quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O REINO DE DEUS E O PODER POLÍTICO (I)

 

O Reino de Deus e o poder político(I)

Por Maurício Abdalla

 

Fé e política à luz da experiência atual do poder

 

1. Introdução

Uma das principais características da Igreja Católica no Brasil, nas últimas três décadas, foi a reflexão sobre a política e o incentivo à participação ativa dos cristãos em movimentos e instituições que tivessem como foco a ação transformadora da sociedade, tendo como via a política.

Essa linha de atuação tem como fundamento as Sagradas Escrituras e os documentos da Igreja — como os do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, reforçados por documentos locais da CNBB. Esse esforço de concretização da fé na política traduziu-se em uma participação decisiva dos cristãos nos movimentos sociais e em partidos políticos. Não se pode, por inúmeras razões, vincular a militância católica a apenas um partido. Apesar disso, é um fato histórico inegável que parte expressiva da vinculação partidária dos católicos engajados politicamente no Brasil convergiu para o Partido dos Trabalhadores (PT). A participação dos cristãos na formação do PT é reconhecida como uma das forças decisivas no caráter e no desenvolvimento desse partido.

Durante as décadas em que a Igreja refletiu sobre a política, criou-se, de um lado, a indignação com os governos das elites que se sucediam no poder e, de outro, a esperança de que o processo histórico possibilitaria a conquista do poder pelas forças populares, com a consequente transformação da sociedade. Concretamente, isso significava forte presença profética de denúncia contra as políticas antipopulares e excludentes dos governos, que mantinham uma política econômica voltada para os interesses das elites dominantes nacionais e internacionais. Pelo lado da esperança, acreditava-se ser possível conquistar espaços nos parlamentos e eleger governos locais que agiriam em favor do povo, até conquistar o governo da República, momento em que tudo seria transformado e em que as esperanças seriam concretizadas em uma administração democrática e popular.

Essa esperança estimulou uma participação tão intensa na política eleitoral, que houve uma (equivocada, mas real) identificação de política com eleição. Cada vez mais, o trabalho menos imediato com os movimentos sociais foi sendo substituído por uma participação mais pragmática no processo eleitoral, seja se candidatando, envolvendo-se em campanhas, assumindo mandatos sucessivas vezes, seja compondo equipes de governo e assessoria parlamentar. Essa identificação, embora não sistematizada no nível teórico ou discursivo, acabou caracterizando a prática e direcionando os debates sobre a relação entre fé e política. Claro que existiam exceções, mas não tantas que pudessem impedir a predominância dessa tendência.

A identificação de política com eleição, em muitos locais, fez a reflexão sobre fé e política ficar restrita aos anos eleitorais (sintomaticamente chamados de “anos políticos”). Mas esse fenômeno não ocorreu exclusivamente na Igreja. A própria dinâmica dos movimentos sociais foi atropelada pela ânsia da conquista do poder do Estado, tendo como esperança uma transformação mais rápida e efetiva. Criou-se até uma medição de tempo peculiar, embora estranha à história dos movimentos sociais: as ações eram pautadas pela sua localização temporal “pré” ou “pós” eleitoral. Praticamente nenhuma ação era planejada nos movi­mentos sociais e em algumas pastorais nos meses que antecediam ou sucediam imediatamente as eleições.

Pelo fato de a maioria dos militantes dos movimentos sociais (incluindo os oriundos da Igreja) ter também uma militância partidária, era difícil não misturar a agenda dos movimentos com a agenda eleitoral. Com isso, sacrificou-se o trabalho de formação de novos militantes e abandonou-se a reflexão mais ampla sobre a política em suas dimensões teórica e prática mais abrangentes. Mesmo entre a militância, a fundamentação teológica para a ação política restringiu-se (quando muito) às elaborações iniciais da Teologia da Libertação, ainda que novas reflexões tenham sido produzidas no interior dessa teologia.

Encontramo-nos, contudo, em uma situação que desafia a nossa reflexão. O esforço de décadas levou ao poder o PT e seu principal representante. Pode-se tergiversar à vontade para não trazer uma reflexão que pareça partidária para os assuntos da Igreja, mas a eleição de Lula foi também a esperança dos milhões de cristãos engajados na política, desde bispos até leigos. Não se trata de concordar ou não com isso. O fato histórico (como fato, simplesmente) está além de nossas opções ideológicas.

No entanto, nos momentos quase finais do go­verno, o que mudou no País? Quais transformações foram produzidas na sociedade que pudessem justificar a esperança de décadas e a concentração dos esforços de milhões de pessoas? Como fica o papel profético de denúncia diante de um governo com o qual a própria Igreja, indiretamente, teve responsabilidade? Que tipo de análise de­vemos fazer do País na atualidade, principalmen­te à luz da fé cristã?

Embora sejam questões delicadas, não podemos nos furtar a debatê-las. É o que pretendo fazer neste artigo, esclarecendo, contudo, que não pretendo realizar aqui uma avaliação do governo Lula. O que pretendo analisar é: diante dos acontecimentos históricos, sobre o que devemos refletir, como cristãos, no que diz respeito à dimensão política de nossa fé e à conquista do poder? Qual deve ser a perspectiva do cristão (com base na prática de Jesus) ante o poder e a transformação da sociedade?

Após breve análise sobre o que significou o governo Lula, necessária como apoio metodológico (momento do “ver”), passarei a refletir sobre a relação de Jesus com o poder (“julgar”) e procurarei apontar alguns desafios que, a meu ver, precisamos incluir em nossa agenda de atividades (“agir”).

2. Impacto do governo Lula

Sem me aprofundar nos fatos e em suas justificativas, partirei da seguinte constatação: o governo Lula não representou a mudança desejada nas relações de poder no Brasil nem realizou as transformações necessárias na economia que dessem aos milhões de brasileiros empobrecidos uma melhor condição de vida e dignidade.

A reforma agrária, reivindicação histórica da sociedade e objeto de apelo até do papa João Paulo II, não foi realizada e nem se avançou na perspectiva de sua realização. Os índices de pobreza e desemprego não sofreram alterações além das oscilações normais resultantes da dinâmica da própria economia. A fome, a despeito da prioridade que lhe foi dada, continuou matando e submetendo ao sofrimento enorme contingente de pessoas (lembrar, por exemplo, o caso dos indígenas no MS, mortos por desnutrição).

A dívida interna continuou a crescer, bloqueando a capacidade de investimentos sociais do governo e forçando-o a cortes drásticos no orçamento para garantir a remuneração de títulos de curto prazo. A política de juros altos, além de promover o crescimento da dívida pública, impediu o crescimento da economia nos níveis esperados, dificultou o crédito aos pequenos e médios empreendedores e favoreceu aos já bastante satisfeitos com a economia nos oito anos de mandato de Fernando Henrique.

As oligarquias de caráter coronelista não só continuaram ocupando postos de poder, como também entraram no apoio e sustentação do governo. Políticos marcados pela raposice tornaram-se governistas de ocasião. Para manter a equivocadamente chamada “governabilidade” (eufemismo para o pragmatismo sem princípios), o governo não evitou fazer acordos fisiológicos, cujo fim a sociedade tanto esperava. Como resultado, voltaram à cena as denúncias de corrupção e irregularidades na gestão da coisa pública, que todos esperavam banidas do governo federal.

Em resumo, é difícil ver alguma diferença substancial entre o atual governo e os governos anteriores que justifique a esperança nele depositada (excetuando-se a política externa, única e marcante diferença). Não estou me referindo à tradicional esperança que o povo sempre teve em todo novo governo, mas à esperança fundamentada, de caráter quase místico, dos militantes (cristãos ou não) e da sociedade civil organizada.

Diante desse quadro (bastante resumido, pois não é objetivo deste artigo fazer análise de conjuntura), vejo desenharem-se algumas tendências negativas de reação que, para efeitos de análise, procurei categorizar em quatro tipos: assimilaçãodesilusãosuspeita de conspiração e perplexidade.

Os assimilados são aqueles que simplesmente assumiram a defesa incondicional do governo e passaram a defender medidas que, quando na oposição, atacavam com todas as forças. Passaram a justificar as mesmas coisas que condenavam nos governos anteriores. É como se a disputa pelo poder fosse apenas uma troca de comando, sem necessidade de mudanças estruturais na política e na economia. Ou como se o Estado tivesse uma vida própria, imutável, e a disputa política fosse apenas para ver quem fica nos cargos de poder — locais a partir dos quais qualquer atitude será justificada. Tudo é culpa da “máquina emperrada” — mesmo quando as medidas são opções de governo e não “da máquina”. Os assimilados se subordinaram à lógica dominante e passaram a reproduzir o “pensamento único” da economia. Entraram na dinâmica tradicional do poder e não representam mais perspectivas de mudanças sociais.

Os desiludidos são os que depositaram sua esperança em mais um presidente e foram desapontados. Agora acreditam que ninguém presta, que todos são iguais e não adianta agir na “política” (leia-se “eleições”), pois as mudanças não são possíveis. Esses, não acreditando mais na política eleitoral, acabam desacreditando também qualquer mudança estrutural da sociedade. Podem apresentar soluções simplistas, como “cada um faça a sua parte” para amenizar pequenos problemas sociais ou então se entregar ao fatalismo e deixar de pensar na possibilidade de transformações. Representam grande perda de possíveis agentes de mudança.

Os que suspeitam de conspiração acreditam ter havido alguma traição por parte daqueles que assumiram o poder. Apregoam que os principais membros do governo “se venderam” ao FMI, aos banqueiros etc. Esses não desacreditam a via eleitoral de chegada ao poder, tanto que, ou propõem outro partido, ou depositam suas esperanças em pessoas “mais confiáveis”, que não se deixariam corromper pelo poder nem trairiam o ideal. Portanto, o problema para eles são apenas as pessoas — que não suportaram a sedução do poder — e não o processo de chegada ao poder. Mantêm a mesma forma de ação, situando-se na oposição e esperando nova oportunidade de conquistar o Estado pela via eleitoral.

Os perplexos são todos aqueles que tentam compreender o que aconteceu e não conseguem uma explicação adequada, tendendo, muitas vezes, a transitar entre as posições acima, mas sem muita certeza de nada. Nesses, constatamos a dificuldade em assumir um posicionamento decisivo ante o governo: umas vezes se entregam ao silêncio, outras tentam pinçar elementos positivos do governo para não admitir a frustração ou ficam esperando o momento de a mudança acontecer.

Mas há também uma tendência positiva, representada por aqueles que buscam construir novo sentido para a prática política sem negar as contradições da realidade, cair na desilusão ou repetir as velhas crenças. Neste artigo, pretendo contribuir com esse tipo de reflexão, dirigindo-me especificamente aos cristãos que não têm dúvidas sobre a necessária vinculação entre sua fé e a práti­ca política.

3. A política de Jesus

Não é possível uma comparação entre o exercício da política no tempo de Jesus e no atual. A república e a democracia são experiências gregas, e não judaicas. No entanto, as reflexões sobre a prática e a mensagem de Jesus com relação ao poder de sua época podem nos trazer muitas informações para avaliarmos a nossa prática de hoje.

A Palestina no tempo da ação pública de Jesus tinha um esquema de governo vinculado à soberania do império romano. A Galileia estava sob a responsabilidade de Herodes Antipas, rei local dependente do império e filho de Herodes, o Grande. A Samaria e a Judeia estavam sob poder de um procurador romano (Pilatos, no tempo da prisão de Jesus), mas a Judeia era administrada em seu cotidiano pelo sumo sacerdote e pelo conselho dos judeus (o Sinédrio).

Tanto o sumo sacerdote quanto os reis dependentes da família de Herodes eram indicações de Roma. Não havia a menor possibilidade de ascensão ao poder por meio de disputas locais. A única possibilidade de tomá-lo era por meio de guerras contra o poder imperial, como de fato veio a ocorrer em 66-70 d.C. e em 132-135 d.C., resultando na vitória romana nos dois casos. De outra forma, só restava a submissão, o isolamento ou a esperança em um messias apocalíptico que interviria na história com base na força divina. Não havia a mínima possibilidade de participação do povo na constituição do poder, como acontece nas modernas democracias.

Sabemos que Jesus não pregava a submissão. Os Evangelhos mostram-no chamando Herodes de raposa e não se submetendo às suas intimidações (cf. Lc 13,31-33); denunciando a dominação daqueles que davam sustentação ao poder local (saduceus, fariseus e doutores da lei, muitos dos quais membros do Sinédrio; cf. Mt 23,13-36; Mc 12,38-40); protagonizando uma invasão ao Templo, sede do poder judaico, e polemizando com os chefes dos sacerdotes (cf. Mt 21,12-17; Mc 11,15-19; Lc 19,45-48; Jo 2,14-22).

Jesus também não pregou o isolamento, atitude dos essênios, pois tornou público o seu ministério e conduziu uma multidão de galileus a Jerusalém. Além disso, não considerou a proposta de Pedro — de se isolarem na montanha — no episódio da transfiguração (cf. Mt 17,1-8; Mc 9,2-8) e orou ao Pai dizendo que não queria “tirar” seus discípulos do mundo, e sim “enviá-los” ao mundo (cf. Jo 17,15-19).

Ele tampouco alimentava uma visão apocalíptica messiânica, e isso é manifestado na sua recusa de assumir publicamente o título de Messias (cf. Mt 16,20) ou na frase dita por ocasião de sua prisão: “Ou você pensa que eu não poderia pedir socorro ao meu Pai? Ele me mandaria logo mais de doze legiões de anjos” (Mt 26,53). Suas parábolas sobre o Reino de Deus indicam um acontecimento histórico e processual, e não uma irrupção a partir da intervenção divina direta. O Reino é um acontecimento ao mesmo tempo presente e futuro, e não um evento apocalíptico explosivo (sobre isso ver Horsley, 1995, pp. 89-122; e Flusser, 2002, pp.79-86).

Mas, se em relação ao poder Jesus recusava a submissão aos que o detinham, a fuga à sua influência por meio do isolamento e a sua derrubada por intervenção divina direta, o que dizer da tomada de poder? Estaria Jesus preocupado com a tomada do poder político ou sua pregação referia-se a um plano totalmente extramundano? Se concluirmos que a tomada do poder político é parte integrante da pregação de Jesus, devemos nos perguntar ainda: de que forma isso deveria acontecer?

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-pastorais/o-reino-de-deus-e-o-poder-politico/

(CONTINUARÁ NO PRÓXIMO DOMINGO...)

 

 

 

 

 

 

 

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