VI- REFLEXÃO DOMINICAL II:
EVANGELHO : Jo 6, 60-69- A FÉ QUE ESCANDALIZA
(Pe
Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Jesus, na
sinagoga de Cafarnaum, exorta a procurar pelo alimento que não perece, o pão
novo que substitui o maná do deserto. Era a fé no Filho do homem, ou seja, na
Encarnação de Deus na raça humana. Porém, a fé não é a única maneira de estar e
viver com Jesus. Como o profeta Elias, antes de chegar ao encontro com o
Senhor, necessitamos do pão da vida. Se quem crê tem a vida eterna, isto
significa que a escatologia já tem começado aqui e agora, que o eterno está
dentro do tempo. Nesta segunda parte, além da fé, Jesus oferece um novo alimento:
seu corpo e sangue como verdadeira comida e verdadeira bebida. Fé e comunhão
que no sacramento recebido se misturam quando o sacerdote apresenta a hóstia
consagrada dizendo: o corpo de Cristo. E o fiel responde: Amém; assim é, assim
o creio. Neste domingo temos o final com duas reações: a de Pedro, coluna da
fé, que encontra nas palavras de Jesus palavras de vida eterna e a dos que não
aceitam essa palavra e não admitem o oculto, o mistério dentro da visão natural
das coisas. Diante dos mistérios divinos que Jesus revela, a sua palavra é a
única razão que nos impele a acreditar e acreditando viver de modo diferente
uma vida que estaria longe de nossos propósitos.
O
COMENTÁRIO: Muitos,
pois, dentre os discípulos dele, tendo ouvido, disseram: Brutal é esta palavra.
Quem pode escutá-lo? (60). Multi ergo audientes ex discipulis eius dixerunt
durus est hic sermo quis potest eum audire. Temos traduzido por brutal o grego
sklhrov <4642> [skleros] que o latim traduz por durus, difícil de
entender ou intolerável, como outros traduzem, com os requisitos de fantásticos
e ofensivos. O verbo akouw [akouo] pode ser traduzido por ouvir, um simples ato
físico ou por escutar, um ato psíquico que responde ativa e livremente aos sons
emitidos, admitindo-os compreensivelmente. Ouviram, segundo eles, um
despropósito, uma loucura. O que menos poderiam pensar era que estava louco,
como em Jo 7, 20 que dizem dele ter um demônio.
O
ESCÂNDALO: Tendo
então conhecido Jesus por si mesmo que seus discípulos resmungavam sobre isso,
disse a eles: Isto vos escandaliza? (61). Sciens autem Iesus apud semet ipsum
quia murmurarent de hoc discipuli eius dixit eis hoc vos scandalizat. Se, pois,
vísseis o Filho do Homem subindo onde estava antes? (62). Si ergo videritis
Filium hominis ascendentem ubi erat prius. As palavras por si mesmas indicam um
conhecimento independente das circunstâncias ou da observação feita das mesmas
no momento. O evangelista aponta a um conhecimento sobrenatural. O escândalo,
neste caso particular, é causa de um julgamento desfavorável sobre as palavras
e a pessoa de Jesus. E Jesus agora apela a um fato que será real: sua ascensão
aos céus. Para uma tradição fundada na unicidade de Deus, essa igualdade entre
um homem e o Deus transcendente, era uma blasfêmia para os ortodoxos judeus.
Assim o entenderam Caifás (Mt 26, 65) e os da sinagoga dos libertos que
apedrejaram Estevão (At 7, 57). O Filho do Homem, [ho ‘yios tou anthropou]
conjunto de palavras próprias do NT, pois o AT desde Ezequias até Daniel
e o Salmo 80 a setenta diz um filho de homem. Especialmente em Dn 7, 13, que é
tomado como modelo para a imputação por Jesus do título ho ‘yiós tou anthropou
[o filho do homem]. O texto original, de onde os exegetas dizem provém esse
título como messiânico, em Dn 7, 13 é aramaico, e diz bar enash, [filho de
mortal] [bem adam, filho de homem]. Em geral podemos afirmar que quase a
totalidade dos filhos de homem do AT são vocativos como em Ezequiel em que
Jahvé se dirige ao profeta chamando-o de filho de homem nada menos que em 31
ocasiões. A setenta traduz sempre ‘yios anthropou, filho de homem, ou
simplesmente homem. Já no NT sempre é Jesus quem se refere a si mesmo e usa o
título com ambos os artigos determinados tanto antes de filho como de homem [‘o
‘yios tou anthropou, o filho do homem], indicando um homem especial, diferente
do mortal comum, o ser humano em geral. Se no AT bem adam significa um membro
da espécie humana, isto não pode ser dito no NT quando a frase é usada por
Jesus e traduzida ao grego com artigos determinados. O filho do homem se refere
unicamente a um indivíduo especial da raça humana e a expressão é sempre usada
por Jesus referindo-se a si mesmo. Aparece 29 vezes em Mateus, 13 em Marcos, 24
em Lucas e 12 em João, em diversas circunstâncias. Em todas elas é a humanidade
de Jesus, em si mesma ou como paciente nos momentos de seu sofrimento e morte,
ou como sujeito do poder divino sobrenatural com autoridade de julgar o mundo e
de representar o juízo divino na parousia. Mas sempre com o destaque de ser
alguém em que a divindade pousa como escolhido para mostrar seu rosto ao mundo.
O filho do homem é Jesus humano que tem como pessoa o filho único de Deus
Pai. A exaltação do homem como igual a Deus era um conceito impossível e
blasfemo para um judeu da época. Constituía o grande escândalo de que Jesus se
faz eco neste versículo.
EXPLICAÇÃO: O espírito é o
que dá a vida; a carne de nada serve. As palavras que eu vos falo são espírito
e são vida (63). Spiritus est qui vivificat caro non prodest quicquam verba
quae ego locutus sum vobis spiritus et vita sunt. Parece que esta parte do
discurso, sem dúvida um tanto artificial como um capítulo de um todo ao modo
dos diálogos platônicos, está unida aos versículos 35-50 sendo que os 51-58 é
um parêntese referente à Eucaristia. Esta parte, pois, é sapiencial, em que a
palavra é fonte de vida. Não se referem estas palavras ao pão eucarístico, mas
as palavras de Jesus como palavras que devem ser interpretadas pelo espírito,
pois Ele tinha afirmado que era o pão descido do Céu (vers. 50). É uma
explicação do versículo 62. A primeira parte deste versículo é um provérbio
admitido provavelmente como verdadeiro pelos ouvintes. Como se dissesse: Todos
admitem que quem dá a vida é o espírito e que a carne de nada serve. É provável
que este aforismo tenha razão no Gn 2, 7: Então Jahvé Deus modelou o homem com
a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se
tornou um ser vivente. A argila representava a carne e o espírito ou alento
[neshamá hebraico, pnoé grego, sopro, espírito em português] representava a
vida. A argila representava a carne o basar<91320> que o grego traduz por
sarx<4561>, e a vulgata por caro. Explicada a primeira parte,
devemos agora encontrar uma interpretação, a mais racional possível, da segunda
parte: Por que as palavras de Jesus são espírito e são vida? Logicamente é uma
frase simbólica, ou se queremos matizar melhor, uma comparação. Assim como o
espírito é a vida do corpo, assim as palavras de Jesus são a vida dos que as
ouvem e em conformidade dirigem suas vidas. Ele pede uma fé que tem, como
origem, a razão de ser Ele o único que conhece bem o Pai, pois com Ele morava e
do céu – onde se supunha que o Pai-Deus morava – tinha descido para revelá-Lo
(Jo, 6, 46). No capítulo 8 João explicará que suas palavras estão avaliadas por
duas testemunhas: o Pai do qual procedem as obras que realiza e a sua palavra
que as acompanha (8, 18). A verdadeira vida, pois, consistia em conhecer a
Verdade, da qual Jesus se proclamava testemunha, como disse a Pilatos (Jo 18,
37). Por isso, Ele pedirá ao Pai que consagre seus apóstolos na verdade de modo
que a verdade do Pai seja a verdade dos discípulos (Jo 17, 17), podendo assim
afirmar que a palavra do Pai –Jesus em pessoa – era a Verdade e por isso eles
serão enviados ao mundo como Ele, Jesus, foi enviado ao mundo, como consagrados
e identificados com a verdade (Jo 17, 18-19). Se as palavras de Jesus se
parecem com o espírito que dá vida a carne, rejeitá-las – para os judeus que as
estavam escutando – é ficar unicamente como o maná que os pais comeram e
morreram.
O
PARÊNTESE:
Porém, há dentre vós alguns que não creem. Pois Jesus tinha conhecido desde o
início quais são os não crentes e quem é o que o entregará (64). Sed sunt
quidam ex vobis qui non credunt sciebat enim ab initio Iesus qui essent
credentes et quis traditurus esset eum. O primeiro hemistíquio corresponde às
palavras de Jesus. O segundo hemistíquio é um parêntese do evangelista e indica
nele, como mestre da verdade, um conhecimento muito superior – infuso –
ao que correspondia às pessoas comuns, e o confirma ao apontar como, desde esse
mesmo momento, sabia quem era o que o entregaria como traidor. Sem dúvida, a
falta de fé da maioria dos judeus, foi um desapontamento entre os primeiros
discípulos e seria bom, apologeticamente, arguir com razoamentos consistentes
essa lacuna que podia constituir um escândalo insuperável para os mesmos.
EXPLICAÇÃO: Porque falava:
por isso vos tenho dito que ninguém pode vir a mim senão lhe esteja dado de
parte de meu Pai (65). Et dicebat propterea dixi vobis quia nemo potest venire
ad me nisi fuerit ei datum a Patre meo. Temos explicado esta doação do
Pai na explicação do versículo 44 na exegese do domingo XIX deste mesmo
ano. Segundo a mentalidade da época, Deus é a causa principal dos eventos
humanos e a Ele se refere Jesus. A esse artigo e a explicação correspondente
citamos e convidamos o leitor.
A
DISPERSÃO: Desse
fato em diante muitos dos seus discípulos arredaram e não andavam com Ele (66)
Ex hoc multi discipulorum eius abierunt retro et iam non cum illo ambulabant. A
tradução é um tanto livre, dada pelo grego aphlyon eiv ta opisw [apelthon
eis ta opiso] um advérbio que significa detrás, para trás, que podemos traduzir
por “se foram para trás”. Pode ser também traduzido por deram meia volta ou se
retiraram, para não mais andar com Jesus. A tradução espanhola diz: se
volvieron atrás e a portuguesa voltaram atrás ou o abandonaram. De fato,
muitos, não todos, mas a maioria abandonou Jesus.
JESUS
COMENTA:
Disse em consequência, Jesus aos doze: Acaso também vós quereis partir?
(67).Dixit ergo Iesus ad duodecim numquid et vos vultis abire. A debandada foi,
ao que parece, geral. As fileiras ficaram praticamente vazias. Era o momento de
Jesus animar aos que restavam e que Ele tinha escolhido a dedo: os 12
apóstolos. A pergunta não deixa de ocultar, implicitamente, uma recriminação,
caso a resposta fosse negativa. Jesus praticamente lhes diz: Vós também sois do
tipo pusilânime e covarde que na dificuldade desanima e foge? (semente que cai
nas pedras: Mt 13, 20).
PEDRO: Respondeu-lhe
então Simão Pedro: Senhor, detrás de quem iremos? Palavras de vida eterna tens
(68). Respondit ergo ei Simon Petrus Domine ad quem ibimus verba vitae aeternae
habes. A resposta de Pedro tem como sujeito a quem interpelar a palavra Senhor
[Kyrie em grego]. Evidentemente, não é o mesmo Senhor do ressuscitado, que
recebeu o poder, segundo Ef 1, 20 +, mas indica no caso uma submissão a quem
tem autoridade. Pedro não encontra outro líder porque as palavras de Jesus,
segundo o mesmo mestre, tinham afirmado eram palavras que continham uma verdade
eterna, a única que propriamente pode ser declarada como verdade.
A
CONFISSÃO: Por
isso nós temos acreditado já que temos conhecido que tu és o Ungido, o Filho do
Deus (o vivente) (69). Et nos credidimus et cognovimus quia tu es Christus
Filius Dei. São duas afirmações, segundo a tradução que temos feito, pensando
que o kai grego é uma ilação tanto copulativa como causativa. As traduções em
uso, no lugar do já que empregam o simples e, e a frase seria temos
acreditado e estamos seguros que tu és esse Ungido, o Filho do Deus vivente,
que é a tradução do King James. Como vemos, a vulgata deixa o adjetivo vivente,
que o grego quase sempre une à palavra Theós para distinguir o mesmo dos deuses
que eram estátuas mortas. Ao traduzir temos conhecido, como o grego dá a
entender, vemos que a versão estamos certos ou seguros é uma
interpretação completamente correta. O Ungido, com artigo determinante, é uma
tradução literal de Messias, o Ungido do Senhor. Afirmar que é o Filho do Deus
vivo, é um ato de fé inusitado entre os discípulos de Jesus, não por aclamá-Lo
Messias, mas por declará-Lo Filho de Deus, aceitando que o Pai é Deus. A frase
tem sentido porque a ausência dos outros discípulos era devida a afirmação de
Jesus que dizia ser Deus o seu Pai, como Jesus afirmava no versículo 64, uma
conclusão do versículo 69 em que a união de Jesus e o Pai é modelo da que deve
existir entre discípulo e Jesus. Esta foi a causa da separação de quem
afirmava: estas palavras são inadmissíveis (ver 60). Pedro ouviu e interpretou
corretamente as palavras de seu Mestre. Certamente, se Ele afirmava que seu Pai
era Deus, o Deus vivo de Israel, Pedro estava disposto a admitir e
acreditar nessas palavras que eram palavras de vida.
PISTAS: 1) Os
comentaristas modernos dizem que os versículos próprios da Eucaristia (51-59)
não foram pronunciados na sinagoga de Cafarnaum, mas na instituição do
sacramento na última ceia, correspondente ao capítulo 13. Interrompido o
discurso sobre as exigências da fé como pão da vida, agora Jesus retoma o tema
e nos encontramos com a resposta variada dos ouvintes. Jesus pede uma resposta
clara a seus apóstolos e Pedro, em nome de todos, dá a única possível para um
seguidor de Jesus. Este é o Ungido do Senhor [Deus] e como Filho sabe
perfeitamente a vontade do Pai, cujo seguimento é a verdadeira vida.
2) As palavras de
Jesus constituem um fracasso. Os homens as escutam não com o espírito de
obediência a quem fala da experiência como viva, mas com o critério de uma
razão humana que se julga independente e absoluta. É o critério de Tomé: Se não
vejo não creio. Jesus é o vidente que nos declara existirem matizes nas cores e
nós somos os cegos que não podem captá-los. Negá-los porque não os podemos
experimentar é cerrar-se ao mistério que sempre existe na grande verdade
divina.
3) Vemos que Jesus
se intitula o filho do homem como um caso particular de ser membro da família
humana. Isto significa que Ele pode ser visto e ouvido como um homem; mas com a
particularidade de ser representante da divindade, ou seja, a face humana de
Deus. Logicamente Ele sabe como conduzir a humanidade e seu exemplo é paradigma
de todos os que desejam viver suas vidas em conformidade com os planos e
desígnios de Deus. Até dirá aprendei de mim que sou pacífico e humilde em
minhas ambições e propósitos (Mt 11, 29).
4) No texto de
hoje se descrevem duas reações opostas ao discurso – e poderíamos dizer à
história – de Jesus. A sua palavra tem uma resposta negativa: a incredulidade
porque é palavra difícil, e exige uma submissão prática da vida não só no modo
de pensar, mas também no modo de atuar. Ou pode ter uma resposta positiva como
a dada por Pedro: é a fé. Mas uma fé, não no homem sábio, brilhante, mas na
testemunha que conta o que viveu no seio de Deus. A sua palavra está
corroborada por obras admiráveis. Se nestas não acreditamos, desaparece o Filho
de Deus e só fica o homem Jesus, admirável em palavras e condutas, mas
puramente humano de quem podemos tomar as palavras que nos convêm e descartar
as palavras difíceis que atrapalham o nosso ideal ou a nossa maneira de vida.
Jamais serão vida para nós.
https://presbiteros.org.br/comentario-exegetico-xxi-domingo-do-tempo-comum-ano-b-2/
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