XII- A QUESTÃO DO ABORTO
, O STF E A CNBB
Ivone Gebara
A qu"Não se trata mais de convocar novos
Concílios para tomar decisões de ordem mundial e menos assembleias nacionais
para declarar sua opção
pelos pobres. Trata-se de sair às ruas, sem vestes e sem
títulos, aproximar-se das crianças violadas, das mães que choram diante da fome
e do desabrigo, da falta de cuidados médicos numa nação que produz miséria
material e espiritual para milhares de seus membros apesar dos esforços de
muitos".
O artigo é de Ivone Gebara, religiosa
pertencente à Congregação
das Irmãs de Nossa Senhora, filósofa e teóloga, que lecionou
durante quase 17 anos no Instituto
Teológico do Recife – ITER e que dedicou-se a escrever e a
ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas
feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos
filosóficos e teológicos do discurso religioso.
Eis o artigo.
Nesses tempos de mares conturbados não há
calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair
nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a
vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade
real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo
na boca dos que se julgam seus representantes.
Perdoem-me os leitores na insistência sobre
o mesmo tema que abordei há semanas. Novos capítulos
dessa velha história aconteceram, novas divisões se deram inclusive no interior
da CNBB.
Discórdias, opiniões diversas se manifestaram mostrando a complexidade e as
fraturas da chamada unidade institucional. Além disso, o grito público das
organizações de mulheres de todo país afirmando que ‘criança não é mãe e
estuprador não é pai’ ressoam em nós convidando-nos à reflexão desde nossas
entranhas.
Senhores bispos e magistrados, me doem as
entranhas femininas quando me lembro de Leonor, 16 anos, usuária de drogas
engravidada na rua. Não lhe permitiram interromper a gestação em tempo
hábil e na hora do parto levaram-na a uma maternidade e depois lhe roubaram o
bebê recém-nascido para a adoção sem permitir que ela o visse. Passaram-se já
três anos e ela ronda a cidade, as delegacias, os hospitais para descobrir onde
está o filho e como poderia recuperá-lo. Sua dor é do tamanho de seu mundo!
Depois lembro-me de Mocinha, 13 anos,
estuprada pelo padrasto, não lhe permitiram a interrupção legal da gravidez...
Morreu com seu bebê. E ainda me lembro de Anita, 5 filhos, desempregada que numa
noite de aventura engravidou do sexto filho... Conseguiu interromper a gravidez
e acometida de hemorragia sem controle foi levada ao hospital e maltratada pelo
corpo médico acusada de assassina. Ah! sim ainda me lembro de Angélica filha de
um eminente advogado que engravidou sem querer, mas tudo se resolveu em surdina
pois o pai e a mãe providenciaram uma clínica de primeira linha e nada se soube
do acontecido.
Quem são os ‘assassinos’ em nosso louco e perverso
mundo? Quem são os que atentam contra a vida destruindo povos inteiros em
busca de lucro fácil e barato? Que responsabilidade têm as religiões e as
Igrejas nessas mortes premeditadas pela exploração de minérios? No entanto os bem
situados socialmente se arvoram a ser os defensores da vida apenas quando se
trata de mulheres
pobres e meninas vítimas indefesas que a estupidez humana
levou a situações insustentáveis.
Os senhores e senhoras que folheiam a Bíblia
e livros de Direito não se dão conta da dor alheia, não convivem diretamente
com a dor das calçadas e periferias, não sentem a vida em corpo de mulher. Apenas
folheiam papéis, dão bênçãos mas não sustentam os corpos ensanguentados, não os
tocam, não os amparam em seus braços, não sentem seu cheiro, suas lágrimas
e lamentos. O que os leva de fato a agir dessa maneira tão fria e legalista?
Querem regular os corpos das mulheres em nome do bem
que julgam ser o melhor caminho para a vida humana. Querem obedecer a textos
escritos, a palavras de ordem quer sejam declaradas divinas, quer sejam do
magistério jurídico ou eclesiástico. Mas o que é mesmo o bem? De fato é o que
os senhores consideram bem e não o que nós mulheres consideramos o bem frente a
certas dificuldades e limitações da vida. Quem tem a razão? Seria sua razão
fria ou nossos corpos feridos?
Não seria melhor sair dessa disputa dualista
que não leva a lugar nenhum? Não seria melhor sair desses argumentos
absolutamente irrelevantes de quando começa a vida? Vida! O que é a
vida?
Só conhecemos o bem às apalpadelas, isto é, o
conhecemos julgando conhecê-lo ou apenas tentando fazer o que nos parece ser o
melhor no momento da dor, da agressão, da infâmia sobre nossos corpos. Nessa
linha mais uma vez os senhores escorregaram num legalismo ou em um juridismo de
ocasião. Aplicar ideias sobre a dura realidade dos corpos e em especial
das mulheres,
usar argumentos e permissões legais de pouco conhecimento público para vencer
disputas sobre realidades dolorosas parece merecer críticas pois se distanciam
daquilo que se sente, do que se vive no cotidiano de muitas mulheres e homens.
Nessa linha, os jornais publicaram que a CNBB pediu ao Supremo Tribunal Federal para
anular o voto da ministra Rosa
Weber, pronunciado em 2023 antes de sua aposentadoria. Seu voto
era favorável ao aborto até a 12ª semana de gestação visto que queria
favorecer a situação de milhares de mulheres, meninas, adolescentes e jovens em período
de fertilidade em nosso país agredidas
por homens irresponsáveis e violentos.
Infelizmente a oficialidade da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB)
parece não estar a par de sua trágica situação e moveu-se nos bastidores dos
poderes judiciários da república para anular o voto da ministra através de uma
competente jurisprudência de ocasião favorecendo grupos elitistas do país que
têm uma luta política
aberta contra os direitos e a emancipação das mulheres do jugo patriarcal.
Esqueceu-se de seu lugar próprio e de sua função social de acolhida e
misericórdia. Sua fixação no controle dos corpos femininos é um desarranjo de
seu velho mundo cultural religioso como se nossos corpos fossem o último
bastião de manutenção de sua dominação e da vontade divina de um deus à sua
imagem e semelhança.
Espanta-me a pouca análise crítica que esses
eminentes senhores têm da complexa realidade humana. Falam de realidade, mas
movem-se nas ideias abstratas e na inconsistência de suas teorias religiosas
frente a realidade da destruição de nossos corpos. Espanta-me como não permitem
que a sagrada dúvida assole suas convicções e suas visões patriarcais do mundo.
Embora saibamos que não são afeitos às teorias feministas sobre gênero não
é fácil admitir que também não percebam que seu modo hierárquico patriarcal de
vida valoriza e legitima a dominação e o controle sobre as pessoas. E
mais, que a religião cristã em sua pregação sobre a vontade de Deus e sobre a
obediência a ela desenvolveu a valorização das hierarquias masculinas em detrimento das
mulheres,
provocou as guerras ‘santas’ que não são apenas do passado, mas expandem-se no
presente nas atitudes que os senhores têm mantido em relação às mulheres e aos
marginalizados pela diferença. Basta constatar a sua tentativa de interferência
descabida nos votos e nas decisões do Supremo Tribunal Federal alegada
como constitucional. Os senhores como ‘amicus
curiae’ se utilizam desse artificio jurídico para continuar sua
incansável misoginia,
às vezes disfarçada em valorização da vida em geral e em especial da vida das mulheres segundo
o modelo que sua tradição lhes impõem.
Infelizmente o poder no mundo católico
institucional e em outros espaços se mantem a partir do medo dos corpos femininos justificada
a partir de uma abstração masculina de Deus, confirmada por um dogmatismo
cristológico personalista que exclui as mulheres de real representatividade. Temem que os muitos
corpos de Eva possam ameaçar sua instável segurança.
Não se trata mais de convocar novos Concílios para tomar
decisões de ordem mundial e menos assembleias nacionais para declarar sua opção pelos pobres.
Trata-se de sair às ruas, sem vestes e sem títulos, aproximar-se das crianças
violadas, das mães que choram diante da fome e do desabrigo, da falta de
cuidados médicos numa nação que produz miséria material e espiritual para
milhares de seus membros apesar dos esforços de muitos.
Além disso, a interferência dos senhores
no STF parece
descabida e até desrespeitosa de uma mulher da qualidade da juíza Rosa Weber. Como se
atrevem a solicitar a anulação de seu voto? Que juristas os incentivam de
fazê-lo inventando toda sorte de argumentos para fazer valer suas ideias que
escondem suas verdadeiras intenções?
Os senhores parecem valorizar mais suas
ideias a fim de controlar a vida dos que pensam de forma diferente, negar-lhes
o direito a ser artesãs das leis que regem seus corpos especialmente quando se
trata dos corpos femininos.
Tenho esperança de que o STF não acate um
pedido tão desrespeitoso do momento atual como o feito pelos senhores. Sem
dúvida, mais uma vez vão argumentar que estão defendendo a vida. Porém,
essa defesa da vida é
apenas um artificio de pensamento, não toca a realidade das vidas de fato
violadas, não toca as feridas das meninas
expostas à morte numa população carente de tantas
necessidades.
Não se pode escolher o bem ideal segundo a
pregação dos senhores. Na realidade, qualquer escolha inclui o seu oposto. Essa
é nossa condição no momento. Por isso caminhamos às apalpadelas na tentativa
que nossos passos não nos deixem cair e não resvalemos com as pedras do caminho
que estão atirando sobre nós.
Quando estarão dispostos a sair de suas
concepções hierárquicas? Quando cessarão de identificar o Evangelho a suas leis
perfeitas, a seus báculos e mitras, as suas pregações para um mundo idealizado?
Quando deixarão de se considerar os condutores da verdade? Quando deixarão de
identificar suas ações às de Jesus através de suas interpretações estáticas
muitas vezes atravessadas de vontade de poder e reconhecimento?
É desolador ver algumas políticas atuais
da CNBB de
hoje tão concentradas na acusação dos corpos das mulheres e nas proibições
que lhes endereçam. É lamentável ver as religiões servas das políticas as mais
reacionárias e excludentes!
Mais uma vez, o que move suas ações? O que
move seus corações? Os senhores são poucos, apenas um punhado de homens célibes
frente a uma quantidade imensa de mulheres que se manifestam pelo país todo, pelo continente e
pelo mundo exigindo o respeito a seus corpos e a seus direitos. Por que não as
escutam? Por que seus clamores não causam efeito sobre os senhores? Por que nos
temem?
Parecem de fato temer-nos. Parecem meninos
medrosos que precisam de suas armas legais ou de suas fantasias religiosas para
afirmarem-se como superiores e abafar qualquer manifestação em contrário a seu
poder estabelecido em nome de seu deus... A que senhores os senhores obedecem?
Sem querer ou querendo muitos dos senhores
aliam-se aos poderosos e seguem conspirando para que nos apedrejem, para que
sejamos crucificadas, para que nos calem, para que nos matem. Os senhores não
sabem o que fazem... Ou sabem?
Na calada da noite entregam as mulheres para
seus algozes, buscam testemunhas contra elas e não hesitam em gritar:
‘crucifiquem-nas, crucifiquem-nas’!
Mas, apesar de vocês agora é outro dia...
Anunciamos nossa ressurreição com as ressuscitadas/os. Somos parte das que não temem ir aos túmulos, de entrar, de
sentir os odores das dores, de espantar-se, de chorar e sair nos organizando
sempre mais para que a vida que nos habita seja respeitada e amada.
Vejam: nós estamos ressuscitando... Movemos a pedra... As trevas
começam a dissipar-se...
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