"Na ausência da certeza nada há de errado com a esperança” (Carl Simonton)
(*) Lindolivo Soares Moura
Dizem que o que chamamos "casualidade” não é senão a alternativa escolhida por Deus para permanecer no anonimato. Pelo sim e pelo não, o certo é que cabe ao ser humano, ou seja, a cada um de nós, discernir os tempos e sobretudo os sinais que vão tornando visível essa invisibilidade. Pascal dizia que a fé é uma espécie de aposta na existência do Divino, enquanto Unamuno, filósofo árabe, na mesma linha de pensamento afirmava que "acreditar em Deus não é senão desejar que Ele exista".
Ao contrário,
portanto, do que pensam e afirmam fanáticos e fundamentalistas, Deus está longe
de ser uma unanimidade. Certos fatos, entretanto, se revelam desafiadores
quando confrontados com a tarefa de se interpretá-los: fatos realmente,
"fakes", ou simplesmente ficção? Ouça e analise com atenção essa
pequena história - ou "estória", você decide - que ouvi contar, e tire
você mesmo suas próprias conclusões.
Certos
relatos afirmam que numa pequena cidade do sul do Brasil, chamada Gramado,
sempre foi um tanto incomum e inusitada a forma de se celebrar e comemorar o
Natal (viria daí a fama e a procura pelo "Natal de Gramado"?). Tais
relatos asseguram que em dezenas de comunidades o ponto culminante das Celebrações
do dia 25 de Dezembro resume-se no seguinte: em lugar da pequena imagem do
recém-nascido, Jesus, são previamente convidadas todas as crianças - meninos e
meninas, observe-se bem - de mesmo nome do aniversariante, a atuar como
integrante do grande Presépio construído numa das laterais do interior da
Igreja. Ao final da Celebração todos os presentes são convidados a se aproximar
e saudar os (as) recém-nascidos(as) meninos(as) Jesus(es), reverenciá-los(as),
homenageá-los(as) e entoar-lhes cânticos solenes.
Outro
fato curioso, segundo tais relatos, é que, ato continuo à cantata da
tradicional "Noite Feliz", entoa-se solenemente outra canção que diz:
"tudo seria bem melhor, se o Natal não fosse um dia, se as mães fossem
Marias e se os pais fossem Josés, e se a gente parecesse com Jesus de
Nazaré". Geradora inicialmente de muitos protestos, sobretudo por parte
dos menos adeptos a mudanças e inovações - "guardiães dos princípios e dos
bons costumes", como se auto-denominam -
essa espécie de "transposição" foi pouco a pouco caindo na
tolerância e finalmente na graça da grande maioria. A Igreja parece "vir
abaixo" quando as vozes dos diversos "Jesuses" se juntam às de
todos os demais presentes, em repetição a essa espécie de refrão: "...se o
Natal não fosse um dia, se as mães fossem Marias e se os pais fossem
Josés...".
Certas
versões, entretanto, asseguram que num determinado ano e numa determinada
oportunidade algo diferente e inusitado aconteceu. Antes que esse momento
culminante tivesse lugar, adentrou a Igreja em verdadeira disparada um cego
incrédulo que à porta se postava, e ao final da Celebração não se constrangia
em recolher as moedas que lhe eram deixadas como esmola. "Parem, parem
- gritava ele - suspendam as homenagens.
Há lá fora um Jesus que não conseguiu entrar, mas que se esforça e insiste em
fazê-lo". Orientados pelo Celebrante, dois dos Ministros presentes se
dirigiram rapidamente à porta de entrada e se depararam com o tal Jesus, que
implorava por ajuda e insistia em fazer parte do grupo do(a)s
recém-nascidos(as) Jesuses do Presépio. Mas havia um problema: não se tratava
de um Jesus criança, mas sim de um Jesus ancião, por sinal de idade bem
avançada. Consultado, o Celebrante, que àquela altura já ouvira não poucos
cochichos desfavoráveis pelo fato de justo a Igreja não ter se adiantado em
facilitar o acesso de tais pessoas ao seu recinto, a ordem foi expressa e taxativa:
"Jesus criança ou não, tragam-no imediatamente à minha presença".
A
cena que se seguiu foi hilariante, provocadora de risos e comentários. Um misto
de papai Noel, Pai de Santo, Orixá ou fosse lá o que fosse, foi introduzido e
desfilou triunfalmente por todo o corredor principal da Igreja, com uma alegria
e um sorriso tão marotos e contagiantes, que mais parecida uma criança ou um
adulto feito menino. Tudo isso, "escoltado" por dois seguranças,
guarda-costas ou algo equivalente. Só faltou que os sinos repicassem naquela
hora para que o ritual tivesse sido completo.
"Abram alas, vamos, abram alas" -
insistiu o Celebrante, buscando recobrar certa autoridade que por alguns
instantes imaginara haver perdido. "Deem passagem ao Jesus menino mais
velho que já tivemos e que acaba de chegar. Vejam quanto brilho e quanta
alegria em seus olhos!". Enquanto
ouvia tais palavras, pensava consigo mesmo Jesus ancião: "mal sabe ele o
que ainda está por vir e o que, todavia, me está reservado. Jerusalém que o
diga!". Apenas pensou... Mas era
tanto riso e tanta alegria que não chegou a pronunciar palavra.
E
lá foi ele sendo conduzido em desfile aberto pelo corredor principal, até
chegar e ser colocado em meio aos(às) demais Jesuses. Os olhares de todos,
incluindo o do Celebrante, pousaram então sobre ele, acompanhados de um
silêncio profundo e respeitoso. Menos o olhar de uma jesus menina, olhar
tristonho, que insistia em permanecer voltado para baixo como se parecesse
ignorá-lo e ao que estava se passando. Jesus ancião se aproximou e depositou
com delicadeza suas mãos sobre os ombros da pequenita, enquanto seu rosto e de
resto todo o seu corpo como que se transfiguravam e davam lugar a um semblante
condoído e um olhar cheio de compaixão.
"Pode me ver?", perguntou ele. "Não, Senhor, não
posso!", respondeu quase monossilabicamente a menina. "Então como
sabe que sou um senhor?".
"Não sei, Senhor!".
"Há quanto tempo você não vê?". "Desde sempre,
Senhor!". "Que tal fazermos um trato, eu lhe dou meus olhos por um
tempo e você passa para essa 'bendita' cadeira de rodas pelo mesmo espaço de
tempo; Já estou cansado dela". "Como assim, Senhor, como vamos fazer
isso? Sei que se chama Jesus, mas pelo que sei não pode fazer milagres como o
Verdadeiro. Se pudesse, com certeza já teria se livrado de sua cadeira".
Nenhum
dos presentes parecia entender bem o que estava acontecendo, mas ninguém ousava
repreender Jesus ancião, questiona-lo, e menos ainda exigir que se calasse. Até
mesmo o Celebrante parecia haver se esquecido de seu lugar e de sua função na
Celebração. Surpreso, permaneceu atento e num silêncio obsequioso, possibilitando
assim que aquele estranho, mas comovente diálogo tivesse continuidade.
"Todos
podemos operar milagres", continuou Jesus ancião, "não é preciso ser
um Deus para isso. Basta que a gente 'se pareça com Jesus de Nazaré'. Não é isso que diz a canção que vocês repetem
a cada ano no Natal?". "Sim,
Senhor, e eu creio nisso, creio no que diz a canção!". "0ra, ora - retrucou Jesus ancião - mas
se você crê que se parecermos com Jesus de Nazaré, tudo pode ser diferente e
melhor, não é melhor poder ver que continuar sem enxergar?". "Sim,
Senhor, e foi com isso que sempre sonhei, com Jesus me curando e me deixando
ver, e continuaria desejando mesmo que para isso tivesse que viver a vida
inteira sentada sobre uma cadeira de rodas!". "Um milagre de cada vez, replicou Jesus
ancião, um milagre de cada vez. Quem sabe com o tempo você não consiga um outro
milagre e então vai poder ver e andar sem a ajuda de ninguém, de quem quer que
seja. E então, o que me diz, aceita minha proposta?". "Seria maravilhoso, Senhor, mas falando
sério, acha mesmo que se parece tanto com Jesus de Nazaré, que poderá operar
milagres e tornar o mundo e a mim melhores, como disse?". "Acho, não, tenho certeza. Mas isso só é
possível àquele que crê. E você já me deu provas de sua fé. Portanto, que tal
rezarmos juntos?".
Nesse
momento uma brisa amena e agradável tomou conta do lugar em que se encontravam.
Uma espécie de pássaro ou pomba, cuja presença até aquele momento ninguém havia
notado, voava de um lado para outro por sobre os presentes. Como que
impulsionados por uma força estranha todos dobraram simultaneamente os joelhos,
passando a ouvir vozes e cantos de onde e de quem não se sabia bem dizer. Luzes
em forma de raios estonteantes penetravam de todos os lados, lugares e frestas.
De repente Jesus ancião se ergueu, elevou bem alto aos céus suas mãos, e se pôs
a pronunciar solenemente a seguinte oração:
"Pai, Senhor do céu e da terra, Eu sei que Tu me vês, Eu sei que Tu
me ouves! Sei também que tudo Te é possível. Tu sabes que que Eu Te amo, Pai,
como também sabes, pois conheces, o desejo desta tua filha e o amor que ela tem
por Ti. Por isso Eu Te suplico: que venha sobre ela a Tua graça, e faças descer
sobre ela o Teu Espírito! Espírito de poder e força! Que o Teu poder e a Tua
glória se manifestem, Pai: QUE ESTA TUA
FILHA POSSA VER! Seja feita a Tua
vontade, assim na terra como no céu!".
De
nada mais se ouviu falar ou contar do que ali aconteceu. De forma estranha e
curiosa, como se houvessem combinado entre si por alguma razão, todos, inclusive
aquela criança, decidiram guardar para si em seus corações o que ali havia se
passado e o que haviam presenciado. E quando ainda assim alguém insistia em
perguntar sobre Jesus, o ancião da cadeira de rodas, ou saber notícias de
Jesus, a menina cega que passara a ver, ninguém se arriscava a dizer algo. Era
como se pairasse sobre todos uma nítida e vívida recordação de um Natal tão
maravilhoso, e de fatos e coisas tão grandiosos, que o inefável e o
indescritível pareciam haver se apoderado de todos. Ninguém, absolutamente
ninguém, ousava sequer afirmar terem tais fatos e tais acontecimentos realmente
se passado.
O
que, todavia, estava ali, bem aos olhos de todos, e ao alcance de quem
desejasse ver e constatar, é que uma menina antes cega passara a ver, um
pedinte incrédulo a acreditar, e uma cidade inteira passara a ver, comemorar e
celebrar o Natal de uma maneira como em nenhuma outra antes se fizera. Se para
Jesus menina outros milagres teriam ocorrido, ou estariam por acontecer, só ela
e mais ninguém saberia dizer. Também isso e outras coisas ela decidira guardar
apenas para si, em seu coração. De Jesus ancião os relatos não poderiam ser
mais controvertidos. Uns afirmam que Ele sequer existiu; outros atestam que
Ele, numa espécie de ascensão fantasmagórica, simplesmente havia subido ao céu
em retorno de onde viera; outros ainda, que Ele continua mais vivo do que
nunca, podendo ser facilmente encontrado ora em "meio" ora
"em" cada um de nós. O certo é que ano após ano, única e
exclusivamente no dia de Natal, essa história - ou seria "estória",
um simples conto de Natal? - é contada e recontada. Não só esta, mas também
inúmeras outras, "histórias" estranhas de papais e mamães noéis,
duendes, florestas encantadas e tantos outros personagens, reais ou não, que
pelo seu poder mágico e encantador continuam a despertar o melhor de cada um de
nós.
L.S.M., Natal de 2021
(*) Lindolivo
Soares Moura
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