SANTO
AGOSTINHO E O Espírito e Cristo no comentário ao
quarto Evangelho e no tratado Trinitário
O
ESPÍRITO E CRISTO NO COMENTÁRIO AO QUARTO EVANGELHO E NO TRATADO TRINITÁRIO DE
SANTO AGOSTINHO.[1]
O texto do Evangelho:
“Soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo” (Jo
20,22).
- A
explicação no Tratado sobre o Evangelho de João.
O último texto do Evangelho de João no qual se menciona o Espírito Santo
descreve a realização de sua doação por Jesus ressuscitado aos discípulos. A
revelação acontece no contexto da aparição do Senhor aos seus discípulos na
tarde da Páscoa. Depois de lhes dar a paz, de haver mostrado os sinais da
paixão no seu corpo glorioso, e conferir a eles a continuidade da missão
recebida do Pai, Jesus concede o dom do Espírito Santo com o ato simbólico do
sopro.
No comentário evangélico, Agostinho cita ou faz alusão a esta cena seis vezes,
em diferentes momentos, desenvolvendo uma extensa exegese sobre esse texto. Ele
o comenta, por exemplo, no seguinte ponto:
“
‘Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo’ (20,22). Soprando quer
significar que o Espírito Santo é, não somente do Pai, mas também seu. ‘A quem
perdoardes os pecados eles serão perdoados, a quem o retiveres eles serão
retidos’ (20,23). A caridade, que por meio do Espírito Santo é derramada em
nosso coração, perdoa os pecados daqueles que fazem parte da comunidade eclesial;
e retém, ao contrário, o pecado de quem não faz parte. É por isso que Jesus
concede o poder de perdoar ou de reter o pecado só depois de haver dito:
‘Recebei o Espírito Santo’.” (Tractatus
121, 4).
Para o exegeta, são dois os elementos que se destacam. O primeiro diz respeito
ao Espírito em si, em seu relacionamento com Deus; o sopro de Jesus mostra que
o Espírito Santo pertence não só ao Pai mas também ao Filho, e aqui aparece
claramente a dignidade divina de Jesus. O outro elemento diz respeito ao
Espírito em relação aos homens. Sendo a caridade divina, dele provém a remissão
dos pecados.
“Porque,
não cremos que o Espírito Santo procede também do Filho já que é o Espírito
também do Filho? Se de fato não procedesse também do Filho, Cristo não poderia,
depois da ressurreição, doar aos seus discípulos seu sopro dizendo: ‘Recebei o
Espírito Santo’ (20, 22). Que outro significado pode ter este sopro se não que
o Espírito Santo procede também dele?” (Tractatus
99,6).
A situação pessoal do Espírito com o Filho aparece ao longo da exposição do
último discurso de Jesus sobre o Paráclito. A relação do Espírito com o Filho
vem aqui contemplada, especificada e explicitada com a palavra “procede” que
contém, para o intérprete teólogo, a ideia de origem. O gesto do sopro é, para
Agostinho, uma demonstração muito clara da derivação pessoal intradivina do
Espírito do Filho. interpretação acrescenta um novo argumento ao que o
Autor disse sobre o tema da processão[2] do Espírito também do Pai.
O
texto ainda aparece no desenvolvimento do comentário ao primeiro dos discursos
sobre o Paráclito. O intérprete está explicando que o Espírito pode ser doado
em diferente medida; uma primeira vez para quem ainda não o recebeu e, em
seguida, sempre com maior abundância, a quem já está enriquecido com sua
presença e ação.
“Não uma vez, mas
duas vezes o Senhor concedeu aos apóstolos, de modo manifesto, o dom do
Espírito Santo. [...] Talvez esse dom tenha sido concedido duas vezes porque
duplo é o preceito do amor: o amor a Deus e ao próximo; e para enfatizar que o
amor depende do Espírito Santo” (Tractatus,
74, 2).
As
duas grandes efusões do Espírito (cf. Jo 20, 22. At 2, 1-11) simbolizando o
duplo preceito do amor reafirma e evidencia a ligação causal do Espírito com
relação à caridade para com Deus e para com o próximo. A mesma ideia da dupla
doação do Espírito da parte de Jesus, uma depois da ressurreição e outra depois
da ascensão ao céu, vem exposta comentando a explicação do evangelista à
profecia de Jesus proclamada na festa dos tabernáculos (cf. Jo 7). Relatamos o
trecho da exegese no qual aparece o referido texto.
“Depois da sua
ressurreição, na primeira vez que aparece a seus discípulos, Jesus diz a eles:
‘Recebei o Espírito Santo’ (20, 22). Porque como bem disse o evangelista:
‘Ainda não tinha sido dado o Espírito por que Jesus ainda não tinha sido
glorificado’ (Jo 7, 39). E soprou sobre eles. Ele com seu sopro animou os
membros do corpo; mostrando com esse gesto que queria criá-los do pó da terra e
libertá-los das obras da terra. Foi então depois da sua ressurreição, chamada
pelo evangelista de glorificação, que o Senhor doou pela primeira vez aos seus
discípulos o Espírito Santo” (Tractatus,
32, 6).
A este trecho exegético segue a evocação da narrativa de Pentecostes em Atos 2,
1-11. O paralelismo explicitado pelo exegeta entre o ato do sopro divino sobre
o primeiro homem para chamá-lo do pó da terra à vida natural, e o ato do sopro
de Jesus sobre seus discípulos para ressuscitá-los à nova vida, mostra a
profunda intenção reveladora da Escritura, em cujo texto joanino é
voluntariamente alusiva àquela do Gênesis. Todos os comentadores modernos ao
explicar a narrativa da doação do Espírito no dia da ressurreição, recordam o
relato da formação do primeiro homem. A exegese contemporânea segue a mesma
linha daquela antiga, proposta por Agostinho.
No comentário evangélico há outras duas alusões à narrativa pascal da efusão do
Espírito. Uma destaca, como feito da presença do Espírito, a infusão de uma
disposição e apreço pela as realidades divinas nos discípulos (cf. Tractatus 103, 1). A outra
é, simplesmente, um breve compendio que serve como introdução à pesca milagrosa
(cf. Tractatus 122, 2).
A exegese de Agostinho sobre Jo
20, 22 - texto que é denominado “o pentecostes joanino”,
oferece um rico ensinamento pneumatológico. Na doação do Espírito por Cristo
ressuscitado vem revelada a processão de origem do Espírito do Filho e vem
revelada a
relação do Espírito
com o homem crente, para o qual é a fonte da caridade para com Deus e para com
o próximo. É a fonte da caridade que concede o perdão dos pecados. Sopro do
Senhor ressuscitado sobre o homem morto por causa do pecado, o Espírito Santo
os anima da vida divina, como o sopro criador de Deus tinha dado ao primeiro
homem a vida natural.
- A explicação do “De Trinitate”.
O texto pneumatológico final do Evangelho de João vem explicitamente citado
duas vezes no tratado “De
Trinitate” e em ambas as vezes vem interpretado como uma revelação
da procedência do Espírito Santo também do Filho.
Para o fim do quarto livro do Tratado o Autor coloca o tema da missão do
Espírito ensinando que, sendo enviado no tempo para a salvação do homem, revela
e manifesta a relação eterna entre as pessoas divinas. O Espírito procede do
Pai e do Filho.
“Não podemos dizer
que o Espírito Santo não proceda também do Filho. Não à toa o mesmo Espírito
Santo é chamado Espírito do Pai e do Filho. Não vejo o que mais quereria dizer
Cristo quando soprando sobre os discípulos disse: ‘Recebei o Espírito Santo’
(20, 22), porque aquele sopro corpóreo, que procede do corpo como uma sensação
de contato físico não era a substância do Espírito Santo, mas a representação,
através de um símbolo adequado, que o Espírito Santo não procede só do Pai, mas
também do Filho. Quem será tão insensato de afirmar que um é o Espírito que
Cristo deu com seu sopro e outro o que mandou depois de sua ascensão? Um único
Espírito, de fato, é o Espírito de Deus. Espírito do Pai e do Filho, o Espírito
Santo” (De Trinitate 4, 20,
29).
Aqui também a doação do Espírito através do sopro de Jesus é a acoplada à
efusão do dia de Pentecostes. A historicidade salvífica destes dois atos é,
para o exegeta, o reflexo temporal da ontologia divina eterna.
A última parte do livro décimo quinto do Tratado é dedicada ao aprofundamento
final do conceito da processão divina. Depois de haver adotado o texto bíblico
tirado de São Paulo e dos Sinóticos, que indicam a pertença e relatividade do
Espírito Santo ao Pai e o Filho, o Autor propõe a processão do Espírito do
Filho comentando o ato do sopro do Ressuscitado.
“Que procede de ambos
nos ensina os seguintes passos: o Filho mesmo disse que o Espírito ‘procede do
Pai’ (Jo 15, 26); e ressuscitado dos mortos, aparecendo aos discípulos, soprou
e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’ (Jo 20,22) para mostrar que o Espírito
procede também dele. O Espírito Santo é, ainda, a ‘força que saiu dele e curou
a todos’ (Lc 6,19)”. (De
Trinitate 15, 16, 45).
Do quarto ao décimo quinto livro do Tratado, a partir dos quais essas referidas
exegeses são tomadas, a interpretação de Jo 20, 22 continua a mesma: o Espírito
procede do Filho porque foi enviado por Ele; de modo que podemos estabelecer
uma equivalência na hermenêutica de nosso Autor: pelo Espírito ser soprado é
procedente; proceder é receber a comunicação do ser e da vida divina em
igualdade de natureza e de dignidade.
No tratado “De Trinitate” aparece ainda uma alusão a Jo 20, 22 sem citação
explicita, na segunda parte do livro décimo terceiro, onde se ensina que o
Cristo conduz os homens à verdadeira beatitude mediante a obra da
redenção. Aqui, Agostinho acena o dom do Espírito Santo como sendo primeiro
prometido e depois concedido.
A
comparação entre o modo de explicar, no comentário evangélico e no tratado
trinitário, os dois últimos textos joaninos quem contêm o termo “Espírito” não
revela diferença, se não pelo fato de que a exposição global no comentário é
mais extensa que no tratado teológico. Nas duas obras, pela expressão “deu o
Espírito”, o exegeta dá como significado, a morte natural de Jesus e sua
libertação e voluntária determinação; pela expressão “soprou sobre eles e
disse: Recebei o Espírito Santo” dá como significado a processão eterna do
Espírito também do Filho e a relação da promessa anunciada na festa dos
tabernáculos.
Ao
comentar esta última expressão, no comentário evangélico, Agostinho propõe o
paralelismo com o sopro divino na criação do homem, que deu ao primeiro homem a
vida natural, assim, o sopro do Espírito de Jesus adquire o valor de uma nova
criação, de comunicação da vida espiritual, da vida imortal, da vida divina.
Esta
identidade de exegese é sinal indubitável, tanto da unidade do pensamento do
Autor, como também da singular afinidade entre essas duas grandes obras que são
fruto da plena maturidade do pensamento e da teologia do Bispo de Hipona.
Comentário do Tradutor
Para
bem entender estes traços da peumatologia agostiniana, tão bem apresentados por
Giuseppe Ferraro, é preciso considerar o marco histórico no qual Agostinho
escreveu suas obras. O tema do Espírito Santo, em sua época, estava envolvido
na malha de polêmicas. Sobretudo atingido por heresias. Quando, ao comentar os
textos bíblicos, Agostinho defende a procedência do Espírito tanto do Pai
quanto do Filho (Filioque),
está claramente defendendo a fé católica aprovada no I Concílio de
Constantinopla (381).
Para
nós, a pneumatologia agostiniana pode assegurar, além desta defesa clara e distinta
de nossa doutrina, um profundo caminho de vivência da fé, especialmente pelos
seguintes aspectos:
- O
Espírito é amor. Manifesta-se de duas maneiras diferentes, justamente,
porque duplo é o mandamento do amor. Possui o Espírito quem ama, a Deus e
ao próximo.
- O
Espírito ao ser soprado dota os discípulos de uma missão temporal: a
caridade, que opera no perdão e na reconciliação.
- O
Espírito Santo procede também do Filho, porque é seu próprio Espírito. Ao
soprá-lo sobre nós, Cristo nos comunica sua vida. Faz-nos renascer. A
conclusão é fática: se o Espírito dele habita em nós, devemos, então,
viver como Ele viveu.
[1] Esta é a
tradução livre de uma parte da obra Lo
Spirito e Cristo nel comento al Quarto Vangelo e nel Trattato Trinitario di
Sant’Agostino, de Giuseppe Ferraro lançada em 1997 pela Libreria
Editrice Vaticana. Tradutor: Fr. Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA.
[2] Relativo à
procedência, ao que procede. “O Filho provém do Pai, e o Espírito Santo provém
de ambos, no mistério da Santíssima Trindade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário