O Reino de Deus e o poder político(I)
Por Maurício Abdalla
Fé e política à luz da experiência atual do poder
1. Introdução
Uma das
principais características da Igreja Católica no Brasil, nas últimas três
décadas, foi a reflexão sobre a política e o incentivo à participação ativa dos
cristãos em movimentos e instituições que tivessem como foco a ação
transformadora da sociedade, tendo como via a política.
Essa
linha de atuação tem como fundamento as Sagradas Escrituras e os documentos da
Igreja — como os do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais de
Medellín e Puebla, reforçados por documentos locais da CNBB. Esse esforço de
concretização da fé na política traduziu-se em uma participação decisiva dos
cristãos nos movimentos sociais e em partidos políticos. Não se pode, por
inúmeras razões, vincular a militância católica a apenas um partido. Apesar
disso, é um fato histórico inegável que parte expressiva da vinculação
partidária dos católicos engajados politicamente no Brasil convergiu para o
Partido dos Trabalhadores (PT). A participação dos cristãos na formação do PT é
reconhecida como uma das forças decisivas no caráter e no desenvolvimento desse
partido.
Durante
as décadas em que a Igreja refletiu sobre a política, criou-se, de um lado, a
indignação com os governos das elites que se sucediam no poder e, de outro, a
esperança de que o processo histórico possibilitaria a conquista do poder pelas
forças populares, com a consequente transformação da sociedade. Concretamente,
isso significava forte presença profética de denúncia contra as políticas
antipopulares e excludentes dos governos, que mantinham uma política econômica
voltada para os interesses das elites dominantes nacionais e internacionais.
Pelo lado da esperança, acreditava-se ser possível conquistar espaços nos
parlamentos e eleger governos locais que agiriam em favor do povo, até
conquistar o governo da República, momento em que tudo seria transformado e em
que as esperanças seriam concretizadas em uma administração democrática e
popular.
Essa esperança estimulou uma participação tão
intensa na política eleitoral, que houve uma (equivocada, mas real)
identificação de política com eleição. Cada vez mais, o
trabalho menos imediato com os movimentos sociais foi sendo substituído por uma
participação mais pragmática no processo eleitoral, seja se candidatando,
envolvendo-se em campanhas, assumindo mandatos sucessivas vezes, seja compondo
equipes de governo e assessoria parlamentar. Essa identificação, embora não
sistematizada no nível teórico ou discursivo, acabou caracterizando a prática e
direcionando os debates sobre a relação entre fé e política. Claro que existiam
exceções, mas não tantas que pudessem impedir a predominância dessa tendência.
A
identificação de política com eleição, em muitos locais, fez a reflexão sobre
fé e política ficar restrita aos anos eleitorais (sintomaticamente chamados de
“anos políticos”). Mas esse fenômeno não ocorreu exclusivamente na Igreja. A
própria dinâmica dos movimentos sociais foi atropelada pela ânsia da conquista
do poder do Estado, tendo como esperança uma transformação mais rápida e
efetiva. Criou-se até uma medição de tempo peculiar, embora estranha à história
dos movimentos sociais: as ações eram pautadas pela sua localização temporal
“pré” ou “pós” eleitoral. Praticamente nenhuma ação era planejada nos movimentos
sociais e em algumas pastorais nos meses que antecediam ou sucediam
imediatamente as eleições.
Pelo fato
de a maioria dos militantes dos movimentos sociais (incluindo os oriundos da
Igreja) ter também uma militância partidária, era difícil não misturar a agenda
dos movimentos com a agenda eleitoral. Com isso, sacrificou-se o trabalho de
formação de novos militantes e abandonou-se a reflexão mais ampla sobre a
política em suas dimensões teórica e prática mais abrangentes. Mesmo entre a
militância, a fundamentação teológica para a ação política restringiu-se
(quando muito) às elaborações iniciais da Teologia da Libertação, ainda que
novas reflexões tenham sido produzidas no interior dessa teologia.
Encontramo-nos,
contudo, em uma situação que desafia a nossa reflexão. O esforço de décadas
levou ao poder o PT e seu principal representante. Pode-se tergiversar à
vontade para não trazer uma reflexão que pareça partidária para os assuntos da
Igreja, mas a eleição de Lula foi também a esperança dos milhões de cristãos
engajados na política, desde bispos até leigos. Não se trata de concordar ou
não com isso. O fato histórico (como fato, simplesmente) está além de nossas
opções ideológicas.
No
entanto, nos momentos quase finais do governo, o que mudou no País? Quais
transformações foram produzidas na sociedade que pudessem justificar a
esperança de décadas e a concentração dos esforços de milhões de pessoas? Como
fica o papel profético de denúncia diante de um governo com o qual a própria
Igreja, indiretamente, teve responsabilidade? Que tipo de análise devemos
fazer do País na atualidade, principalmente à luz da fé cristã?
Embora
sejam questões delicadas, não podemos nos furtar a debatê-las. É o que pretendo
fazer neste artigo, esclarecendo, contudo, que não pretendo realizar aqui uma
avaliação do governo Lula. O que pretendo analisar é: diante dos acontecimentos
históricos, sobre o que devemos refletir, como cristãos, no que diz respeito à
dimensão política de nossa fé e à conquista do poder? Qual deve ser a
perspectiva do cristão (com base na prática de Jesus) ante o poder e a
transformação da sociedade?
Após
breve análise sobre o que significou o governo Lula, necessária como apoio
metodológico (momento do “ver”), passarei a refletir sobre a relação de Jesus
com o poder (“julgar”) e procurarei apontar alguns desafios que, a meu ver,
precisamos incluir em nossa agenda de atividades (“agir”).
2. Impacto do governo Lula
Sem me
aprofundar nos fatos e em suas justificativas, partirei da seguinte
constatação: o governo Lula não representou a mudança desejada nas relações de
poder no Brasil nem realizou as transformações necessárias na economia que
dessem aos milhões de brasileiros empobrecidos uma melhor condição de vida e
dignidade.
A reforma
agrária, reivindicação histórica da sociedade e objeto de apelo até do papa
João Paulo II, não foi realizada e nem se avançou na perspectiva de sua
realização. Os índices de pobreza e desemprego não sofreram alterações além das
oscilações normais resultantes da dinâmica da própria economia. A fome, a
despeito da prioridade que lhe foi dada, continuou matando e submetendo ao
sofrimento enorme contingente de pessoas (lembrar, por exemplo, o caso dos
indígenas no MS, mortos por desnutrição).
A dívida
interna continuou a crescer, bloqueando a capacidade de investimentos sociais
do governo e forçando-o a cortes drásticos no orçamento para garantir a
remuneração de títulos de curto prazo. A política de juros altos, além de
promover o crescimento da dívida pública, impediu o crescimento da economia nos
níveis esperados, dificultou o crédito aos pequenos e médios empreendedores e
favoreceu aos já bastante satisfeitos com a economia nos oito anos de mandato
de Fernando Henrique.
As
oligarquias de caráter coronelista não só continuaram ocupando postos de poder,
como também entraram no apoio e sustentação do governo. Políticos marcados pela
raposice tornaram-se governistas de ocasião. Para manter a equivocadamente
chamada “governabilidade” (eufemismo para o pragmatismo sem princípios), o
governo não evitou fazer acordos fisiológicos, cujo fim a sociedade tanto
esperava. Como resultado, voltaram à cena as denúncias de corrupção e
irregularidades na gestão da coisa pública, que todos esperavam banidas do
governo federal.
Em
resumo, é difícil ver alguma diferença substancial entre o atual governo e os
governos anteriores que justifique a esperança nele depositada (excetuando-se a
política externa, única e marcante diferença). Não estou me referindo à
tradicional esperança que o povo sempre teve em todo novo governo, mas à
esperança fundamentada, de caráter quase místico, dos militantes (cristãos ou
não) e da sociedade civil organizada.
Diante desse quadro (bastante resumido, pois não é
objetivo deste artigo fazer análise de conjuntura), vejo desenharem-se algumas
tendências negativas de reação que, para efeitos de análise, procurei
categorizar em quatro tipos: assimilação, desilusão, suspeita de conspiração e perplexidade.
Os assimilados são
aqueles que simplesmente assumiram a defesa incondicional do governo e passaram
a defender medidas que, quando na oposição, atacavam com todas as forças.
Passaram a justificar as mesmas coisas que condenavam nos governos anteriores.
É como se a disputa pelo poder fosse apenas uma troca de comando, sem
necessidade de mudanças estruturais na política e na economia. Ou como se o
Estado tivesse uma vida própria, imutável, e a disputa política fosse apenas
para ver quem fica nos cargos de poder — locais a partir dos quais qualquer
atitude será justificada. Tudo é culpa da “máquina emperrada” — mesmo quando as
medidas são opções de governo e não “da máquina”. Os assimilados se
subordinaram à lógica dominante e passaram a reproduzir o “pensamento único” da
economia. Entraram na dinâmica tradicional do poder e não representam mais
perspectivas de mudanças sociais.
Os desiludidos são
os que depositaram sua esperança em mais um presidente e foram desapontados.
Agora acreditam que ninguém presta, que todos são iguais e não adianta agir na
“política” (leia-se “eleições”), pois as mudanças não são possíveis. Esses, não
acreditando mais na política eleitoral, acabam desacreditando também qualquer
mudança estrutural da sociedade. Podem apresentar soluções simplistas, como
“cada um faça a sua parte” para amenizar pequenos problemas sociais ou então se
entregar ao fatalismo e deixar de pensar na possibilidade de transformações.
Representam grande perda de possíveis agentes de mudança.
Os que suspeitam de conspiração acreditam
ter havido alguma traição por parte daqueles que assumiram o poder. Apregoam
que os principais membros do governo “se venderam” ao FMI, aos banqueiros etc.
Esses não desacreditam a via eleitoral de chegada ao poder, tanto que, ou
propõem outro partido, ou depositam suas esperanças em pessoas “mais
confiáveis”, que não se deixariam corromper pelo poder nem trairiam o ideal.
Portanto, o problema para eles são apenas as pessoas — que
não suportaram a sedução do poder — e não o processo de
chegada ao poder. Mantêm a mesma forma de ação, situando-se na oposição e
esperando nova oportunidade de conquistar o Estado pela via eleitoral.
Os perplexos são
todos aqueles que tentam compreender o que aconteceu e não conseguem uma
explicação adequada, tendendo, muitas vezes, a transitar entre as posições
acima, mas sem muita certeza de nada. Nesses, constatamos a dificuldade em
assumir um posicionamento decisivo ante o governo: umas vezes se entregam ao
silêncio, outras tentam pinçar elementos positivos do governo para não admitir
a frustração ou ficam esperando o momento de a mudança acontecer.
Mas há
também uma tendência positiva, representada por aqueles que buscam construir
novo sentido para a prática política sem negar as contradições da realidade,
cair na desilusão ou repetir as velhas crenças. Neste artigo, pretendo
contribuir com esse tipo de reflexão, dirigindo-me especificamente aos cristãos
que não têm dúvidas sobre a necessária vinculação entre sua fé e a prática
política.
3. A política de Jesus
Não é
possível uma comparação entre o exercício da política no tempo de Jesus e no
atual. A república e a democracia são experiências gregas, e não judaicas. No
entanto, as reflexões sobre a prática e a mensagem de Jesus com relação ao
poder de sua época podem nos trazer muitas informações para avaliarmos a nossa
prática de hoje.
A
Palestina no tempo da ação pública de Jesus tinha um esquema de governo
vinculado à soberania do império romano. A Galileia estava sob a responsabilidade
de Herodes Antipas, rei local dependente do império e filho de Herodes, o
Grande. A Samaria e a Judeia estavam sob poder de um procurador romano
(Pilatos, no tempo da prisão de Jesus), mas a Judeia era administrada em seu
cotidiano pelo sumo sacerdote e pelo conselho dos judeus (o Sinédrio).
Tanto o
sumo sacerdote quanto os reis dependentes da família de Herodes eram indicações
de Roma. Não havia a menor possibilidade de ascensão ao poder por meio de
disputas locais. A única possibilidade de tomá-lo era por meio de guerras
contra o poder imperial, como de fato veio a ocorrer em 66-70 d.C. e em 132-135
d.C., resultando na vitória romana nos dois casos. De outra forma, só restava a
submissão, o isolamento ou a esperança em um messias apocalíptico que interviria
na história com base na força divina. Não havia a mínima possibilidade de
participação do povo na constituição do poder, como acontece nas modernas
democracias.
Sabemos
que Jesus não pregava a submissão. Os Evangelhos mostram-no chamando Herodes de
raposa e não se submetendo às suas intimidações (cf. Lc 13,31-33); denunciando
a dominação daqueles que davam sustentação ao poder local (saduceus, fariseus e
doutores da lei, muitos dos quais membros do Sinédrio; cf. Mt 23,13-36; Mc
12,38-40); protagonizando uma invasão ao Templo, sede do poder judaico, e
polemizando com os chefes dos sacerdotes (cf. Mt 21,12-17; Mc 11,15-19; Lc
19,45-48; Jo 2,14-22).
Jesus
também não pregou o isolamento, atitude dos essênios, pois tornou público o seu
ministério e conduziu uma multidão de galileus a Jerusalém. Além disso, não
considerou a proposta de Pedro — de se isolarem na montanha — no episódio da
transfiguração (cf. Mt 17,1-8; Mc 9,2-8) e orou ao Pai dizendo que não queria
“tirar” seus discípulos do mundo, e sim “enviá-los” ao mundo (cf. Jo 17,15-19).
Ele
tampouco alimentava uma visão apocalíptica messiânica, e isso é manifestado na
sua recusa de assumir publicamente o título de Messias (cf. Mt 16,20) ou na
frase dita por ocasião de sua prisão: “Ou você pensa que eu não poderia pedir
socorro ao meu Pai? Ele me mandaria logo mais de doze legiões de anjos” (Mt
26,53). Suas parábolas sobre o Reino de Deus indicam um acontecimento histórico
e processual, e não uma irrupção a partir da intervenção divina direta. O Reino
é um acontecimento ao mesmo tempo presente e futuro, e não um evento
apocalíptico explosivo (sobre isso ver Horsley, 1995, pp. 89-122; e Flusser,
2002, pp.79-86).
Mas, se
em relação ao poder Jesus recusava a submissão aos que o detinham, a fuga à sua
influência por meio do isolamento e a sua derrubada por intervenção divina
direta, o que dizer da tomada de poder? Estaria Jesus preocupado com a tomada
do poder político ou sua pregação referia-se a um plano totalmente
extramundano? Se concluirmos que a tomada do poder político é parte integrante
da pregação de Jesus, devemos nos perguntar ainda: de que forma isso deveria
acontecer?
https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-pastorais/o-reino-de-deus-e-o-poder-politico/
(CONTINUARÁ
NO PRÓXIMO DOMINGO...)
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