VII-
REFLEXÃO
DOMINICAL II – AMOR AOS INIMIGOS
23 de
fevereiro – 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Gisele Canário*
I. INTRODUÇÃO GERAL
As
leituras do 7º domingo do Tempo Comum nos convidam a acolher os ensinamentos
éticos de Jesus, que desafiam as normas sociais e humanas com a lógica
transformadora do Reino de Deus. É um convite ousado para ponderar sobre a
misericórdia, o perdão e o amor ao próximo como ferramentas essenciais da vida
cristã, frequentemente distorcidas para promover sistemas de poder, consumo e intolerância
em nossas comunidades.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23)
Sabemos,
com base na Bíblia, que Saul foi o primeiro rei de Israel, ungido por Samuel.
No entanto, ele desagradou a Deus, porque não seguiu suas instruções. Davi foi
ungido por Samuel como futuro rei de Israel, o que criou um conflito de
legitimidade e poder entre Davi e Saul. Esse conflito é apresentado na
literatura bíblica com nuances que revelam a complexidade das relações
políticas e pessoais da época.
É
importante considerar que, em muitos contextos, a literatura bíblica apresenta
Davi de maneira idealizada, servindo a propósitos políticos e teológicos.
Quando Davi se torna uma ameaça ao reinado de Saul, passa a ser alvo de várias
tentativas de assassinato. Por isso, é importante compreender esse “jogo de
gato e rato” no contexto das narrativas de rivalidade política e sobrevivência.
A cena
no deserto de Zif, onde Davi e Abisai se aproximam sorrateiramente do
acampamento de Saul durante a noite, é emblemática. Saul é encontrado dormindo
desprotegido, e Abisai sugere matar Saul ali mesmo, interpretando a situação
como um ato providencial de Deus. No entanto, Davi argumenta que não é correto
matar o ungido do Senhor. Esse episódio mostra a ética de Davi ou se trata de
uma construção narrativa que busca legitimá-lo como um líder justo e piedoso,
em contraste com Saul?
A
recusa de Davi em matar Saul, por um lado, pode ser interpretada como uma
demonstração de consciência ética; por outro, pode ser compreendida como uma
estratégia política. Ao poupar a vida de Saul, Davi mantém a própria
integridade moral e evita alienar os seguidores do rei, que poderiam
considerá-lo um usurpador violento. Além disso, a insistência na
inviolabilidade do “ungido do Senhor” reforça a ideia de que a autoridade de
Saul, apesar de seus erros, ainda tinha uma base divina que Davi não podia
ignorar sem consequências.
Davi,
sem dúvida, é retratado como um líder que tenta equilibrar poder e ética, mas
essa imagem deve ser entendida no contexto das tensões e necessidades políticas
da época. A narrativa desafia os leitores atuais a considerar a ética do perdão
e da não violência, mas também nos recorda que as decisões de liderança muitas
vezes envolvem complexas considerações estratégicas, tanto para o bem quanto
para o mal. A leitura da cena no deserto de Zif nos oferece, portanto, uma
janela para entender a ética pessoal de Davi, bem como as dinâmicas de poder e
legitimidade que contribuíram para dar novos rumos à história de Israel.
2. II leitura (1Cor 15,45-49)
Paulo
escreveu a primeira carta aos Coríntios provavelmente entre 53-54 d.C. A
comunidade de Corinto era mista: judeus e gentios. Nesse ambiente, havia forte
influência do pensamento helenístico e da cultura grega. As crenças sobre a
vida após a morte variavam, e havia debates significativos sobre a ressurreição
dos mortos. Alguns membros da comunidade questionavam a ressurreição, e Paulo
estava intermediando esses conflitos.
O
apóstolo utiliza a literatura do Antigo Testamento e traz a figura de Adão, o
primeiro ser humano, como representante da humanidade caída e sujeita à morte,
contrastando-o com Cristo, o segundo Adão, que traz a vida espiritual e a
ressurreição.
“O
primeiro homem, Adão, foi um ser vivo” (v. 45). Aqui, Paulo se refere a Gênesis
2,7, quando Deus forma Adão do pó da terra e sopra nele o fôlego de vida. Adão
representa a humanidade em seu estado natural: mortal e sujeito ao pecado e à
morte.
“O
segundo Adão é um espírito vivificante” (v. 45). Cristo, ao contrário, é visto
como aquele que, por meio de sua ressureição, traz vida espiritual. A
ressurreição de Jesus é central para a fé cristã e para a argumentação de
Paulo, que afirma que a vida eterna é possível por intermédio de Cristo.
“Veio
primeiro não o homem espiritual, mas o homem natural” (v. 46). Paulo estabelece
uma ordem: primeiro, a criação terrena de Adão; depois, a nova criação
espiritual por meio de Cristo. Isso reflete uma visão escatológica, em que a
plenitude da redenção é realizada no futuro.
“O
primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do céu” (v.
47). O apóstolo destaca a origem de ambos: Adão é da terra, Cristo é do céu.
Essa dualidade reforça a distinção entre a vida terrena e a vida celestial
prometida aos crentes.
“E como
já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem
do homem celeste” (v. 49). Paulo está convidando os coríntios a refletir sobre
sua transformação espiritual. Assim como os seres humanos compartilham a imagem
de Adão, marcada pelo pecado e pela mortalidade, também serão transformados
para compartilhar a imagem de Cristo, marcada pela vida e pela
incorruptibilidade.
No
fundo, Paulo está respondendo a questões e ceticismos sobre a ressurreição,
usando uma argumentação teológica e metafórica que seus ouvintes pudessem
assimilar. Ele insiste na importância de compreender profundamente a
ressurreição de Cristo como o fundamento da fé cristã e da esperança na vida
eterna.
A
mensagem do apóstolo é um chamado para viver de acordo com essa nova realidade
espiritual. Ele está desafiando a comunidade de Corinto a olhar além das
preocupações terrenas, que são importantes, acreditando em algo que transcende
a vida terrena e adotando uma perspectiva que valorize a transformação espiritual
e a vida eterna.
3. Evangelho (Lc 6,27-38)
O
Evangelho de Lucas, redigido no final do primeiro século, é uma das quatro
narrativas canônicas sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Destinado a ou- vintes gregos e gentios, retrata Jesus como o Salvador
universal, destacando temas de compaixão, inclusão e justiça social. O trecho
deste domingo aborda a dimensão radical do projeto de Jesus, especialmente em
relação ao amor aos inimigos, mensagem que desafia as normas sociais da época.
Jesus redefine a interpretação da Lei e estabelece princípios éticos que
confrontam o senso comum.
“A
todos vocês que me ouvem, eu digo: amem seus inimigos e façam o bem aos que os
odeiam” (v. 27). Como podemos, em nossa condição de crentes, responder a essas
palavras de Jesus? Deveríamos remover essa instrução do Evangelho? Ignorá-la em
nossa consciência? Adiá-la para um momento mais conveniente?
Independentemente
das culturas, a atitude predominante das pessoas com relação aos inimigos –
aqueles dos quais esperamos apenas o mal – não muda muito. Lísias, um ateniense
do século V a.C., expressou a visão predominante na Grécia antiga, que ainda
ecoa atualmente: “Acredito que alguém deve prejudicar seus inimigos e servir
seus amigos”.
Assim,
o mandamento evangélico de amar os inimigos assume uma importância
revolucionária, sendo considerado pelos estudiosos como a expressão mais clara
da mensagem cristã. Quando Jesus ensina sobre amar os inimigos, não está
propondo um sentimento de afeto ou carinho, mas uma atitude de genuíno
interesse pelo bem-estar deles. Jesus argumenta que a verdadeira humanidade é
fundamentada no amor, e isso implica não excluir os inimigos. Ser
verdadeiramente humano é respeitar a dignidade do inimigo, independentemente de
quão distorcida ela possa parecer. Em vez de amaldiçoar, Jesus ensina a
abençoar.
Esse
amor abrangente, que busca o bem de todos sem exceção, representa a
contribuição mais humanizadora que os seguidores do Evangelho de Jesus podem
oferecer à sociedade. Em momentos em que parece impossível amar o inimigo,
quando estamos profundamente feridos e precisamos de tempo para recuperar a
paz, é crucial lembrar que também dependemos da paciência e do perdão de Deus.
Por fim, o Evangelho de Lucas apresenta um conjunto de ensinamentos éticos
revolucionários. Jesus desafia seus discípulos a amar os inimigos, perdoar, dar
sem esperar retribuição e não julgar. Sem dúvida, esses ensinamentos
representam a ética radical do Reino de Deus, que transcende as normas sociais
contemporâneas. Jesus nos convoca a viver não pelo princípio da reciprocidade
humana, mas pela generosidade divina, que alcança até mesmo aqueles que nos
prejudicam. Trata-se de mensagem mais que provocante para os dias atuais!
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Liderança
e ética política. A narrativa de Davi e Saul no deserto de Zif
proporciona um olhar atento sobre as dinâmicas éticas e políticas tanto na
esfera da liderança quanto em nossa vida pessoal. Como podemos aplicar os
princípios da ética pessoal e da estratégia política em nossa atuação no mundo
contemporâneo?
– Espiritualidade
e ressurreição. A reflexão teológica de Paulo sobre a
ressurreição e a transformação espiritual nos convida a considerar como nossas
crenças fundamentais sobre a vida após a morte influenciam nossa conduta ética
e nossa esperança no futuro.
– A
ética do Reino e o amor aos inimigos. O ensinamento de Jesus é
profundo e desafia as normas sociais ao propor o amor aos inimigos e a prática
da generosidade sem esperar retribuição. Como podemos aplicar esses princípios
no contexto das relações interpessoais e sociais atuais? Seria viável, ou é
mais simples criar outras interpretações das instruções de Jesus?
– Convite
ao compromisso. O 7º domingo do Tempo Comum nos convida a uma
experiência reflexiva sobre a ética do Reino de Deus. Em meio às incertezas e
desafios do mundo contemporâneo, somos provocados a viver segundo os princípios
da misericórdia, do perdão e do amor incondicional, ensinados por Jesus. O
perdão cristão não pode ser reduzido a um ato de justiça ou imposto como um
dever social. Juridicamente, o perdão não tem lugar; o código penal não
contempla o ato de perdoar. O gesto surpreendente e, muitas vezes, heroico do
perdão surge do amor gratuito, sem depender de condições prévias. Não exige nem
reivindica nada em troca. Quando perdoamos, é por amor genuíno. Estabelecer
condições para o perdão é distorcer sua verdadeira essência. Que esses
ensinamentos sejam mais do que reflexões teóricas, tornando-se o fundamento de
uma vida comprometida com a construção de um mundo mais justo e compassivo, que
reflita a imagem do Reino do Deus da vida.
Gisele Canário*
*é
mestra em Teologia, com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo Testamento), pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em
Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É licenciada em
Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul e assessora no Centro Bíblico
Verbo, onde atua, desde 2011, com a confecção de material para estudos
bíblicos, gravação de vídeos, formação em comunidades eclesiais e cursos
bíblicos on-line.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/23-de-fevereiro-7o-domingo-do-tempo-comum-2/