Perspectivas escatológicas a partir da COVID-19 - (Continuação...)
Por Dom Leomar Antônio Brustolin
4-
ESPERAR
E CONFIAR
Na
contradição entre o hoje e o amanhã, entre a experiência e a espera, o ser
humano se defronta com as várias possibilidades de se posicionar em relação ao
futuro: desespero, presunção ou esperança. Entretanto, o que mais ameaça a
esperança é a crise. Ela faz que se perca a confiança no tempo, pois já não se
sabe se haverá futuro. Para Santo Agostinho, “estas duas coisas matam a alma: o
desespero e a falsa esperança” (Sermão 87,8).
Desespero
é a atitude daqueles que negam o futuro porque o identificam com o mal que está
presente. Pensam o hoje como tédio e caos. Apregoam o fim do mundo e interpretam
a pandemia segundo uma visão catastrófica e, às vezes, até como resultado de
castigo divino. É atitude de quem perde a fé e a esperança. Confiar demais nas
próprias forças pode ter um custo muito alto: não saber confiar totalmente na
surpresa de Deus. “O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não
somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os
antigos navegadores das estrelas” (FRANCISCO, 2020, p. 23). Deus está do nosso
lado, e não do lado do vírus.
Presunção
é a atitude daquele que avalia falsamente a si mesmo e as capacidades do mundo.
Identifica-se o presente com o bem que deve vir. Faz-se a idolatria da hora,
vive-se o engano da falsa esperança. Sugerem-se soluções simplórias, fáceis e
até mágicas; postura essa de quem não é realista nem prudente, visto que
prefere julgar a realidade numa ótica unilateral e equivocada. A Covid-19
desmascara as presunções e pega nossas sociedades despreparadas […] em relação
à nossa visão de mundo e existência. Do que julgamos distante, e do que é
realmente próximo. Do que consideramos estritamente individual e do que é
coletivo. Do que acreditamos poder nos proteger e do que isso nos expõe
(MENDONÇA, 2020, p. 7-8).
Esperança
é a paixão por aquilo que é possível. É a estrutura originária da existência
humana no mundo e a estrutura originante que qualifica a existência diante do
futuro e, ao mesmo tempo, subverte a ordem atual. O humano vive na medida em
que espera, porque ele é esperança. Entre o já realizado e o ainda não alcançado,
a esperança galvaniza o presente, suscitando novas possibilidades,
oportunidades e caminhos.
A
esperança se fundamenta na confiança na ação do Espírito Santo, que infunde
conforto e paz em tempos de adversidade. Essa serenidade e alegria são penhor e
antecipação da glória vindoura (2Cor 1,3-7). A dor, então, não é prerrogativa
do apóstolo ou de alguns cristãos, porque, na verdade, faz parte do ser em
Cristo. Sofrer com Cristo, assim, é graça especial que ultrapassa a graça da
fé.
Por isso,
o apóstolo Paulo chega a anunciar aflições para sua comunidade cristã. Para
ele, a dor não é apenas algo que deva ser suportado, mas é, muito mais, uma
luta ativa pela causa de Cristo. Assim, não se envergonhava nem se abatia pelos
sofrimentos; ao contrário, via, nas perseguições e nos tormentos pelos quais
passava, motivo de alegria e fonte de conforto, porque sabia que se tornavam um
indício da salvação ao se incorporarem à paixão de Cristo.
Nesse
sentido, a fé não pode ocupar-se em responder ao porquê da pandemia e das
mortes. Na Sagrada Escritura, não se encontra uma solução racional para a
questão da dor e da morte. Mesmo que os textos tendam, em sua maior parte, a
conceber a dor como resultado de uma desordem introduzida no mundo pelo pecado,
o certo é que, biblicamente, não se sustenta a ideia de que todo tipo de
sofrimento humano é resultado de um destino cego que advém sobre a humanidade.
Muito mais, ele é entendido como uma disposição da insondável sabedoria divina,
a qual o ser humano deve reverenciar pela força da fé.
5.
SOLIDÁRIOS
NA DOR E NO SERVIÇO À VIDA
O flagelo
não é uma vingança, tampouco um castigo divino para descontar as faltas
humanas. É um caminho para que a humanidade alcance a felicidade eterna. Por um
lado, a dor induz o pecador a abandonar o pecado e se voltar para Deus; por
outro, o sofrimento é vivido pelo justo como um meio da pedagogia divina. Essa
pandemia nos tornará melhores ou piores, disse o papa Francisco no Ângelus de
31 de maio de 2020. Se todos entenderem o significado de estarmos juntos e na
solidariedade que nos envolve, cresceremos.
A dor de
Cristo se renova e continua na dor do seu discípulo. Isso acontece porque
Cristo não sofreu por si mesmo, mas pelos outros. O mesmo vale para o cristão,
que não sofre por si, mas pelos outros. Ele, portanto, não sofre só porque
Cristo sofreu, mas padece porque é continuador da obra de Cristo (Cl 1,4).
Enquanto for instrumento de Cristo por essência, ele deve sofrer pelos outros.
Essa dor
solidária se traduz, sobretudo, na incansável labuta dos profissionais da área
da saúde que se dedicam a mitigar o sofrimento das vítimas da Covid-19. Para
poder ajudar, esses servidores da vida precisam lidar com o sofrimento de
assistir às mortes ocorridas na solidão, com a agonia do paciente incapaz de
respirar e com a carência de recursos suficientes para atender a todas as
demandas. Para permanecer na missão, esses profissionais, mesmo sem saber e,
talvez, até sem crer, ingressam numa comunhão profunda com os sofrimentos de
Cristo. Entenderam que somos capazes de “sofrer com o outro, pelos outros;
sofrer por amor da verdade e da justiça; sofrer por causa do amor e para se
tornar uma pessoa que ama verdadeiramente” (SS 39).
CONCLUSÃO
Para quem
crê, até mesmo a provação da pandemia pode estabelecer uma intimidade com
Cristo e fortalecer a esperança na vida eterna. Com ele, o sofrer implica
tentação e convite.
Tentação,
porque a dor, seja ela qual for, ameaça as seguranças e certezas. Ela é uma
ruptura que pode fragmentar a pessoa. Quando o sofrimento provoca revolta,
constata-se uma reação até natural de quem se sente impotente e não consegue
avaliar os limites da natureza. Não raras vezes, imputa-se a Deus a impotência
humana. Nesse caso, a crise atinge a fé e a esperança.
Convite,
porque ao absurdo da dor se contrapõe a solidariedade de Cristo, a qual
modifica o sentido do sofrimento. Se a revolta é uma reação natural, a paz é um
dom sobrenatural a ser acolhido. Quem sofre pode crescer moral e
espiritualmente com essa experiência. É claro que poucos conseguem viver tudo
isso em meio a grande provação. Isso depende da capacidade mística de se
abandonar, incondicionalmente, nas mãos de Deus. É a condição de quem
compreende que somente quem crê e espera em Cristo pode abrir caminhos de
libertação da escravidão imposta pelo mal. Assim, não interessa quanto se
sofre, mas como se sofre.
No
cristianismo primitivo, entendia-se que as perseguições, os martírios e as
dificuldades de toda sorte tinham profunda conexão com a esperança. Aceitava-se
sofrer porque Cristo havia sofrido. Não era uma atitude passiva e fraca, e as
tribulações eram percebidas como sinais de que o tempo messiânico havia
efetivamente começado. Os sofrimentos permitiam participar da paixão de Cristo,
mas se esperava que, em breve, ocorreria sua vinda gloriosa. Enfim, sofria-se
na esperança da vitória (2Ts 1,4-10).
Afinal,
precisamos das esperanças – menores ou maiores – que, dia após dia, nos mantêm
a caminho. Mas, sem a grande esperança que deve superar todo o resto, aquelas
não bastam. Esta grande esperança só pode ser Deus, que abraça o universo e nos
pode propor e dar aquilo que, sozinhos, não podemos conseguir (SS 16).
A
pandemia da Covid-19 encerrou um jeito de viver neste mundo. Novos ritmos e
novos estilos de interação com a nova realidade irão se impor. A falsa
segurança e o delírio de onipotência ruíram. Há dúvidas, incertezas e
inseguranças sobre o futuro próximo. A fé cristã, porém, sustentada por uma
esperança que não decepciona (Rm 5,5), assegura que as promessas de Cristo se
cumprirão, porque Deus é fiel (1Cor 1,9). Cabe a cada cristão acolher o tempo
presente vivendo entre as coisas que passam e “abraçando” aquelas que não
passam. A empatia, a solidariedade e a defesa da vida são testemunhos de uma
caridade que jamais se perderá.
Referências bibliográficas
BENTO XVI, Papa. Carta Encíclica Spes Salvi: sobre a esperança
cristã (SS). São Paulo: Paulinas, 2007.
CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro: Record, 2009.
FRANCISCO, Papa. Vida após a pandemia. Cidade do Vaticano:
Libreria Editrice Vaticana, 2020.
MENDONÇA, José Tolentino de. Il potere della speranza. Milano:
Vita e Pensiero, 2020.
Dom Leomar Antônio Brustolin
é bispo auxiliar de Porto Alegre, doutor em Teologia, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), membro da Comissão de Doutrina da Fé da CNBB. E-mail: leomar.brustolin@pucrs.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário