Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana
“Sed dignitaten dicit
principaliter retione formae”
São Boaventura
Prof. André Marcelo M. Soares,
Ph.D.*
O conceito de dignidade é um dos mais
relevantes para as reflexões ética, política e jurídica. Por esta razão, a sua
definição filosófica é uma tarefa árdua. A dignidade não é algo que se aplica exclusivamente
ao ser humano, mas, quando se fala em dignidade
humana, é impossível
deixar de lado o conceito de pessoa,
que provoca uma variedade de questionamentos de ordem ontológica, antropológica
e ética[1].
A expressão dignidade da pessoa é a
combinação de dois substantivos, na qual a dignidade figura como termo valorativo aplicado a
um sujeito que necessita se firmar como realidade ontológica (pessoa). Isto nos permite, de
antemão, constatar que é possível refletir sobre o seu significado por dois
caminhos: o ontológico e o ético. Através da via ontológica, pode-se conhecer
uma realidade específica entre outras, que é a de ser pessoa. A via ética, por sua
vez, permite pensar as razões alegadas para dizer que alguém é digno[2].
A origem etimológica da
palavra pessoa encontra-se
no termo grego prosôpon,
que, longe de possuir um sentido ontológico, se referia à máscara que os atores
utilizavam em suas representações teatrais. Apesar de Platão (cerca de 427-347
a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) aplicarem os conceitos de substância,
natureza e essência, com seus respectivos matizes, ao homem, o pensamento grego
desconhecia a realidade de ser
pessoa. Ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma
reflexão antropológica a partir de uma perspectiva cosmológica, segundo a qual
o ser humano era compreendido como a realidade natural mais elevada[3]. Todavia, apesar de ser um animal racional, portador de logos e possuidor de uma alma
intelectiva, não só vegetativa ou sensitiva como nos demais seres da natureza,
nem os gregos e nem os romanos conseguiram perceber nele a realidade única,
original, particular e concreta do ser
pessoa.
É a perspectiva
cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da dignidade do homem, que, segundo
Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de forma destacada a
atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos.
Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria
proporcional a sua capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a
razão.
No cristianismo, o
conceito de pessoa teve um
sentido teológico, por se aplicar primeiramente às pessoas divinas. A seguir,
foi empregado para definir o ser humano, até então concebido simplesmente como
homem[4]. Para o pensador franciscano
Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), era necessário ir além da definição do
filósofo romano Boécio (480-524), para o qual a pessoa é “uma substância
individual de natureza racional”[5]. De acordo com
o Doctor Seraphicus,
o conceito de relação parece definir com mais
profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial.
Deste modo, a pessoa “define-se pela substância ou
pela relação; se se
define pela relação, a pessoa e a relação serão conceitos
idênticos”[6]. Em outras
palavras, na pessoa a relação não
é simplesmente algo acidental, mas estrutural e, portanto, inerente a sua
própria natureza[7].
A definição de Boécio,
seguida por muitos outros filósofos, tem como núcleo o conceito aristotélico
de ousia (ou substantia), utilizado
fundamentalmente para definir as coisas
naturais. Nesta concepção, a pessoa, tal como as demais coisas, é
concebida como hypóstasis (ou suppositum), embora mais digna por
ser dotada de razão. Para o Doctor
Seraphicus, quando se trata das pessoas divinas, esta noção pode
parecer estranha. Afinal, de forma alguma é possível interpretar as pessoas
divinas como coisa. É por este
motivo que ele utiliza o conceito de relação para
referir-se, por analogia, à pessoa humana. O fato de o homem ser concebido
como imago Dei significa
que, além de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua
criação, relacionado com o seu criador.
Segundo Boaventura,
“a pessoa é a
expressão da dignidade e da nobreza da natureza racional. E esta nobreza não é
uma coisa acidental, mas pertence à sua essência”[8]. Cada homem, em particular, foi criado por Deus não
seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade
divina[9]. É neste fato que repousa
a dignidade humana.
A partir do século
XVIII, sobretudo com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas
perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade. De acordo com Kant, a dignidade humana encontra-se
na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura
capaz de se submeter livremente as leis morais que são reconhecidas como
procedentes da razão prática[10]. Tal capacidade
se deve ao fato do ser humano possuir, além de uma dimensão fenomênica, que o submete às leis
físicas que regulam o universo e a ele mesmo, uma dimensão noumênica, que o torna um ser subjetivo,
livre, constituído por uma interioridade e por uma consciência moral. Esta
dimensão é a que lhe possibilita ser autônomo, isto é, um sujeito moral que
reconhece o valor e a obrigatoriedade das normas que ele mesmo se impõe, sendo
fiel ao imperativo categórico[11].
Para os pensadores da
pós-modernidade, a dignidade
humana nada tem a ver com os esquemas assinalados
anteriormente. Nem as qualidades intelectuais (a razão), nem os pressupostos
metafísicos (ontologia do ser humano) e nem a capacidade moral (autonomia)
fundamentam a dignidade humana.
Ela resultaria, portanto, de uma ação institucional segundo a qual determinadas
sociedades, através do processo democrático, decidiriam de forma contingente e
convencional (o único modo possível) o grau de sua utilidade ou eficácia para
resolver conflitos sociais.
Segundo o neopragmatismo
pós-moderno de Richard Rorty (1931-2007), os mecanismos da emotividade humana
(especialmente a compaixão) explicam mais claramente como as abstrações
racionalistas transformam em tendência social o reconhecimento de uma dignidade que converte em
imoral o sofrimento desnecessário a quem se convencionou considerar como membro
desta sociedade[12]. Os
ingredientes básicos da perspectiva rortyana são: a contingência da dignidade humana, por um lado e
o marco emotivista,
onde se situa a raiz da defesa da dignidade,
por outro.
Frente à racionalização
do ser humano no pensamento grego clássico, à ontologização da pessoa na tradição cultural
cristã e jusnaturalista e à autonomia do indivíduo na filosofia moderna
germânica, o filósofo norte-americano Richard Rorty propõe um retorno ao
pensamento de David Hume (1711-1776), segundo o qual os sentimentos e a
utilidade social constituem o motor da ação moral e a base de qualquer direito
humano[13].
Interpretando os
diferentes modelos de dignidade, pode-se afirmar que o modelo
grego clássico, o kantiano moderno e o neopragmático pós-moderno foram
elaborados a partir de um tipo de reflexão denominada de fundamentação condicionada,
considerando que a afirmação da dignidade
humana depende do desenvolvimento e execução de determinadas
qualidades intelectuais e morais da pessoa. No caso do neopragmatismo, os
critérios escolhidos são os de utilidade social, conveniência e capacidade. Já
a perspectiva ontológica, própria da tradição cristã e do jusnaturalismo,
oferece uma fundamentação incondicionada,
na qual a dignidade não
depende de fatores externos ao ser humano, nem sequer do exercício de
faculdades intelectuais ou morais, mais desenvolvidas nos adultos. Nesta
perspectiva, a dignidade humana não está condicionada
e não se sujeita às convenções jurídico-sociais.
* Filósofo, mestre
e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador
acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro
do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA –
Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do
Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).
_____________________
[1] Cf.
ADORNO, R. Bioética y dignidad de la
persona. Madrid: Tecnos, 1998.
[2] Cf.
WOJTILA, K. Metafisica della persona.
Milano: Edizioni Bompiani Il Pensiero Occidentale, 2003; MOUNIER,
E. Il personalismo.
Roma: Editrice AVE, 1999; VV.AA. Persona
e personalismo. Aspetti filosofici e teologici. Padova: Gregoriana,
1992.
[3] Cf.
FRAILE, G. Historia de la filosofia.
Vol. I, Madrid: BAC, 1990, p. 370-381, 456, 464, 468-470, 487-504.
[4] Cf.
JONES, D.A. The soul of the embryo:
an enquiry into the status of the human embryo in the christian tradition. London/
New York: Continuum, 2004, p. 125-140.
[5] II
Sent., d. 25, a. 2, q. 2 ad 4.
[6] MTr,
q. 2, a. 2, n. 9. (V, 66s).
[7] Cf. MERINO, J.A. Historia de la filosofia franciscana.
Madrid: BAC, 1993, p. 71.
[8] II
Sent., d. 3, p. 1, a. 2, q. 2ad 1 (II, 107).
[9] Cf.
RAPONI, S. Il tema
dell’immagine-somiglianza nell’antropologia dei padri. Roma:
Teresianum, 1981; RUIZ DE LA PEÑA, J.L. Immagine
di Dio: antropologia teologica fondamentale. Roma: Borla, 1992;
BÜHLER, P. Humain à l’image de Dieu.
La théologie et lês sciences humaines face au problème de l’antropologie. Genève:
Labor et Fides, 1989; ANDERSON, R. On
being human. Essays in theological anthropology. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.
[10] Cf.
HIRSCHBERGER, J. Historia
de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 179-189.
[11] Cf.
KANT, I. Crítica da razão prática.
São Paulo: Martins fontes, 2002, p. 33-35; HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II,
Barcelona: Herder, 1956, p. 172-174; PASCAL, G. O pensamento de Kant. Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 108-126.
[12] Cf.
RORTY, R. Contingency, irony and
solidarity. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989, p. 59; RORTY, R. Derechos humanos,
racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S; HURLEY, S. De los derechos humanos. Madrid:
Trotta, 1998, p. 117-136.
[13] Cf.
CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética.
São Paulo: Loyola, 2005, p. 66-68.
https://www.presbiteros.org.br/um-breve-apontamento-sobre-o-conceito-de-dignidade-da-pessoa-humana/
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