xv-
SANTO
AGOSTINHO
Queres
saber o teu valor? Olhe para a Cruz. Tu vales um Deus crucificado
Por Guilherme de Lima Razuk
Queres saber o teu valor? Olhe para a Cruz. Tu vales um
Deus crucificado (Santo Agostinho)
Certa vez, tive contato com uma homilia do Cardeal José
Tolentino de Mendonça e, diante de suas palavras, meu coração deu um salto de
consciência tamanho, que era como se escutasse a tradução de uma obra complexa,
porém, de maneira simples e sábia. Disse ele que “o Menino do presépio dá-nos a
medida do humano”, e mais, que “no presépio, cada homem e cada
mulher passa a valer mais, porque, no presépio, ganhamos a consciência daquilo
que somos, ganhamos a certeza desse amor de Deus que nos acompanha” (Homilia
proferida na Igreja de Nossa Senhora da Assunção [Sé, Catedral do Funchal], 22
dez. 2022).
É com essas breves palavras que inicio este artigo. De fato,
você tem consciência da sua grandeza? O Salmo 8 aprofunda o sentido:
“Contemplando estes céus que plasmastes e formastes com dedos de artista; vendo
a lua e estrelas brilhantes, perguntamos: ‘Senhor, que é o homem, para dele assim vos lembrardes e o
tratardes com tanto carinho?’”.
Nossas sociedades transparecem que há uma certa hesitação e um
certo pessimismo em relação à pessoa humana. Achamos que o ser humano vale
pouco, que uma vida não tem assim tanto valor, sobretudo quando é uma vida que
não produz, é mais frágil, mais vulnerável. O Cardeal continuou: “Achamos que
até podemos descartá-la” (idem). Neste momento, Jesus nos faz um convite. Não
muito agradável. Porém, é como quando nossa mãe nos pede para tomarmos um
remédio: por mais amargo que seja, ele nos cura. Olhemos para a Cruz! Ali, encontraremos respostas
às perguntas mais difíceis de nossa existência. Nós valemos um Deus
crucificado.
Papa Francisco nos lembra que para alguns a Cruz parece muda, só
anuncia dor. No entanto, para os cristãos é um convite a sermos generosos, a
unirmo-nos a Jesus que nos espera para nos conceder a mesma capacidade de viver
sempre com amor e não dar espaço às consequências do pecado. Na Cruz, o Senhor restaura a
natureza ferida do homem: perante a maior injustiça, Jesus não
permite que no seu coração humano nasça o ressentimento, a desobediência, o
ódio etc. Só alguém com a força de Deus podia fazer isso. Cristo crucificado está
recriando o homem e entrega-nos essa nova vida nos sacramentos. Por
isso, levar a Cruz não consiste apenas em “suportar com paciência as
tribulações cotidianas, mas em viver com fé e responsabilidade esta parte de
cansaço e de sofrimento que a luta contra o mal traz consigo. (…) Assim o
compromisso de ‘tomar a cruz’ converte-se em participação com Cristo na
salvação do mundo”.
“Para um cristão, exaltar a cruz quer dizer entrar em comunhão com
a totalidade do amor incondicional de Deus pelo homem” (Bento XVI, Discurso,
14/09/2012).
Abraçar a cruz é um ato de fé pelo qual desejamos viver apenas
do amor que Cristo nos oferece. Daí que São João Crisóstomo recorda que a Cruz acompanha a vida
cristã, e isso é uma fonte de alegria: “Que ninguém, pois, se envergonhe dos símbolos
sagrados da nossa salvação, da soma de todos os bens, daquilo a que devemos a
vida e o ser” (São João Crisóstomo, Comentário ao Evangelho de
Mateus, hom. 54, 4-5).
Por mais que nossas dores mais profundas nos assolem, nada
poderia dimensionar a amplitude das dores de Cristo; e por isso mesmo Ele nos
pode ajudar, Ele
é o verdadeiro Caminho, a verdadeira Verdade e a verdadeira Vida;
nada do que digam ou nos façam experimentar se assemelha a tal plenitude dessas
palavras. E mais, somos dignos de receber d’Ele tais dons, porque a Santíssima
Trindade nos ama. Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece
verdadeiramente o mistério do homem. Adão, de fato, o primeiro homem, era
figura do futuro (Rom 5, 14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo
Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor revela também
plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime. E
depois ainda: Imagem de Deus invisível (Col 1,15), Ele é o homem perfeito, que
restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro
pecado. Já que n’Ele a natureza humana foi assumida, sem ter sido destruída,
por isso mesmo também em nosso benefício ela foi elevada a uma dignidade
sublime. Porque, pela
sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem.
Trabalhou com mãos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com uma
vontade de homem e amou com um coração de homem. Nascendo da Virgem Maria, Ele
se tornou verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado
(cf. Gaudium et spes, 22) Ele, o Redentor do homem.
São João Paulo II disse que o Filho de Deus vivo fala aos homens
também como Homem: é a sua própria vida que fala, a sua humanidade, a sua
fidelidade à verdade e o seu amor que a todos abraça. Fala, ainda, a sua morte
na Cruz, isto é, a imperscrutável profundidade do seu sofrimento e do seu
abandono. Continua o Papa polaco, a Igreja não cessa nunca de reviver a sua
morte na Cruz e a sua Ressurreição, que constituem o conteúdo da vida
quotidiana da mesma Igreja. De fato, é por mandato do próprio Cristo, seu
Mestre, que a Igreja celebra incessantemente a Eucaristia, encontrando nela “a
fonte da vida e da santidade” (Litanias do Sagrado Coração), o sinal eficaz da
graça e da reconciliação com Deus e o penhor da vida eterna. A Igreja vive o
seu mistério e nele vai haurir sem jamais se cansar, e busca continuamente as
vias para tornar este mistério do seu Mestre e Senhor próximo do gênero humano:
dos povos, das nações, das gerações que se sucedem e de cada um dos homens em
particular, como se repetisse sempre, seguindo o exemplo do Apóstolo: “Tomei a resolução de não
saber, entre vós, outra coisa, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo
crucificado” (1Cor 2, 2). A Igreja permanece na esfera do
mistério da Redenção, que se tornou precisamente o princípio fundamental da sua
vida e da sua missão.
Por fim, a visão cristã tem a peculiaridade de afirmar e
justificar o valor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu
crescimento. A vocação
cristã ao desenvolvimento ajuda a empenhar-se na promoção de todos os homens e
do homem todo. Escrevia Paulo VI: “O que conta para nós é o
homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira” (Centesimus
annus (1 de Maio de 1991), 53-62). A fé cristã ocupa-se do desenvolvimento sem
olhar a privilégios nem posições de poder nem mesmo aos méritos dos cristãos —
que sem dúvida existiram e existem, a par de naturais limitações (Populorum
progressio ,12) —, mas contando apenas com Cristo, a Quem há de fazer
referência toda a autêntica vocação ao desenvolvimento humano integral.
O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento, porque lá
Cristo, com “a própria revelação do
mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo” (Gaudium
et spes, 22). Instruída pelo seu Senhor, a Igreja perscruta os sinais dos
tempos e interpreta-os, oferecendo ao mundo “o que possui como próprio: uma
visão global do homem e da humanidade” (Populorum
progressio, 13). Precisamente
porque Deus pronuncia o maior “sim” ao homem (Bento XVI,
19 out. 2006), este não pode deixar de se
abrir à vocação divina para realizar o próprio desenvolvimento. A
verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se não é desenvolvimento do
homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro desenvolvimento.
Esta é a mensagem central da Populorum
progressio, válida hoje e sempre. O desenvolvimento humano integral
no plano natural, enquanto resposta a uma vocação de Deus criador (Populorum progressio 16,
procura a própria autenticação num “humanismo transcendente, que leva [o homem]
a atingir a sua maior plenitude: tal é a finalidade suprema do desenvolvimento
pessoal” (Ibid., 16). Portanto, a vocação cristã a tal desenvolvimento
compreende tanto o plano natural como o plano sobrenatural, motivo por que,
“quando Deus fica eclipsado, começa a esmorecer a nossa capacidade de
reconhecer a ordem natural, o fim e o ‘‘bem” (Bento XVI, 17 de jul. 2008).
Pare e medite o que você leu. Experimente a profundidade das
palavras, coloque-se diante do Mistério
da Cruz.
Porque ela foi o seu preço! Queres saber o teu valor? Olhe para a Cruz. Tu
vales um Deus crucificado. O Mistério Pascal é o centro mistérico de toda a
vida litúrgica da Igreja; Sua Paixão, Morte e Ressurreição nos apontam ao que
somos. Somos – amados – filhos de Deus!
Nenhum comentário:
Postar um comentário