. Enfim, um beijo pode significar muito! No caso do beijo à
Santa Cruz, trata-se de um beijo que se pode interpretar em relação a outro
beijo, aquele que o sacerdote dá ao altar todos os dias ao começar e ao
terminar a Santa Missa: um beijo cheio de amor, de respeito, de admiração. O
Altar representa a Cristo como a Cruz também o representa.
Como as
coisas têm um significado, também é preciso que entendamos esse significado em
relação à nossa capacidade de captá-lo e de dar significação aos nossos gestos.
Uma pessoa que abre o facebook e vê as fotos dos seus amigos e familiares não
começa a pensar se essa foto ocupa 300 KB ou 2 MB, nem nos seus pixels,
tampouco na materialidade ou imaterialidade dessa foto em concreto. Ao
contrário, ao ver uma determinada foto, a nossa mente se dirige naturalmente à
pessoa que a foto representa. Hoje em dia, ainda que as fotos em papel sejam
mais incomuns, talvez o leitor se lembre daquele beijo que deu numa foto de
alguém que lhe era querido. Nem passa pela minha mente que você queria dar um
beijo à foto em si, tenho certeza que você queria dá-lo à pessoa querida
representada por ela.
Dessas
considerações, podemos concluir que há pelo menos duas maneiras de olhar uma
imagem: vê-la simplesmente enquanto imagem, na sua mera materialidade, ou vê-la
enquanto significativa de realidades que ela expressa. A mente humana não fica
na primeira maneira de ver uma imagem a não ser que esteja fazendo um estudo
sobre a qualidade do papel, a tonalidade das cores etc. A mente humana vê a realidade
material e, abstraindo totalmente da matéria que tem diante de si, vai
diretamente à realidade que ela representa. Trata-se de uma “viagem” que a
mente faz desde a imagem à realidade. Sendo assim, quando nós contemplamos umas
flores diante do Santíssimo, umas velas acendidas a algum santo, umas toalhas
mais vistosas no altar do Senhor, nós não podemos parar na simples
materialidade dessas coisas.
Deus
conhece melhor que nós mesmos como funcionamos. Ele sabe que nós conhecemos e
amamos as realidades que não vemos a partir das que vemos. Condescendente com
essa nossa maneira de conhecer e de amar é que o Senhor Deus, desde o Antigo
Testamento, aborrecendo a idolatria – que consiste em dar às criaturas o lugar
que corresponde ao Criador –, foi permitindo pouco a pouco representações
materiais de realidades espirituais. Nesse sentido, lembremo-nos dos dois
querubins de ouro colocados nas extremidades da Arca da Aliança (Ex 25,18-22),
da serpente de bronze (Nm 21,1-10), das várias imagens que Deus permitiu que
Salomão pusesse no Templo para adorná-lo (I Re 6,23-35.7,29), daquele sinal
misterioso de Ezequiel (Ez 9,1-7) etc.
No
entanto, Deus, apaixonado pelo ser humano, não se contentou em permitir
representações materiais das realidades espirituais, mas ele mesmo quis ser
visto fisicamente pelo homem, “e o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Quem poderia
ir contra a materialidade da religião quando o próprio Deus se fez matéria?
Quem ainda poderia ir contra as imagens se Cristo é a imagem perfeita do Pai
(cf. Cl 1,13-16)? Quem se atreveria a professar um cristianismo puramente
espiritual quando Deus quis um sadio materialismo da fé? A pessoa humana é
imagem de Deus, compreende através de imagens e as venera, não por causa da sua
materialidade, mas porque são expressões das realidades espirituais. Há casos
em que essa veneração se identifica com a adoração. Por exemplo, no caso da
“solene adoração da Santa Cruz”.
Não
adoramos, no entanto, a materialidade da Cruz, mas tudo o que ela significa:
Cristo crucificado nela, nosso único Senhor e Salvador. Esse contato com a
Santa Cruz nesta sexta-feira santa deveria fazer com que pensássemos que
estamos entrando em contato com o Mistério do Gólgota, estamos beijando o
Senhor no ato central da nossa Redenção. Estamos aderindo-nos à Cruz, ao
sofrimento, às ignomínias, às afrontas, aos desprezos que Cristo sofre na Cruz.
Beijar a Cruz e adorá-la significa entrar em contato com uma realidade muito
exigente: pensemos no Cristo sofredor e glorioso e nos submetamos ao seu
reinado. Paradoxalmente, esse é um reinado que se manifesta de uma maneira que
nos deixa um pouco confusos: um rei lastimado, derrotado, sem coroa a não a ser
a de espinhos, sem vestes esplendorosas a não ser o manto de púrpura e de
escárnio que depois lhe tiram, sem súditos a não ser Nossa Senhora e outras
poucas pessoas que não se envergonharam e permaneceram fiéis. Longe de nós
envergonharmo-nos na Cruz do Senhor. Nós sabemos – junto com São Paulo – que
Cristo crucificado é sabedoria e força de Deus para nós (cf. 1 Cor 1,24).
Eu
convido você a participar da Paixão do Senhor com Nossa Senhora. A dor de Nossa
Senhora é a dor de uma mãe pelo seu Filho sofredor. É ao mesmo tempo uma dor
oferecida a Deus Pai. Maria Santíssima está serena aos pés da cruz porque ela
vê o amor com que o seu Jesus abraça a cruz, ela sabe que é a vontade do Pai.
Pe. Françoá Costa
https://presbiteros.org.br/homilia-do-padre-francoa-costa-sexta-feira-santa-ano-b/
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