O Evangelho de Jesus Cristo crucificado: Entendendo a carta aos Gálatas (I)
Por Shigeyuki Nakanose, svd* e Maria Antônia Marques**
Introdução
Recordando o modo inusitado do
nascimento das “igrejas da Galácia” (Gl 1,2), Paulo lhes escreve uma carta
direta e personalizada, para que se esforcem por clarificar as ideias –
perturbadas pela intervenção do grupo judaizante – e voltem a viver na
liberdade, na igualdade e na unidade, à luz da vida, morte e ressurreição de
Jesus Cristo.
Por volta dos anos 53-54 d.C., as
comunidades gálatas entraram em crise. Os convertidos gálatas, gentios em sua
maioria, foram “enfeitiçados” pelo grupo de tendência judaizante – que
preconizava o modo de viver como judeus, segundo a cultura e os costumes
judaicos – e caíram sob o jugo da Lei: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os
enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus
Cristo crucificado? Quero saber somente isto de vocês: foi pelas obras da Lei
que vocês receberam o Espírito, ou foi pela aceitação da fé?” (Gl 3,1-2).
O grupo judaizante radical (Gl
1,7; 4,17; 5,7-12; 6,13) tentou impor aos convertidos gálatas a circuncisão –
que ocupava lugar central no judaísmo oficial, na qualidade de sinal da aliança
com Deus Javé –, como meio de alcançar a salvação, e atacou o Evangelho e a
prática pastoral de Paulo: “Não existe outro Evangelho. No entanto, alguns
estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o Evangelho de Cristo” (Gl
1,7).
No dizer de Paulo, o grupo
judaizante radical anuncia outro Evangelho, baseado na justiça pela observância
da Lei, provocando e justificando a segregação e a desigualdade nas comunidades
gálatas e até a escravidão no mundo greco-romano. O grupo desvirtua o Evangelho
baseado na justiça que vem pela fé no amor e na graça de Cristo Jesus
crucificado (Gl 5,5-6).
A discriminação, a desigualdade e
a marginalização das pessoas são intoleráveis para a “verdade do Evangelho” (Gl
2,5), segundo a liturgia batismal, citada por Paulo: “Não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só
em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Afinal, quem é Paulo, que prega a unidade entre as
pessoas sem as barreiras raciais, sociais e sexuais?
1. Conhecendo Paulo
Paulo,
“circuncidado no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu
filho de hebreus” (Fl 3,5), converte-se ao amor de Cristo Jesus. O judeu
“perseguidor da Igreja” (Gl 1,13) transforma-se em seguidor de Jesus
crucificado, pregando a mensagem da justificação pela obra da fé, pelo esforço
do amor e pela constância da esperança no Senhor Jesus Cristo (1Ts 1,3).
Segundo a prática
religiosa da sinagoga do seu tempo, Paulo, um judeu fariseu, bastante cônscio
de seu trabalho de observar a Lei de Moisés, pregava a salvação pela
observância da lei da pureza, a obra salvífica que era justificada pela fé no
Deus poderoso e castigador (Dt 30,15-18) e argumentada pela teologia da
retribuição – segundo a qual Deus retribuía saúde, riqueza e vida longa a quem
observasse a Lei com sua exigência de sacrifícios de purificação, pagamento dos
dízimos etc. (Dt 28; Ml 3,6-12). Desta forma, seria possível manipular Deus
conforme a justiça alcançada pela observância da Lei. Observada a Lei, Deus seria
obrigado a retribuir e ajudar a pessoa “justa”.
Como fariseu, Paulo
desprezava e discriminava pobres, doentes e estrangeiros como impuros, pois
eles, muitas vezes, infringiam a Lei. Em sua prática da Lei, tornou-se
perseguidor do grupo dos judeus helenistas crentes em Jesus de Nazaré, que
estavam pregando e perturbando a ordem religiosa (templo e Lei) de Jerusalém, a
qual justificava o poder e as riquezas dos governantes judaicos. Paulo, um
fariseu irrepreensível, era cheio de si e auto-suficiente (Fl 3,6).
No entanto, ele
mudou sua vida! Graças ao contato com a vivência comunitária e fraterna dos
seguidores de Jesus que sofriam perseguição (At 9,10-19), aos poucos, foi sendo
tocado pelo amor gratuito de Jesus de Nazaré, o Crucificado, que seria “escândalo”
para os judeus (Dt 21,22-23). Paulo começou a acreditar que Jesus crucificado
por Pilatos era o Messias de Javé, o Filho de Deus, como havia anunciado o
Segundo Isaías, na forma do servo sofredor (Is 42,1-9; 52,13-53,12). Ele
descobriu que o projeto da vida foi manifestado na cruz de Jesus como graça de
Deus, e não pela observância da Lei (Gl 2,19-21).
Na prática, Paulo
abandonou o grupo dos judeus fariseus, com seu modo legalista e ritualista de
ver Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e ingressou no movimento de
Jesus Cristo crucificado, praticando e experimentando no dia a dia o amor
gratuito e incondicional de Deus. Em seu longo processo de transformação e
aprendizagem (Gl 1,15-18), começou a pregar a salvação pela prática do amor, a
obra salvífica justificada pela fé na graça de Deus misericordioso, Pai e Mãe
(Os 11,1-4; 1Ts 2,1-12) – ou seja, a teologia da gratuidade (Jn 4; Rm 5,1-2).
Sendo um judeu de
cultura greco-romana – judeu helenista, como Estêvão e Filipe –, Paulo se
formou nas comunidades helenistas de Damasco (Gl 1,17) e iniciou seu trabalho
missionário na comunidade de Antioquia da Síria (At 11,19-30), composta de
judeus helenistas e gentios, em sua maioria, e de língua grega, mais aberta à
realidade multicultural e multirracial de Antioquia. Nela a circuncisão e as
leis alimentares judaicas não eram impostas aos seguidores gentios de Jesus
Cristo.
Com o tempo, a
comunidade de Antioquia, com tal prática, entrou em conflito com a “igreja mãe
de Jerusalém” (Gl 1,18-24), que era formada, em sua maioria, por judeus que
acreditavam em Jesus como o Messias prometido, mas assumia uma prática mais
tradicional, pregando um Evangelho subordinado às tradições judaicas. A postura
dos judaizantes era clara: os gentios poderiam participar das promessas feitas
por Deus ao povo de Israel, desde que estivessem dispostos a observar a Lei.
O conflito resultou
na realização da primeira ssembléia em Jerusalém, por volta do ano 49, cuja
discussão girou em torno da imposição da circuncisão e de outros costumes
judaicos aos gentios que seguiam Jesus (Gl 2,1-10; At 15). Apesar da dura
oposição dos “falsos irmãos” (Gl 2,4) – um grupo judaizante radical na igreja
de Jerusalém –, Paulo defendeu a prática missionária segundo a “verdade do
Evangelho” e selou acordo com os apóstolos de Jerusalém. Estes consideravam sua
missão restrita aos circuncidados, mas mesmo assim reconheciam e apoiavam a
missão do grupo de Paulo (Gl 2,3-10).
Entretanto, os
“falsos irmãos” (cf. At 15,1.5) acreditavam na necessidade de todos os
seguidores de Jesus se tornarem judeus e exigiam deles a observância da Lei em
sua totalidade, rejeitando o acordo firmado na ssembléia de Jerusalém.
Historicamente, a influência desses judaizantes radicais chegou à Macedônia, à
Grécia e à Ásia Menor, causando conflito com a missão de Paulo.
Após a ssembléia,
Paulo desempenhou com maior vigor sua missão entre os gentios. Na segunda
viagem, durante 49-52 d.C., seu grupo realizou a missão em meio aos gentios da
Ásia Menor, da Macedônia e da Grécia, fundando comunidades na Galácia, em
Filipos, Tessalônica, Corinto etc. (At 15,36-18,23), comunidades compostas de
judeus e gentios que tentavam viver a irmandade em nome de Jesus Cristo
crucificado.
Com o tempo, as
comunidades foram apresentando vários problemas: perseguições dos judeus e
governantes romanos (1Ts 2,1-2) e conflitos internos (1Cor 1,10-16) etc. As
comunidades gálatas também não escaparam da crise provocada pela diversidade.
Nelas surgiram, por volta dos anos 53-54 d.C., conflitos provocados por dois
grupos principais: por um lado, o grupo “judaizante” tentava submeter à
circuncisão e aos costumes judaicos os gentios que abraçaram a mensagem de
Jesus, suscitando a segregação e a desunião nas comunidades (Gl 3,1-5,12); por
outro, o grupo “liberal” exagerava a liberdade cristã, desrespeitando qualquer
mandamento e criando uma crise ética (Gl 5,13-26). De certa forma, essa
situação crítica das comunidades gálatas era marcada pela realidade particular
do povo da Galácia.
2. Conhecendo a Galácia
O nome Galácia
deriva dos gauleses (gálatas), descendentes de antigos imigrantes celtas,
provenientes do território da Gália (França, Bélgica, Itália etc.), que
invadiram, em 279-277 a.C., o centro-norte da Ásia Menor (a região entre a
Capadócia e o Ponto). Os gálatas foram subjugados pelo Império Romano em 189
a.C. Após longo período de vassalagem, o reino gálata passou a ser a província
romana da Galácia, com a capital Ancira (hoje Ancara), em 25 a.C., ficando,
desde então, sob a dominação direta de Roma.
Quanto à vida do
povo, a Galácia era basicamente uma província rural agrícola e pecuária
(pequenos rebanhos). Era abundante a produção de cereais e vinho, e a fonte
principal de riqueza consistia na produção de lã. Sabe-se que as enormes
fazendas de ovelhas ocupavam grande parte da área central e meridional da
Galácia, e a maioria das terras pertencia ao Império Romano. Como práxis do
império, a produção da região não só beneficiava a elite local, mas também era
levada a Roma pelos “mercadores da terra” para enriquecer a autoridade
imperial. A maioria da população estava submetida à escravidão do império,
vivendo na miséria e sofrendo espoliação e violência dos governantes.
Nesse longo
processo de romanização, a sociedade gálata foi marcada pelo sistema de
escravatura. O duro trabalho nas fazendas de ovelhas, por exemplo, empobrecia e
enfraquecia o povo. O sofrimento deste aumentava ainda mais com a dominação
cotidiana do império. Para além da brutalidade e violência do exército, da
cobrança sistemática do imposto e do monopólio do comércio, a legitimação do
poder imperial era feita pela implantação da religião e da cultura do Império
Romano. Por exemplo, no culto, o evangelho – a “boa-nova” de César Augusto, o
senhor do império e da terra – era proclamado, exaltando o império e o
imperador por estabelecerem na terra a paz e a salvação.
Exatamente para
esse mundo é que Paulo levava o Evangelho de Jesus Cristo crucificado,
introduzindo novo sistema capaz de mudar as relações humanas. No lugar do
vínculo senhor-escravo, ele propôs o da irmandade e o da liberdade, conforme
sua proclamação nas comunidades da Galácia.
3. Conhecendo as comunidades gálatas
Durante sua
primeira viagem missionária (46-48 d.C.), Paulo e Barnabé devem ter percorrido
o sul da Galácia, região habitada por romanos, gregos e judeus, passando por
Icônio, Listra e Derbe, entre outras cidades (At 13,50-14,28). Realizaram a
missão entre judeus e simpatizantes gentios nas sinagogas por onde passaram,
fundando várias comunidades. Paulo voltou para lá durante sua segunda viagem
(49-52 d.C.; cf. At 16,1-8) e percorreu também o norte da Galácia (a região em
torno das cidades de Ancira e Pessinunte; cf. At 16,6), evangelizando os
gálatas propriamente ditos. Na terceira viagem (53-57 d.C.), ele passou de novo
pela Galácia e pela Frígia (cf. At 18,23).
Por volta do ano 50
d.C., nessa região do norte da Galácia, as comunidades dos seguidores de Jesus
foram fundadas em uma circunstância incomum: “Vocês sabem que foi por causa de
uma doença física que lhes anunciei o Evangelho pela primeira vez” (Gl 4,13).
No meio dos gálatas, o “Evangelho de Cristo” (Gl 1,7) havia causado grande
entusiasmo, pois a irmandade pregada em nome de Jesus Cristo crucificado
suscitara o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da escravidão
do império. O entusiasmo, porém, durou pouco. Logo depois da segunda visita de
Paulo, essas comunidades caíram na escravidão da Lei de Moisés (Gl 1,6). E,
para piorar
a situação, alguns membros contestaram a autoridade de Paulo e seu Evangelho
(Gl 1,7-10).
Possivelmente,
durante a longa permanência de dois anos e meio em Éfeso (53-55 d.C.), Paulo
recebeu notícias de um ataque contra ele e seu Evangelho em meio às comunidades
da Galácia, que estavam em crise. A carta aos Gálatas, então, foi escrita, com
muita emoção, como uma resposta de Paulo nesse contexto conturbado; por isso,
ela revela tal discussão e a situação pela qual as comunidades gálatas estavam
passando, além de retratar as características delas e sua relação com o
apóstolo:
- a) Os membros das
comunidades gálatas eram gentios que só conheceram o Deus judeu e a
mensagem de Jesus depois de sua conversão de vida (4,8-9; 5,2-3; 6,12).
- b) As comunidades acolheram
Paulo, um enfermo judeu, sem discriminação (4,13-14). O laço afetivo das
comunidades com Paulo era tão forte, que o fez declarar: “se fosse
possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim” (4,15).
- c) Paulo anunciara a “cruz
de Jesus Cristo” (3,1), na qual a graça de Deus foi dada (2,21). Por ela,
os convertidos gálatas tornaram-se pessoas capazes de amar e de se pôr a
serviço umas das outras (5,13).
- d) No batismo, o Evangelho
de Jesus Cristo crucificado, com seu amor gratuito, foi assumido pelos
gentios pobres como fonte de liberdade, irmandade e igualdade em um mundo
escravagista (3,23-29).
- e) O ponto principal de
discussão e de crise é “outro Evangelho”, que “distorce o Evangelho de
Cristo” (1,7). O grupo judaizante radical insiste: o seguidor de Jesus
deve submeter-se à prática de todas as leis judaicas para alcançar a
salvação (2,11-21).
- f) Os convertidos gálatas
estavam prestes a se submeter à Lei de Moisés (4,1) e a trair a amizade e
a lealdade com Paulo, abandonando o verdadeiro Evangelho (1,6) e decaindo
da graça (5,4).
- g) Alguns membros, gentios
cristãos, fizeram-se circuncidar (5,2-4) e exerciam pressão sobre os
outros membros das comunidades (6,13).
- h) Havia o grupo helenizado,
com o espírito da busca desenfreada de bens, poder e prazer, que
radicalizou a liberdade, transformando-a em libertinagem, causando um
problema ético e aumentando as tensões internas (5,13-24).
- i) Os opositores negavam a
autoridade do apóstolo Paulo e seu Evangelho (1,1-5.7-10).
- j) Diante do risco real de
perder as comunidades “amadas”, Paulo, indignado e revoltado, chegou a
dizer: “Que se mutilem de uma vez aqueles que estão perturbando vocês!”
(5,12).
Informado da grave
ameaça à fé em Jesus Cristo crucificado, ao seu verdadeiro Evangelho e à
prática do amor, da igualdade e da unidade, e diante da acusação contra sua
condição de apóstolo, Paulo escreveu a carta aos Gálatas, cheia de raiva e
emoção, provavelmente de Éfeso, entre 54 e 55 d.C.
(Continua no próximo Domingo)
Shigeyuki
Nakanose, svd* e Maria Antônia Marques**
*é assessor do
Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de Estudos Superiores
(Itesp). E-mail: contato@cbiblicoverbo.com.br
**é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de
Estudos Superiores (Itesp). E-mail: ma.antoniacbv@yahoo.com.br
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