TERCEIRA
IDADE OU 'MAIORIDADE': RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE 'VELHICE'" (Texto
Integral)
Por Lindolivo Soares Moura(*)
"Para a sociedade a velhice aparece como uma espécie
de segredo vergonhoso, do qual é indecente falar". (Simone de
Beauvoir).
De acordo com o filósofo francês René
Descartes, "nem Deus pode fazer com que aquilo que aconteceu não o tenha
sido". Nessa mesma esteira de pensamento o escravo liberto grego Epicteto
afirmava que não são as coisas em si que nos causam esta ou aquela impressão, e
sim a visão ou percepção que delas temos. Mais recentemente coube a Sheakspeare
a renovação desse mesmo princípio, ao afirmar que "as coisas em si mesmas
não são boas nem más, é o pensamento que as torna deste ou daquele jeito".
Pode-se, claro, afirmar que tal forma de ver o mundo e de interpretar a
realidade não passe de simples racionalização, e em última instância de uma
espécie mais refinada de negação. Talvez seja. Ainda assim, "in dubio, pro
reo". O fato é que não faz sentido negar ao "animal humano" - um
ser não apenas "senciente" mas também "sapiente", e mais que "sapiente",
"simbólico" - o direito a lançar mão de recursos como simbolização e
atribuição de sentidos e significados, tanto no manejo paras com os fatos e
acontecimentos que permeiam a realidade e a história coletivas, quanto seu
próprio "tao" e sua trajetória pessoais. Uma recusa consciente em
fazer uso de tais recursos equivaleria a uma opção declarada por manter-se em
condição de paridade junto a todos os demais seres vivos irracionais que
habitam o planeta.
Até onde se sabe, e até onde as evidências empíricas atestam o
fato, atribuir sentidos e significados, simbolizar e transcender, continuam
sendo recursos e alternativas exclusiva e especificamente humanos. São eles,
mais que nenhum outro, que nos permitem enfrentar e lidar de maneira mais
confiante e otimista, e ao fim e ao cabo mais resiliente e determinada com a
dimensão dramática e por vezes traumática da vida. A morte, assim como tudo que
de uma forma ou de outra nos coloca em contato e proximidade para com ela - um
acidente inesperado, uma doença grave, ou a própria "velhice" - talvez sejam nesse sentido, para as mais
diversas culturas e sociedades, as experiências percebidas como mais
desafiadoras e difíceis de serem confrontadas e elaboradas. Felizmente, para
lidar melhor e de forma mais eficaz com situações desse tipo temos à nossa
disposição uma fantástica capacidade de atribuição de sentido e de
simbolização. "A imaginação é a artista que transforma o sofrimento em
beleza - dizia Rubem Alves - e a beleza torna a dor suportável". Essa
espécie de autêntica intervenção "alquímica" é operada na mente, mas
seus efeitos mais significativos alcançam um outro patamar: aquele por onde
transitam nossos afetos, nossas paixões e nossas emoções. Se a Daniel Goleman
coube a tarefa de cunhagem do conceito
de "inteligência emocional", ficaria sob a responsabilidade de
Dalmásio - Antônio Dalmásio - em sua obra "O erro de Descartes", nos
mostrar que as emoções - ao contrário do que imaginavam e pretendiam Kant e o
próprio Descartes - são indispensáveis para o exercício da racionalidade, e que
nenhum ato humano se realiza sem que "seja" e "esteja" sob
impulso de uma ou mais delas. Dessa forma a atribuição de sentidos e
significados, assim como toda ação de ressignificação ou rematrização, ao
alterar e contribuir para a melhoria e o aprimoramento de nossos pensamentos,
sentimentos e emoções, acabam se tornando instrumentos poderosos e preciosos na
elevação de nossa autoestima e no aumento de nossa qualidade de vida.
Conceitos - entendidos como
ressonância das coisas, dos fatos e das representações sociais na mente e no
imaginário das pessoas - são artifícios poderosos, sem dúvida, mas igualmente
perigosos. Padecem das nuances de um princípio denominado por Lou Marinoff de "princípio do duplo
poder": "tudo que porta
consigo potencial para o bem, porta igualmente, nas mesmas proporções,
potencial para o mal". Com base nesse princípio a presente reflexão se
debruça sobre o conceito e a representação social predominantes de
"velhice", para em seguida apontar razões que sugerem a necessidade
de ressignificação urgente dessa que é, para os que conseguem atingi-la, a
última fase da vida. Afinal, como nos mostra Simone de Beauvoir em sua mais
importante obra sobre o assunto, "A Velhice", esta já foi considerada
em outros tempos uma fase privilegiada da vida. E ainda que obviamente não se
trate de retornar aos "velhos tempos", tampouco parece razoável
compactuar com o fato de que ela continue sendo, em muitos casos, relegada ao ostracismo. Como qualquer outra
fase da vida também ela merece ocupar "lugar ao sol", não sendo
melhor nem pior que nenhuma outra: é sim, com certeza, apenas diferente.
Chega a ser no mínimo curioso, para
não dizer incompreensível, o fato de que ao longo dos tempos a
"velhice" - por enquanto vamos chamá-la assim, porém sem abrir mão
das aspas - tenha sido interpretada das formas mais díspares e discrepantes que
se possa imaginar. Sábios, médicos, filósofos, escritores e o próprio
imaginário coletivo, vão de um extremo ao outro quando se trata de atribuir
sentido e significado a essa etapa mais avançada da vida. Nas comunidades mais
primitivas, por exemplo, a velhice era considerada como uma espécie de
"fase de ouro", época privilegiada da vida, por portar consigo,
segundo se acreditava, experiência, sabedoria, equilíbrio e paz. Os assim
chamados "conselhos dos anciãos" expressavam bem não só o respeito e
a veneração, como também a importância e a reputação de que gozavam tais
pessoas em meio à coletividade da qual faziam parte. Já em outros períodos da
história, notadamente no século XVIII, em posição diametralmente oposta a
velhice esteve atrelada diretamente ao conceito de doença, e o que era ainda
pior, doença incurável, gerando muitas vezes zombaria e escárnio o simples fato
de se pretender "curá-la" fosse por meio de fármacos tradicionais ou
de intervenções alquímicas. Contemporaneamente, final da primeira metade do
século passado, uma das concepções ao nosso ver mais sensatas e equilibradas atribuídas a essa
fase da vida pode ser sinterizada na seguinte declaração, proferida pela médica
belga Escoffier-Lambiotte: "o envelhecimento, e depois dele a própria
morte, não estão relacionados com um certo nível de desgaste energético ou com
um número dado de batimentos cardíacos, mas sobrevêm quando um determinado
programa de crescimento e maturação chegou ao seu termo". Ao interpretar
tais palavras Simone de Beauvoir tece a seguinte e interessante consideração:
"é como se cada organismo trouxesse em si, desde o princípio, tal como o
fruto traz em sua semente, sua velhice, inelutável consequência de sua própria
realização". Realização que no presente caso significa completude,
inteireza e integralidade. Eis aqui um conceito interessante e produtivo
daquilo que, muito impropriamente, continuamos chamando de "velhice".
Os tempos mudam, e com os novos tempos
surgem também novos conceitos, novas ressignificações e rematrizações. Mas há
que se reconhecer: tais mudanças podem ocorrer tanto para o bem como para o
mal, tanto para melhor quanto para pior. A representação social da
"velhice" que hodiernamente predomina no imaginário coletivo da
maioria das sociedades, incluindo a nossa, longe de favorecer nas pessoas de
"maior idade" uma autopercepção positiva e favorável, acaba por comprometê-la e prejudicá-la ainda
mais. Comecemos pelo menos evidente e menos consciente, mas que mesmo
subliminarmente pode resultar danoso e altamente comprometedor: a própria
denominação de "velhice" que se atribui a essa fase da vida. Uma
roupa velha, uma enxada velha ou uma mala velha, tudo isso são coisas consideradas
inúteis, prontamente dispensáveis e facilmente descartáveis, seja pela própria
inutilidade seja pelo deterioramento estético que via de regra portam consigo.
Façamos um exercício mental simples observando e analisando os diversos
conceitos dos quais fazemos uso para identificar as diferentes fases do
crescimento e do desenvolvimento humano: "infância",
"adolescência",
"juventude", "adultez", e finalmente...
"velhice". Algo francamente distoante emerge quando pronunciamos o
último desses conceitos: "velhice". O adjetivo "velho",
aqui substantivado, na vida real é representativo de tudo de negativo e ruim
que se possa imaginar, e de pouco ou nada de positivo. Uma observação mais
atenta nos obrigará a reconhecer que, seduzidos e "mal-orientados"
tanto pelo inconsciente coletivo quanto por nosso inconsciente individual,
outra coisa não fazemos senão lançar mão
do "conceito" que melhor casa com nosso
"preconceito". Recusamos e negamos de forma veemente o segundo - o
preconceito - mas somos literalmente "desmascarados" de nossa
incoerência no uso que fazemos do primeiro - o conceito. Qualquer proposta ou
iniciativa de ressignificação da "velhice", portanto, passa
prioritária e necessariamente pela mudança do próprio conceito a ela atribuído,
implicando nesse sentido não apenas em "ressignificação" mas em um
verdadeiro ato de "rematrização", tal como por exemplo já há bom
tempo vem ocorrendo com o conceito de "loucura", que progressiva e
gradualmente vem cedendo seu lugar à concepção de "transtorno mental
grave". É fato que certos conceitos podem levar décadas e até séculos para
serem ressignificados, e mais ainda, rematrizados. O princípio entretanto não
pode ser outro: quanto mais arraigado estiver o conceito ou a representação
social do mesmo, no imaginário coletivo das pessoas, quanto antes o processo de
ressignificação ou rematrização for colocado em marcha, melhor. Afinal, é
princípio científico que "quando mais cedo detectado o diagnóstico, e mais
prontamente colocada em marcha a terapêutica, melhor o prognóstico".
Conta-se que ao solicitar a um de seus subordinados que fosse plantar a semente
de uma determinada árvore, Napoleão Bonaparte foi surpreendido com a seguinte
resposta visando dissuadi-lo: "mas general, essa semente leva dezenas de
anos para brotar!". Ao que Napoleão teria insistido de forma ainda mais
veemente: "e o que você está esperando? Vá plantá-la imediatamente!".
"Planta-se um pensamento, colhe-se um ato; planta-se um ato, colhe-se um
hábito; planta-se um hábito, colhe-se um caráter; planta-se um caráter,
colhe-se um destino", ensina Marlon Lawrence.
O que ocorre com o conceito de
"velhice" é sem dúvida algo digno de nota: é a única fase ou etapa da
vida, sem comparativo para com nenhuma outra no sentido a ser mencionado, sobre
a qual pesa preconceito específico pura e simplesmente em razão da idade. E é
preciso que se diga: não apenas um, mas diversos e distintos tipos de
preconceitos. Todas as demais fases, por uma ou por outra razão, são exaltadas
e enaltecidas, em especial infância e juventude, as meninas dos "olhos de
ouro" da trajetória do crescimento humano. Em situação e proporção
diametralmente opostas, a "velhice" encarna o declínio e a
decadência. É como se ser "velho", por si só, constituísse defeito. De um dia para o outro,
como numa espécie de "conto de fadas", o relógio assinala doze horas,
você completa a idade cultural e socialmente "programada" para dar
início à "velhice", e a partir desse momento a gata borralheira,
juntamente com todo tipo de pobreza e
monstruosidade, entram em cena. Em contrapartida os bons tempos da infância, da
juventude e da adultez, se vão e se perdem para sempre: é preciso sair do
palco, abandonar a festa, correr e se esconder para nunca mais reaparecer em
cena. A não ser, claro, que algum príncipe ou princesa tenham se encantado e se
apaixonado por você e resolvam procurá-lo perdido em meio à multidão. O que se
constata portanto é que nessa fase da vida as pessoas não apenas podem se
tornar mais sujeitas ao acometimento de doenças e enfermidades: a própria
velhice é, ela mesma, considerada uma doença, a primeira a acometer o idoso no
exato momento em que ele adentra a nova fase. E ainda que não venha a ser
importunado por nenhuma outra, da velhice como doença lamentavelmente não há
como ficar imune. Aí vem a pergunta que não quer e não aceita calar: desde
quando idade virou doença? Com qual CID identificá-la num eventual
"atestado" a ser fornecido? Imaginemos a seguinte declaração: "o
Senhor 'X' ou a Senhora 'Y' deverá ausentar-se de suas atividades laborais por
cinco dias, a partir da presente data. Motivo: idade. CID: 60. Caracterização:
velhice". Difícil de compreender, e menos ainda de aceitar, não é verdade?
Algo em semelhante se passa, segundo Lou Marinoff, com o chamado
"transtorno do estresse pós-traumático": "é bom que os
terapeutas da palavra encontrem alguma 'doença' se querem ganhar a vida",
afirma ele em tom de ironia. "O TEPT é uma doença útil. Cobre um extenso
terreno: todo o seu passado. Quanto mais velho você fica, mais coisas podem ter
dado errado na sua vida".
Dizia Kant - Immanuel Kant - que a
única coisa absolutamente boa é a boa intenção. Se isso for verdade, há que se
reconhecer a existência de situações em que, apesar da boa ou reta intenção,
lamentavelmente o mesmo não se pode dizer das consequências resultantes da ação
que brota de seu impulso. É esse o caso de um equívoco crasso, diria grosseiro,
que com frequência se comete para com a "velhice": refiro-me ao fato
de se tratar o idoso como criança e a velhice como um retorno à infância.
Hospitais, casas de acolhimento, aeroportos, comunidades religiosas, família e
familiares, assim como filhos e netos, incorrem com frequência nesse deslize
grave, que só não diremos "imperdoável" em razão da bondade da
intenção que na maioria das vezes o acompanha. O fato de que certas
características, atitudes,
comportamentos e reações, sejam semelhantes e comuns a essas duas fases do
crescimento humano - a infância e a "velhice" - talvez seja a
principal razão para o acometimento desse erro, que acaba tornando a vida do idoso,
ao contrário do que se pensa e se pretende, ainda mais difícil do que comumente
já é. "Idoso é idoso, criança é
criança": esse princípio ou postulado precisa ser ensinado e repassado a
todos e a cada um daqueles que, de uma forma ou de outra, por uma ou outra
razão, convivem, cuidam ou simplesmente se relacionam e interagem com pessoas
idosas. Caricaturizando para entender melhor: imagine um Sartre ou uma Simone
de Beauvior, um Eisntein ou uma Indira Gandhi, um Napoleão Bonaparte ou uma
Margaret Thacher, em sua última fase de vida, sendo tratados como crianças
"única e exclusivamente em razão da idade avançada". Difícil até
imaginar, não é verdade? É compreensível que uma doença grave ou um acidente
com comprometimento severo, sobretudo quando há repercussões no cérebro e no
exercício das funções mentais, possam sugerir e até mesmo exigir tratamento
diferenciado e específico. Mas o mero fator
"idade" tomado isoladamente, sem que estejam presentes as razões
mencionadas ou equivalentes, poderia tornar esse mesmo tratamento inaceitável,
preconceituoso, e até revoltante por parte de quem o recebe. As perdas e os
comprometimentos normais e naturais que costumam ocorrer nessa última fase da
vida - aos quais damos o nome de "senescência" - já costumam provocar
por si sós considerável abalo na autoimagem e na autoestima. Se somado a isso o
idoso é visto e tratado como criança, infantilizado, e excessivamente
"paparicado", essa autopercepção e essa afetação da autoimagem e da
autoestima se tornam ainda mais severas e comprometidas. Em tal caso não há boa
intenção que justifique um tratamento do tipo. Ninguém trata uma criança como
idoso ou idosa; por que deveríamos tratar o idoso como criança? O mesmo
princípio que aplicamos para o infante deveria valer para a percepção e o
tratamento a serem dispensados ao idoso ou ancião. Deve-se ressaltar ainda que
sentimentos incontidos e exacerbados de gratidão podem, paradoxalmente, agir
num verdadeiro conluio com a boa intenção nesse processo de infantilização do
idoso, sem que na maioria das vezes a
pessoa que dispensa o cuidado se aperceba disso. "A diferença entre o
remédio e o veneno - afirmam os gregos - está na dose e na modalidade da
aplicação".
Felizmente Kant não frequentou nenhum
saguão de aeroporto em sua "velhice"; os aviões e aeronaves que hoje
cortam os céus surgiriam bem mais tarde. Caso contrário certamente teria experimentado na própria pele - ou talvez
seria melhor dizer na própria "mente" e em suas emoções - uma triste
ironia que se costuma cometer para com os idosos, impulsionados mais uma vez
pela "bendita" boa intenção. Rubem Alves afirma ter passado não
poucas vezes pela situação, deixando registrada em algumas crônicas sua
irritação com o fato. Fila de acesso formada diante do "gate" ou
portão de embarque num determinado aeroporto. La "bella donna" oppure
"il bel Ragazzo" explica o
procedimento que irá adotar, enquanto solicita a compreensão e a colaboração de
todos: "primeiro, por favor, bem aqui na frente próximos de mim, todos
aqueles que fazem parte do 'grupo da melhor idade!'". Pronto: o caldo
estava entornado! "Como assim, 'melhor idade'!? Isso só pode ser
ironia!", queixava-se Rubem Alves, sem jamais ter aceitado fazer parte
daquele "regime de exceção". Tudo bem, que ninguém considerasse a
terceira idade como a pior delas, mas tratá-la como se fosse a melhor não fazia
para ele o menor sentido. Por que não lidar com ela simplesmente como ela é:
nem pior e nem melhor que nenhuma outra, apenas diferente? "A melhor fase
da vida é aquela em que nós estamos", dizia certo autor até o presente
momento desconhecido. E se se pergunta por que, a resposta é simples e dispensa
comentários: simplesmente porque, como já vem dito, "é nela que nós
estamos". Simples assim!? Simples assim! Por que haveria necessidade de
uma razão maior? O passado já não existe mais, o futuro ainda não chegou e
sequer sabemos se a ele chegaremos. Portanto o presente, pela simples razão de
estarmos e vivermos nele, é a melhor fase da trajetória do crescimento e do
desenvolvimento humano. O momento que realmente importa não diz respeito a este
ou aquele tempo, a esta ou aquela etapa de vida, e sim ao tempo no qual se vive
e se está vivendo "aqui e agora". "Sitz im leben" ou
"contexto vital", como dizem os alemães. Pura racionalização? Se
assim parece, que seja! Pelo menos até que se nos convença da lógica em optar
por uma estratégia ou interpretação melhores. Afinal, racionalizar não deixa de
ser também uma forma de ressignificar e rematrizar. E como diziam Epicteto e
Shakespeare, não são as coisas ou os fatos que em si mesmos nos fazem bem ou
mal, favorecem ou comprometem nossa autoimagem e nossa autoestima, e sim a
visão e a percepção que deles temos. Aqui a consciência, como muito bem nos
ensina a fenomenologia, é a grande criadora
e doadora de sentido. Por que então deveríamos abrir mão dela justamente
quando dela mais precisamos?
Um outro aspecto importante
relacionado à "velhice, que merece ser destacado, diz respeitos a certos
"fantasmas" que costumam surgir com o advento dessa última fase da
vida. Passamos boa parte da nossa trajetória existencial tentando convencer os
pequeninos - filhos e netos, especialmente - de que monstros e fantasmas não
existem, a não ser nos sonhos e na imaginação. Mas muita gente, a partir de
determinada idade, vive assombrada e atormentada por um monstro terrível,
chamado "fantasma do envelhecimento".
Maria Tereza Maldonado e Alberto Holdin, em "Maiores de 40",
insistem no fato de que o medo de envelhecer - essa espécie de fantasma que
costuma surgir justamente com o advento da terceira idade - não é a mesma coisa
que o envelhecimento propriamente dito. Esse último ocorre no corpo, e além de
inevitável é absolutamente normal como decorrência da integralidade e da
completude do amadurecimento humano. Já os medos e fantasmas são criações da
mente, presentes tanto no imaginário coletivo quanto no inconsciente e na
imaginação individuais. Perder a vitalidade ou tornar-se incapaz em decorrência
de uma doença grave, perder a autonomia e a capacidade de continuar
administrando a própria vida, tornar-se dependente de filhos e netos e de e
eventuais "cuidadores", ser
constrangido a viver num único lugar e ambiente sem alternativas e condições de
deslocamento, viagens e passeios mundo
afora, talvez estejam entre os principais "fantasmas" que rondam a
mente e o imaginário de muitas pessoas que se aproximam da chamada "terceira idade". Por outro lado,
pode-se conjecturar que pessoas demasiado ambiciosas e excessivamente
preocupadas em acumular e enriquecer sempre mais, perseguindo um patamar que
nunca chega e sempre se desloca para
frente quanto mais dele se aproxima, continuamente angustiadas mesmo quando já
possuidoras de um patrimônio alto e consolidado, sejam também pessoas que se
sentem ameaçadas pelo "fantasma do envelhecimento", ainda que não se
deem conta disso. Tais pessoas costumam viver numa espécie de "modo
suicida", incapazes que são de desfrutar da riqueza que acumularam e dos
bens de que são possuidores. "Fanático é aquele que perdeu de vista seu
ideal e se desdobra em esforços para alcançá-lo", afirma John Powell em
uma espécie de opúsculo intitulado "Psiquiatra da Alma". Comem, bebem
e fumam desregradamente, não se cuidam como deveriam, e nutrem um sentimento de
onipotência tal, como se o infortúnio e a adversidade - assim como de resto a
própria morte - jamais fossem capazes de alcançá-los. E se considerarmos que o
maior bem a que estamos sujeitos a perder é a própria vida, o fantasma do
envelhecimento, assim como o medo obsessivo pela perda do controle financeiro,
não seriam senão versões em menor escala do temor maior, que é o de perder a
própria vida. Mais cedo ou mais tarde certamente serão constrangidos a alterar
seus hábitos de vida em razão de uma doença qualquer, adquirida não
necessariamente em razão do avançar da
idade, mas da forma "doentia" e equivocada com que vinham
encarando a própria vida nas etapas
anteriores. A "velhice", nesse caso, só tende a agravar ainda mais as
coisas.
À guisa de conclusão: "das
coisas, dos fatos e dos acontecimentos, em si mesmos considerados, não se
extraem princípios", afirma a filosofia da ciência, notadamente a chamada
"epistemologia". Kant, certamente mais que nenhum outro filósofo,
sabia muito bem disso. Essa tarefa, ele o demonstrou muito bem, cabe à razão,
assim como também a ela cabe a missão de simbolizar e atribuir sentidos e
significados, que a fenomenologia coloca sob responsabilidade da consciência.
Sendo assim, diante de uma pergunta do tipo: "qual o significado da
vida?", a resposta não pode ser outra senão: a vida não traz em si mesma
seu próprio sentido ou significado: tem e terá o sentido ou significado que
cada um de nós atribuirmos a ela. Não é portanto uma pergunta a ser feita a
quem quer que seja: a este ou àquele "mestre", a esta ou àquela
"filosofia", à "religião" "a" ou à
"religião" "b", e
sim a cada um de nós mesmos. Isto vale também para a morte, o sofrimento, o bem
ou o mal, a "velhice" e tantas outras experiências do viver humano.
Foi buscando entender melhor essa
modalidade "sui generis" de interpretação que o grande cientista
Albert Einstein fez questão de conhecer e encontrar-se, em 1930, com o não
menos mundialmente conhecido místico Rabindranath Tagore, para uma conversa que
segundo Deepak Chopra duraria nada menos que três dias seguidos. De Tagore
Einstein ouviria, entre outras afirmações desconcertantes, que não pode existir
universo sem a existência dos humanos, que se há uma verdade absoluta fora do
entendimento do ser humano ela é inalcançável pelos seus fatos, e que nada pode
existir a menos que seja "percebido" pela mente humana. De resto,
concluiria Tagore, a própria ciência é uma atividade levada a cabo por seres
humanos, e os fatos não podem ser ditos existentes senão enquanto vistos e
medidos pelo homem. Segundo Chopra, "no fim os planetas não colidiram:
passaram ao largo um do outro, e nesse trajeto trocaram olhares. O ar estava
respirável e a paisagem não era hostil".
Qual o real significado da última fase
da vida, a que muito impropriamente continuamos chamando de "velhice"?
Tal pergunta, como se depreende do anteriormente afirmado, não admite senão uma
única resposta: "a 'velhice' tem o significado que cada um de nós
atribuirmos a ela". Se finitude ou completude, decadência ou sapiência, deterioração ou
transformação, dependerá essencialmente do conteúdo que foi mentalmente sendo elaborado e assumido ao longo das
etapas que a precederam. Se como afirma certo princípio evolucionário, "a
ontogenia recapitula a filogenia" - isto é, cada indivíduo traz em si as
características fundamentais de sua espécie - não é menos verdade que essa
"herança", sobretudo no tocante à cultura e ao "modus
vivendi" de uma geração, não se transmite de forma rígida e
determinística, mas sim de forma dialética e dialogal. Isso se faz tanto pela
mediação do inconsciente coletivo - conceitos, crenças e representações sociais
- quanto pelo inconsciente e a consciência individuais. Quanto maior o alcance
do "despertar da consciência", maior o grau de libertação do
indivíduo em relação aos condicionamentos
da espécie e os ditames da coletividade específica à qual pertence,
afirmam os grandes mestres orientais. Claro que existe certo
"idealismo" e certo "romantismo" nesse modo de ver a vida e
de interpretar a realidade, não raro acompanhados por percepções filosóficas e
crenças religiosas num "logos" ou "mente transcendente" que
tudo governa e sempre intervém de forma salvífica e providente na história dos
homens. Isso pode ser bom ou ruim. Mas em muitos casos é certo que acaba fazendo
com que as pessoas se alienem do processo, abracem o conformismo e a
passividade, e abdiquem da tarefa e da responsabilidade que a todos e a cada um
de nós se impõem. São os "animais de rebanho", de que tanto falava
Nietzsche, presas fáceis para os animais de rapina.
Em seu livro "A velhice",
entre as tantas "estórias" recolhidas pelos irmãos Grimm em meio ao
riquíssimo folclore popular alemão e espalhadas pelo mundo inteiro, tais como
"a bela adormecida", "chapeuzinho vermelho", "João e o
pé de feijão", e muitas outras, Simone de Beauvior nos fala de um conto
curiosamente pouco conhecido, relacionado à "velhice". O filho dá de
comer ao pai em uma gamela de madeira,
num canto separado dos demais. Depara-se com o próprio filho, ainda infante,
recolhendo pequenos tocos de pau, que lhe diz: "é para você, quando ficar
velho!". Imediatamente o avô recupera seu lugar na mesa comum. Esse conto
de Grimm, em particular, nos ensina que o ser humano não vive nunca em estado
natural. Tanto na sua "velhice", como de resto em qualquer idade ou
fase da vida, seu estatuto lhe é "imposto" pela sociedade na qual se
encontra inserido. Ainda assim, a perspectiva do próprio idoso em relação à
fase em que está vivendo "pode", e "deve" ser diferente
daquela que permanece arraigada no imaginário coletivo e na representação
social dos profissionais e cuidadores que trabalham com idosos, quando essa
visão é doentia e irracional. Tampouco se pode ignorar que o significado da
velhice para homens e mulheres, por uma série de motivos, não é o mesmo, como
também não o é para o idoso pobre e aquele de família abastada. E se o valor
maior de uma cultura ou sociedade, continuar sendo medido pela produtividade, a
"velhice" continuará sendo avaliada como o tempo da inutilidade,
"menos valia", passando a valer muito pouco nas "trocas
sociais" e nos intercâmbios "intergeracionais" Os orientais de
um modo geral, os chineses e japoneses em especial, podem nos ensinar algumas
lições a respeito. A principal delas talvez seja a de que a evolução técnica e tecnológica, por mais
revolucionária que seja, não se faz sem a preservação de tradições milenares e
do "humano" que elas portam
consigo, de princípios e valores inegociáveis, do respeito, reconhecimento e
veneração para com os idosos e anciãos que contribuiram e deram suas vidas para
a construção de um povo e a elevação do espírito de uma nação. Dir-se-à que
somos uma nação jovem, ainda social e culturalmente em construção, o que não
deixa de ser verdade. Ainda assim uma interrogação fundamental se impõe: o rumo
e a direção que estamos tomando, bem como o caminho que estamos seguindo
trazendo conosco as gerações mais jovens, filhos e netos, nos levarão de fato
aonde pretendemos chegar? Afinal, como afirma Oliver Wendell Holmes, "uma
das coisas mais importantes na vida não é saber onde estamos, mas em que
direção estamos indo".
(*)
Texto enviado por whasapp, de Vitória(ES).
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