sábado, 13 de novembro de 2021

Perspectivas escatológicas a partir da COVID-19 - (Continuação...)


Por Dom Leomar Antônio Brustolin

 

4-    ESPERAR E CONFIAR

 

Na contradição entre o hoje e o amanhã, entre a experiência e a espera, o ser humano se defronta com as várias possibilidades de se posicionar em relação ao futuro: desespero, presunção ou esperança. Entretanto, o que mais ameaça a esperança é a crise. Ela faz que se perca a confiança no tempo, pois já não se sabe se haverá futuro. Para Santo Agostinho, “estas duas coisas matam a alma: o desespero e a falsa esperança” (Sermão 87,8).


Desespero é a atitude daqueles que negam o futuro porque o identificam com o mal que está presente. Pensam o hoje como tédio e caos. Apregoam o fim do mundo e interpretam a pandemia segundo uma visão catastrófica e, às vezes, até como resultado de castigo divino. É atitude de quem perde a fé e a esperança. Confiar demais nas próprias forças pode ter um custo muito alto: não saber confiar totalmente na surpresa de Deus. “O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores das estrelas” (FRANCISCO, 2020, p. 23). Deus está do nosso lado, e não do lado do vírus.


Presunção é a atitude daquele que avalia falsamente a si mesmo e as capacidades do mundo. Identifica-se o presente com o bem que deve vir. Faz-se a idolatria da hora, vive-se o engano da falsa esperança. Sugerem-se soluções simplórias, fáceis e até mágicas; postura essa de quem não é realista nem prudente, visto que prefere julgar a realidade numa ótica unilateral e equivocada. A Covid-19 desmascara as presunções e pega nossas sociedades despreparadas […] em relação à nossa visão de mundo e existência. Do que julgamos distante, e do que é realmente próximo. Do que consideramos estritamente individual e do que é coletivo. Do que acreditamos poder nos proteger e do que isso nos expõe (MENDONÇA, 2020, p. 7-8).


Esperança é a paixão por aquilo que é possível. É a estrutura originária da existência humana no mundo e a estrutura originante que qualifica a existência diante do futuro e, ao mesmo tempo, subverte a ordem atual. O humano vive na medida em que espera, porque ele é esperança. Entre o já realizado e o ainda não alcançado, a esperança galvaniza o presente, suscitando novas possibilidades, oportunidades e caminhos.


A esperança se fundamenta na confiança na ação do Espírito Santo, que infunde conforto e paz em tempos de adversidade. Essa serenidade e alegria são penhor e antecipação da glória vindoura (2Cor 1,3-7). A dor, então, não é prerrogativa do apóstolo ou de alguns cristãos, porque, na verdade, faz parte do ser em Cristo. Sofrer com Cristo, assim, é graça especial que ultrapassa a graça da fé.


Por isso, o apóstolo Paulo chega a anunciar aflições para sua comunidade cristã. Para ele, a dor não é apenas algo que deva ser suportado, mas é, muito mais, uma luta ativa pela causa de Cristo. Assim, não se envergonhava nem se abatia pelos sofrimentos; ao contrário, via, nas perseguições e nos tormentos pelos quais passava, motivo de alegria e fonte de conforto, porque sabia que se tornavam um indício da salvação ao se incorporarem à paixão de Cristo.


Nesse sentido, a fé não pode ocupar-se em responder ao porquê da pandemia e das mortes. Na Sagrada Escritura, não se encontra uma solução racional para a questão da dor e da morte. Mesmo que os textos tendam, em sua maior parte, a conceber a dor como resultado de uma desordem introduzida no mundo pelo pecado, o certo é que, biblicamente, não se sustenta a ideia de que todo tipo de sofrimento humano é resultado de um destino cego que advém sobre a humanidade. Muito mais, ele é entendido como uma disposição da insondável sabedoria divina, a qual o ser humano deve reverenciar pela força da fé.

 

5.    SOLIDÁRIOS NA DOR E NO SERVIÇO À VIDA

 

O flagelo não é uma vingança, tampouco um castigo divino para descontar as faltas humanas. É um caminho para que a humanidade alcance a felicidade eterna. Por um lado, a dor induz o pecador a abandonar o pecado e se voltar para Deus; por outro, o sofrimento é vivido pelo justo como um meio da pedagogia divina. Essa pandemia nos tornará melhores ou piores, disse o papa Francisco no Ângelus de 31 de maio de 2020. Se todos entenderem o significado de estarmos juntos e na solidariedade que nos envolve, cresceremos.


A dor de Cristo se renova e continua na dor do seu discípulo. Isso acontece porque Cristo não sofreu por si mesmo, mas pelos outros. O mesmo vale para o cristão, que não sofre por si, mas pelos outros. Ele, portanto, não sofre só porque Cristo sofreu, mas padece porque é continuador da obra de Cristo (Cl 1,4). Enquanto for instrumento de Cristo por essência, ele deve sofrer pelos outros.


Essa dor solidária se traduz, sobretudo, na incansável labuta dos profissionais da área da saúde que se dedicam a mitigar o sofrimento das vítimas da Covid-19. Para poder ajudar, esses servidores da vida precisam lidar com o sofrimento de assistir às mortes ocorridas na solidão, com a agonia do paciente incapaz de respirar e com a carência de recursos suficientes para atender a todas as demandas. Para permanecer na missão, esses profissionais, mesmo sem saber e, talvez, até sem crer, ingressam numa comunhão profunda com os sofrimentos de Cristo. Entenderam que somos capazes de “sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor da verdade e da justiça; sofrer por causa do amor e para se tornar uma pessoa que ama verdadeiramente” (SS 39).

 

CONCLUSÃO

 

Para quem crê, até mesmo a provação da pandemia pode estabelecer uma intimidade com Cristo e fortalecer a esperança na vida eterna. Com ele, o sofrer implica tentação e convite.


Tentação, porque a dor, seja ela qual for, ameaça as seguranças e certezas. Ela é uma ruptura que pode fragmentar a pessoa. Quando o sofrimento provoca revolta, constata-se uma reação até natural de quem se sente impotente e não consegue avaliar os limites da natureza. Não raras vezes, imputa-se a Deus a impotência humana. Nesse caso, a crise atinge a fé e a esperança.


Convite, porque ao absurdo da dor se contrapõe a solidariedade de Cristo, a qual modifica o sentido do sofrimento. Se a revolta é uma reação natural, a paz é um dom sobrenatural a ser acolhido. Quem sofre pode crescer moral e espiritualmente com essa experiência. É claro que poucos conseguem viver tudo isso em meio a grande provação. Isso depende da capacidade mística de se abandonar, incondicionalmente, nas mãos de Deus. É a condição de quem compreende que somente quem crê e espera em Cristo pode abrir caminhos de libertação da escravidão imposta pelo mal. Assim, não interessa quanto se sofre, mas como se sofre.


No cristianismo primitivo, entendia-se que as perseguições, os martírios e as dificuldades de toda sorte tinham profunda conexão com a esperança. Aceitava-se sofrer porque Cristo havia sofrido. Não era uma atitude passiva e fraca, e as tribulações eram percebidas como sinais de que o tempo messiânico havia efetivamente começado. Os sofrimentos permitiam participar da paixão de Cristo, mas se esperava que, em breve, ocorreria sua vinda gloriosa. Enfim, sofria-se na esperança da vitória (2Ts 1,4-10).


Afinal, precisamos das esperanças – menores ou maiores – que, dia após dia, nos mantêm a caminho. Mas, sem a grande esperança que deve superar todo o resto, aquelas não bastam. Esta grande esperança só pode ser Deus, que abraça o universo e nos pode propor e dar aquilo que, sozinhos, não podemos conseguir (SS 16).


A pandemia da Covid-19 encerrou um jeito de viver neste mundo. Novos ritmos e novos estilos de interação com a nova realidade irão se impor. A falsa segurança e o delírio de onipotência ruíram. Há dúvidas, incertezas e inseguranças sobre o futuro próximo. A fé cristã, porém, sustentada por uma esperança que não decepciona (Rm 5,5), assegura que as promessas de Cristo se cumprirão, porque Deus é fiel (1Cor 1,9). Cabe a cada cristão acolher o tempo presente vivendo entre as coisas que passam e “abraçando” aquelas que não passam. A empatia, a solidariedade e a defesa da vida são testemunhos de uma caridade que jamais se perderá.

 

Referências bibliográficas

 

BENTO XVI, Papa. Carta Encíclica Spes Salvi: sobre a esperança cristã (SS). São Paulo: Paulinas, 2007.

CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro: Record, 2009.

FRANCISCO, Papa. Vida após a pandemia. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020.

MENDONÇA, José Tolentino de. Il potere della speranza. Milano: Vita e Pensiero, 2020.

 

Dom Leomar Antônio Brustolin

é bispo auxiliar de Porto Alegre, doutor em Teologia, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), membro da Comissão de Doutrina da Fé da CNBB. E-mail: leomar.brustolin@pucrs.br

https://www.vidapastoral.com.br/edicao/esperar-o-mundo-que-vira-perspectivas-escatologicas-a-partir-da-covid-19/

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