quarta-feira, 27 de março de 2024

REFLEXÕES PARA A SEXTA-FEIRA SANTA- ANO B REFLEXÃO I Mais um beijo de adoração

 

 

REFLEXÕES PARA A SEXTA-FEIRA SANTA- ANO B

REFLEXÃO I

Mais um beijo de adoração

Volto a publicar esse texto nessa sexta-feira santa, porque continuo percebendo a necessidade de compreendermos a temática em torno à adoração da cruz.

“Que a nossa inteligência, iluminada pelo Espírito da Verdade, acolha, com o coração puro e liberto, a glória da cruz que se irradia pelo céu e a terra” (S. Leão Magno). O mesmo santo nos diz que a santa cruz “é fonte de todas as bênçãos e origem de todas as graças. Por ela, os que creem recebem na sua fraqueza a força; na humilhação, a glória; na morte, a vida”. Cantemos, nós também, a glória da Santa Cruz.

A liturgia da sexta-feira santa ao referir-se ao culto à Cruz se expressa dizendo que se trata de uma “solene adoração da santa Cruz”, deixando inclusive a possibilidade de dobrar o joelho diante dela. Penso que essas palavras calaram no coração de mais de um cristão deixando-o pensativo, com maior razão se refletimos naquilo que realizamos: aproximamo-nos da imagem do Cristo crucificado e o beijamos; adoramos a Cristo, a sua Cruz. Na verdade, Cristo e a sua Cruz são identificados nesta liturgia solene de hoje.

Duas perguntas: porque adoramos a Cruz? Porque a beijamos? No Brasil, devido a influência de teorias provindas de ambientes evangélicos não é raro encontrar também entre católicos certa desconfiança e aversão pelo culto às imagens. Gostaria de conversar com você sobre esse tema sem uma finalidade defensiva, apologética, mas simplesmente observando o que a liturgia da Igreja nos diz no dia de hoje. Tendo em conta que qualquer consequência apologética será colateral, quero dialogar especialmente com aqueles católicos que aceitam com toda paz a sua fé celebrada na liturgia de hoje.

Nós adoramos a Santa Cruz porque ela foi o madeiro no qual o próprio Deus feito homem retirou a maldição do pecado que pesava sobre nós. A cruz era sinal de maldição, suplicio dos culpados e grandes marginais da sociedade. Cristo quis transformar esse sinal de maldição em sinal de benção. Mas, contudo, para entender melhor por que adoramos a Santa Cruz é preciso que compreendamos uma realidade: as coisas contêm um significado. Por exemplo: beijar uma pessoa tem distintos significados quando realizado em diversas circunstâncias. Uma criança que dá um beijo na sua mãe quer significar todo o carinho e agradecimento que sente por ela; duas pessoas que se dão os dois beijinhos sociais quando se conhecem não querem significar mais que o prazer que sentem em conhecer-se e celebrar dessa maneira ritual essa nova relação de amizade que começa; dois namorados que se beijam querem expressar o amor que sentem mutuamente. Há beijos que significam pura sensualidade, outros são exposições das escórias e dos desvios humanos. Enfim, um beijo pode significar muito! No caso do beijo à Santa Cruz, trata-se de um beijo que se pode interpretar em relação a outro beijo, aquele que o sacerdote dá ao altar todos os dias ao começar e ao terminar a Santa Missa: um beijo cheio de amor, de respeito, de admiração. O Altar representa a Cristo como a Cruz também o representa.

Como as coisas têm um significado, também é preciso que entendamos esse significado em relação à nossa capacidade de captá-lo e de dar significação aos nossos gestos. Uma pessoa que abre o facebook e vê as fotos dos seus amigos e familiares não começa a pensar se essa foto ocupa 300 KB ou 2 MB, nem nos seus pixels, tampouco na materialidade ou imaterialidade dessa foto em concreto. Ao contrário, ao ver uma determinada foto, a nossa mente se dirige naturalmente à pessoa que a foto representa. Hoje em dia, ainda que as fotos em papel sejam mais incomuns, talvez o leitor se lembre daquele beijo que deu numa foto de alguém que lhe era querido. Nem passa pela minha mente que você queria dar um beijo à foto em si, tenho certeza que você queria dá-lo à pessoa querida representada por ela.

Dessas considerações, podemos concluir que há pelo menos duas maneiras de olhar uma imagem: vê-la simplesmente enquanto imagem, na sua mera materialidade, ou vê-la enquanto significativa de realidades que ela expressa. A mente humana não fica na primeira maneira de ver uma imagem a não ser que esteja fazendo um estudo sobre a qualidade do papel, a tonalidade das cores etc. A mente humana vê a realidade material e, abstraindo totalmente da matéria que tem diante de si, vai diretamente à realidade que ela representa. Trata-se de uma “viagem” que a mente faz desde a imagem à realidade. Sendo assim, quando nós contemplamos umas flores diante do Santíssimo, umas velas acendidas a algum santo, umas toalhas mais vistosas no altar do Senhor, nós não podemos parar na simples materialidade dessas coisas.

Deus conhece melhor que nós mesmos como funcionamos. Ele sabe que nós conhecemos e amamos as realidades que não vemos a partir das que vemos. Condescendente com essa nossa maneira de conhecer e de amar é que o Senhor Deus, desde o Antigo Testamento, aborrecendo a idolatria – que consiste em dar às criaturas o lugar que corresponde ao Criador –, foi permitindo pouco a pouco representações materiais de realidades espirituais. Nesse sentido, lembremo-nos dos dois querubins de ouro colocados nas extremidades da Arca da Aliança (Ex 25,18-22), da serpente de bronze (Nm 21,1-10), das várias imagens que Deus permitiu que Salomão pusesse no Templo para adorná-lo (I Re 6,23-35.7,29), daquele sinal misterioso de Ezequiel (Ez 9,1-7) etc.

No entanto, Deus, apaixonado pelo ser humano, não se contentou em permitir representações materiais das realidades espirituais, mas ele mesmo quis ser visto fisicamente pelo homem, “e o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Quem poderia ir contra a materialidade da religião quando o próprio Deus se fez matéria? Quem ainda poderia ir contra as imagens se Cristo é a imagem perfeita do Pai (cf. Cl 1,13-16)? Quem se atreveria a professar um cristianismo puramente espiritual quando Deus quis um sadio materialismo da fé? A pessoa humana é imagem de Deus, compreende através de imagens e as venera, não por causa da sua materialidade, mas porque são expressões das realidades espirituais. Há casos em que essa veneração se identifica com a adoração. Por exemplo, no caso da “solene adoração da Santa Cruz”.

Não adoramos, no entanto, a materialidade da Cruz, mas tudo o que ela significa: Cristo crucificado nela, nosso único Senhor e Salvador. Esse contato com a Santa Cruz nesta sexta-feira santa deveria fazer com que pensássemos que estamos entrando em contato com o Mistério do Gólgota, estamos beijando o Senhor no ato central da nossa Redenção. Estamos aderindo-nos à Cruz, ao sofrimento, às ignomínias, às afrontas, aos desprezos que Cristo sofre na Cruz. Beijar a Cruz e adorá-la significa entrar em contato com uma realidade muito exigente: pensemos no Cristo sofredor e glorioso e nos submetamos ao seu reinado. Paradoxalmente, esse é um reinado que se manifesta de uma maneira que nos deixa um pouco confusos: um rei lastimado, derrotado, sem coroa a não a ser a de espinhos, sem vestes esplendorosas a não ser o manto de púrpura e de escárnio que depois lhe tiram, sem súditos a não ser Nossa Senhora e outras poucas pessoas que não se envergonharam e permaneceram fiéis. Longe de nós envergonharmo-nos na Cruz do Senhor. Nós sabemos – junto com São Paulo – que Cristo crucificado é sabedoria e força de Deus para nós (cf. 1 Cor 1,24).

Eu convido você a participar da Paixão do Senhor com Nossa Senhora. A dor de Nossa Senhora é a dor de uma mãe pelo seu Filho sofredor. É ao mesmo tempo uma dor oferecida a Deus Pai. Maria Santíssima está serena aos pés da cruz porque ela vê o amor com que o seu Jesus abraça a cruz, ela sabe que é a vontade do Pai.

Pe. Françoá Costa

https://presbiteros.org.br/homilia-do-padre-francoa-costa-sexta-feira-santa-ano-b/

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