sexta-feira, 16 de junho de 2023

TERCEIRA IDADE OU 'MAIORIDADE': RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE 'VELHICE'" (Texto Integral)

 

TERCEIRA IDADE OU 'MAIORIDADE': RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE 'VELHICE'" (Texto Integral)

                Por Lindolivo Soares Moura(*)      

   "Para a sociedade a velhice aparece como  uma espécie  de  segredo vergonhoso,  do qual é indecente falar". (Simone de Beauvoir).

 

De acordo com o filósofo francês René Descartes, "nem Deus pode fazer com que aquilo que aconteceu não o tenha sido". Nessa mesma esteira de pensamento o escravo liberto grego Epicteto afirmava que não são as coisas em si que nos causam esta ou aquela impressão, e sim a visão ou percepção que delas temos. Mais recentemente coube a Sheakspeare a renovação desse mesmo princípio, ao afirmar que "as coisas em si mesmas não são boas nem más, é o pensamento que as torna deste ou daquele jeito". Pode-se, claro, afirmar que tal forma de ver o mundo e de interpretar a realidade não passe de simples racionalização, e em última instância de uma espécie mais refinada de negação. Talvez seja. Ainda assim, "in dubio, pro reo". O fato é que não faz sentido negar ao "animal humano" - um ser não apenas "senciente" mas também "sapiente",  e mais que "sapiente", "simbólico" - o direito a lançar mão de recursos como simbolização e atribuição de sentidos e significados, tanto no manejo paras com os fatos e acontecimentos que permeiam a realidade e a história coletivas, quanto seu próprio "tao" e sua trajetória pessoais. Uma recusa consciente em fazer uso de tais recursos equivaleria a uma opção declarada por manter-se em condição de paridade junto a todos os demais seres vivos irracionais que habitam o planeta.

Até onde se sabe, e  até onde as evidências empíricas atestam o fato, atribuir sentidos e significados, simbolizar e transcender, continuam sendo recursos e alternativas exclusiva e especificamente humanos. São eles, mais que nenhum outro, que nos permitem enfrentar e lidar de maneira mais confiante e otimista, e ao fim e ao cabo mais resiliente e determinada com a dimensão dramática e por vezes traumática da vida. A morte, assim como tudo que de uma forma ou de outra nos coloca em contato e proximidade para com ela - um acidente inesperado, uma doença grave, ou a própria "velhice" -  talvez sejam nesse sentido, para as mais diversas culturas e sociedades, as experiências percebidas como mais desafiadoras e difíceis de serem confrontadas e elaboradas. Felizmente, para lidar melhor e de forma mais eficaz com situações desse tipo temos à nossa disposição uma fantástica capacidade de atribuição de sentido e de simbolização. "A imaginação é a artista que transforma o sofrimento em beleza - dizia Rubem Alves - e a beleza torna a dor suportável". Essa espécie de autêntica intervenção "alquímica" é operada na mente, mas seus efeitos mais significativos alcançam um outro patamar: aquele por onde transitam nossos afetos, nossas paixões e nossas emoções. Se a Daniel Goleman coube a  tarefa de cunhagem do conceito de "inteligência emocional", ficaria sob a responsabilidade de Dalmásio - Antônio Dalmásio - em sua obra "O erro de Descartes", nos mostrar que as emoções - ao contrário do que imaginavam e pretendiam Kant e o próprio Descartes - são indispensáveis para o exercício da racionalidade, e que nenhum ato humano se realiza sem que "seja" e "esteja" sob impulso de uma ou mais delas. Dessa forma a atribuição de sentidos e significados, assim como toda ação de ressignificação ou rematrização, ao alterar e contribuir para a melhoria e o aprimoramento de nossos pensamentos, sentimentos e emoções, acabam se tornando instrumentos poderosos e preciosos na elevação de nossa autoestima e no aumento de nossa qualidade de vida.

Conceitos - entendidos como ressonância das coisas, dos fatos e das representações sociais na mente e no imaginário das pessoas - são artifícios poderosos, sem dúvida, mas igualmente perigosos. Padecem das nuances de um princípio denominado por  Lou Marinoff de "princípio do duplo poder":  "tudo que porta consigo potencial para o bem, porta igualmente, nas mesmas proporções, potencial para o mal". Com base nesse princípio a presente reflexão se debruça sobre o conceito e a representação social predominantes de "velhice", para em seguida apontar razões que sugerem a necessidade de ressignificação urgente dessa que é, para os que conseguem atingi-la, a última fase da vida. Afinal, como nos mostra Simone de Beauvoir em sua mais importante obra sobre o assunto, "A Velhice", esta já foi considerada em outros tempos uma fase privilegiada da vida. E ainda que obviamente não se trate de retornar aos "velhos tempos", tampouco parece razoável compactuar com o fato de que ela continue sendo, em muitos casos,  relegada ao ostracismo. Como qualquer outra fase da vida também ela merece ocupar "lugar ao sol", não sendo melhor nem pior que nenhuma outra: é sim, com certeza, apenas diferente.

Chega a ser no mínimo curioso, para não dizer incompreensível, o fato de que ao longo dos tempos a "velhice" - por enquanto vamos chamá-la assim, porém sem abrir mão das aspas - tenha sido interpretada das formas mais díspares e discrepantes que se possa imaginar. Sábios, médicos, filósofos, escritores e o próprio imaginário coletivo, vão de um extremo ao outro quando se trata de atribuir sentido e significado a essa etapa mais avançada da vida. Nas comunidades mais primitivas, por exemplo, a velhice era considerada como uma espécie de "fase de ouro", época privilegiada da vida, por portar consigo, segundo se acreditava, experiência, sabedoria, equilíbrio e paz. Os assim chamados "conselhos dos anciãos" expressavam bem não só o respeito e a veneração, como também a importância e a reputação de que gozavam tais pessoas em meio à coletividade da qual faziam parte. Já em outros períodos da história, notadamente no século XVIII, em posição diametralmente oposta a velhice esteve atrelada diretamente ao conceito de doença, e o que era ainda pior, doença incurável, gerando muitas vezes zombaria e escárnio o simples fato de se pretender "curá-la" fosse por meio de fármacos tradicionais ou de intervenções alquímicas. Contemporaneamente, final da primeira metade do século passado, uma das concepções ao nosso ver mais  sensatas e equilibradas atribuídas a essa fase da vida pode ser sinterizada na seguinte declaração, proferida pela médica belga Escoffier-Lambiotte: "o envelhecimento, e depois dele a própria morte, não estão relacionados com um certo nível de desgaste energético ou com um número dado de batimentos cardíacos, mas sobrevêm quando um determinado programa de crescimento e maturação chegou ao seu termo". Ao interpretar tais palavras Simone de Beauvoir tece a seguinte e interessante consideração: "é como se cada organismo trouxesse em si, desde o princípio, tal como o fruto traz em sua semente, sua velhice, inelutável consequência de sua própria realização". Realização que no presente caso significa completude, inteireza e integralidade. Eis aqui um conceito interessante e produtivo daquilo que, muito impropriamente, continuamos chamando de "velhice".

Os tempos mudam, e com os novos tempos surgem também novos conceitos, novas ressignificações e rematrizações. Mas há que se reconhecer: tais mudanças podem ocorrer tanto para o bem como para o mal, tanto para melhor quanto para pior. A representação social da "velhice" que hodiernamente predomina no imaginário coletivo da maioria das sociedades, incluindo a nossa, longe de favorecer nas pessoas de "maior idade" uma autopercepção positiva e favorável,  acaba por comprometê-la e prejudicá-la ainda mais. Comecemos pelo menos evidente e menos consciente, mas que mesmo subliminarmente pode resultar danoso e altamente comprometedor: a própria denominação de "velhice" que se atribui a essa fase da vida. Uma roupa velha, uma enxada velha ou uma mala velha, tudo isso são coisas consideradas inúteis, prontamente dispensáveis e facilmente descartáveis, seja pela própria inutilidade seja pelo deterioramento estético que via de regra portam consigo. Façamos um exercício mental simples observando e analisando os diversos conceitos dos quais fazemos uso para identificar as diferentes fases do crescimento e do desenvolvimento humano: "infância", "adolescência",  "juventude", "adultez", e finalmente... "velhice". Algo francamente distoante emerge quando pronunciamos o último desses conceitos: "velhice". O adjetivo "velho", aqui substantivado, na vida real é representativo de tudo de negativo e ruim que se possa imaginar, e de pouco ou nada de positivo. Uma observação mais atenta nos obrigará a reconhecer que, seduzidos e "mal-orientados" tanto pelo inconsciente coletivo quanto por nosso inconsciente individual, outra coisa não fazemos senão lançar mão  do "conceito" que melhor casa com nosso "preconceito". Recusamos e negamos de forma veemente o segundo - o preconceito - mas somos literalmente "desmascarados" de nossa incoerência no uso que fazemos do primeiro - o conceito. Qualquer proposta ou iniciativa de ressignificação da "velhice", portanto, passa prioritária e necessariamente pela mudança do próprio conceito a ela atribuído, implicando nesse sentido não apenas em "ressignificação" mas em um verdadeiro ato de "rematrização", tal como por exemplo já há bom tempo vem ocorrendo com o conceito de "loucura", que progressiva e gradualmente vem cedendo seu lugar à concepção de "transtorno mental grave". É fato que certos conceitos podem levar décadas e até séculos para serem ressignificados, e mais ainda, rematrizados. O princípio entretanto não pode ser outro: quanto mais arraigado estiver o conceito ou a representação social do mesmo, no imaginário coletivo das pessoas, quanto antes o processo de ressignificação ou rematrização for colocado em marcha, melhor. Afinal, é princípio científico que "quando mais cedo detectado o diagnóstico, e mais prontamente colocada em marcha a terapêutica, melhor o prognóstico". Conta-se que ao solicitar a um de seus subordinados que fosse plantar a semente de uma determinada árvore, Napoleão Bonaparte foi surpreendido com a seguinte resposta visando dissuadi-lo: "mas general, essa semente leva dezenas de anos para brotar!". Ao que Napoleão teria insistido de forma ainda mais veemente: "e o que você está esperando? Vá plantá-la imediatamente!". "Planta-se um pensamento, colhe-se um ato; planta-se um ato, colhe-se um hábito; planta-se um hábito, colhe-se um caráter; planta-se um caráter, colhe-se um destino", ensina Marlon Lawrence.

O que ocorre com o conceito de "velhice" é sem dúvida algo digno de nota: é a única fase ou etapa da vida, sem comparativo para com nenhuma outra no sentido a ser mencionado, sobre a qual pesa preconceito específico pura e simplesmente em razão da idade. E é preciso que se diga: não apenas um, mas diversos e distintos tipos de preconceitos. Todas as demais fases, por uma ou por outra razão, são exaltadas e enaltecidas, em especial infância e juventude, as meninas dos "olhos de ouro" da trajetória do crescimento humano. Em situação e proporção diametralmente opostas, a "velhice" encarna o declínio e a decadência. É como se ser "velho", por si só,  constituísse defeito. De um dia para o outro, como numa espécie de "conto de fadas", o relógio assinala doze horas, você completa a idade cultural e socialmente "programada" para dar início à "velhice", e a partir desse momento a gata borralheira, juntamente com todo tipo  de pobreza e monstruosidade, entram em cena. Em contrapartida os bons tempos da infância, da juventude e da adultez, se vão e se perdem para sempre: é preciso sair do palco, abandonar a festa, correr e se esconder para nunca mais reaparecer em cena. A não ser, claro, que algum príncipe ou princesa tenham se encantado e se apaixonado por você e resolvam procurá-lo perdido em meio à multidão. O que se constata portanto é que nessa fase da vida as pessoas não apenas podem se tornar mais sujeitas ao acometimento de doenças e enfermidades: a própria velhice é, ela mesma, considerada uma doença, a primeira a acometer o idoso no exato momento em que ele adentra a nova fase. E ainda que não venha a ser importunado por nenhuma outra, da velhice como doença lamentavelmente não há como ficar imune. Aí vem a pergunta que não quer e não aceita calar: desde quando idade virou doença? Com qual CID identificá-la num eventual "atestado" a ser fornecido? Imaginemos a seguinte declaração: "o Senhor 'X' ou a Senhora 'Y' deverá ausentar-se de suas atividades laborais por cinco dias, a partir da presente data. Motivo: idade. CID: 60. Caracterização: velhice". Difícil de compreender, e menos ainda de aceitar, não é verdade? Algo em semelhante se passa, segundo Lou Marinoff, com o chamado "transtorno do estresse pós-traumático": "é bom que os terapeutas da palavra encontrem alguma 'doença' se querem ganhar a vida", afirma ele em tom de ironia. "O TEPT é uma doença útil. Cobre um extenso terreno: todo o seu passado. Quanto mais velho você fica, mais coisas podem ter dado errado na sua vida".

Dizia Kant - Immanuel Kant - que a única coisa absolutamente boa é a boa intenção. Se isso for verdade, há que se reconhecer a existência de situações em que, apesar da boa ou reta intenção, lamentavelmente o mesmo não se pode dizer das consequências resultantes da ação que brota de seu impulso. É esse o caso de um equívoco crasso, diria grosseiro, que com frequência se comete para com a "velhice": refiro-me ao fato de se tratar o idoso como criança e a velhice como um retorno à infância. Hospitais, casas de acolhimento, aeroportos, comunidades religiosas, família e familiares, assim como filhos e netos, incorrem com frequência nesse deslize grave, que só não diremos "imperdoável" em razão da bondade da intenção que na maioria das vezes o acompanha. O fato de que certas características,  atitudes, comportamentos e reações, sejam semelhantes e comuns a essas duas fases do crescimento humano - a infância e a "velhice" - talvez seja a principal razão para o acometimento desse erro, que acaba tornando a vida do idoso, ao contrário do que se pensa e se pretende, ainda mais difícil do que comumente já é.  "Idoso é idoso, criança é criança": esse princípio ou postulado precisa ser ensinado e repassado a todos e a cada um daqueles que, de uma forma ou de outra, por uma ou outra razão, convivem, cuidam ou simplesmente se relacionam e interagem com pessoas idosas. Caricaturizando para entender melhor: imagine um Sartre ou uma Simone de Beauvior, um Eisntein ou uma Indira Gandhi, um Napoleão Bonaparte ou uma Margaret Thacher, em sua última fase de vida, sendo tratados como crianças "única e exclusivamente em razão da idade avançada". Difícil até imaginar, não é verdade? É compreensível que uma doença grave ou um acidente com comprometimento severo, sobretudo quando há repercussões no cérebro e no exercício das funções mentais, possam sugerir e até mesmo exigir tratamento diferenciado e específico. Mas o mero fator  "idade" tomado isoladamente, sem que estejam presentes as razões mencionadas ou equivalentes, poderia tornar esse mesmo tratamento inaceitável, preconceituoso, e até revoltante por parte de quem o recebe. As perdas e os comprometimentos normais e naturais que costumam ocorrer nessa última fase da vida - aos quais damos o nome de "senescência" - já costumam provocar por si sós considerável abalo na autoimagem e na autoestima. Se somado a isso o idoso é visto e tratado como criança, infantilizado, e excessivamente "paparicado", essa autopercepção e essa afetação da autoimagem e da autoestima se tornam ainda mais severas e comprometidas. Em tal caso não há boa intenção que justifique um tratamento do tipo. Ninguém trata uma criança como idoso ou idosa; por que deveríamos tratar o idoso como criança? O mesmo princípio que aplicamos para o infante deveria valer para a percepção e o tratamento a serem dispensados ao idoso ou ancião. Deve-se ressaltar ainda que sentimentos incontidos e exacerbados de gratidão podem, paradoxalmente, agir num verdadeiro conluio com a boa intenção nesse processo de infantilização do idoso, sem que na maioria das vezes  a pessoa que dispensa o cuidado se aperceba disso. "A diferença entre o remédio e o veneno - afirmam os gregos - está na dose e na modalidade da aplicação".

 

Felizmente Kant não frequentou nenhum saguão de aeroporto em sua "velhice"; os aviões e aeronaves que hoje cortam os céus surgiriam bem mais tarde. Caso contrário certamente teria  experimentado na própria pele - ou talvez seria melhor dizer na própria "mente" e em suas emoções - uma triste ironia que se costuma cometer para com os idosos, impulsionados mais uma vez pela "bendita" boa intenção. Rubem Alves afirma ter passado não poucas vezes pela situação, deixando registrada em algumas crônicas sua irritação com o fato. Fila de acesso formada diante do "gate" ou portão de embarque num determinado aeroporto. La "bella donna" oppure "il bel Ragazzo"  explica o procedimento que irá adotar, enquanto solicita a compreensão e a colaboração de todos: "primeiro, por favor, bem aqui na frente próximos de mim, todos aqueles que fazem parte do 'grupo da melhor idade!'". Pronto: o caldo estava entornado! "Como assim, 'melhor idade'!? Isso só pode ser ironia!", queixava-se Rubem Alves, sem jamais ter aceitado fazer parte daquele "regime de exceção". Tudo bem, que ninguém considerasse a terceira idade como a pior delas, mas tratá-la como se fosse a melhor não fazia para ele o menor sentido. Por que não lidar com ela simplesmente como ela é: nem pior e nem melhor que nenhuma outra, apenas diferente? "A melhor fase da vida é aquela em que nós estamos", dizia certo autor até o presente momento desconhecido. E se se pergunta por que, a resposta é simples e dispensa comentários: simplesmente porque, como já vem dito, "é nela que nós estamos". Simples assim!? Simples assim! Por que haveria necessidade de uma razão maior? O passado já não existe mais, o futuro ainda não chegou e sequer sabemos se a ele chegaremos. Portanto o presente, pela simples razão de estarmos e vivermos nele, é a melhor fase da trajetória do crescimento e do desenvolvimento humano. O momento que realmente importa não diz respeito a este ou aquele tempo, a esta ou aquela etapa de vida, e sim ao tempo no qual se vive e se está vivendo "aqui e agora". "Sitz im leben" ou "contexto vital", como dizem os alemães. Pura racionalização? Se assim parece, que seja! Pelo menos até que se nos convença da lógica em optar por uma estratégia ou interpretação melhores. Afinal, racionalizar não deixa de ser também uma forma de ressignificar e rematrizar. E como diziam Epicteto e Shakespeare, não são as coisas ou os fatos que em si mesmos nos fazem bem ou mal, favorecem ou comprometem nossa autoimagem e nossa autoestima, e sim a visão e a percepção que deles temos. Aqui a consciência, como muito bem nos ensina a fenomenologia, é a grande criadora  e doadora de sentido. Por que então deveríamos abrir mão dela justamente quando dela mais precisamos?

Um outro aspecto importante relacionado à "velhice, que merece ser destacado, diz respeitos a certos "fantasmas" que costumam surgir com o advento dessa última fase da vida. Passamos boa parte da nossa trajetória existencial tentando convencer os pequeninos - filhos e netos, especialmente - de que monstros e fantasmas não existem, a não ser nos sonhos e na imaginação. Mas muita gente, a partir de determinada idade, vive assombrada e atormentada por um monstro terrível, chamado "fantasma do envelhecimento".  Maria Tereza Maldonado e Alberto Holdin, em "Maiores de 40", insistem no fato de que o medo de envelhecer - essa espécie de fantasma que costuma surgir justamente com o advento da terceira idade - não é a mesma coisa que o envelhecimento propriamente dito. Esse último ocorre no corpo, e além de inevitável é absolutamente normal como decorrência da integralidade e da completude do amadurecimento humano. Já os medos e fantasmas são criações da mente, presentes tanto no imaginário coletivo quanto no inconsciente e na imaginação individuais. Perder a vitalidade ou tornar-se incapaz em decorrência de uma doença grave, perder a autonomia e a capacidade de continuar administrando a própria vida, tornar-se dependente de filhos e netos e de e eventuais  "cuidadores", ser constrangido a viver num único lugar e ambiente sem alternativas e condições de deslocamento,  viagens e passeios mundo afora, talvez estejam entre os principais "fantasmas" que rondam a mente e o imaginário de muitas pessoas que se aproximam da chamada  "terceira idade". Por outro lado, pode-se conjecturar que pessoas demasiado ambiciosas e excessivamente preocupadas em acumular e enriquecer sempre mais, perseguindo um patamar que nunca chega e  sempre se desloca para frente quanto mais dele se aproxima, continuamente angustiadas mesmo quando já possuidoras de um patrimônio alto e consolidado, sejam também pessoas que se sentem ameaçadas pelo "fantasma do envelhecimento", ainda que não se deem conta disso. Tais pessoas costumam viver numa espécie de "modo suicida", incapazes que são de desfrutar da riqueza que acumularam e dos bens de que são possuidores. "Fanático é aquele que perdeu de vista seu ideal e se desdobra em esforços para alcançá-lo", afirma John Powell em uma espécie de opúsculo intitulado "Psiquiatra da Alma". Comem, bebem e fumam desregradamente, não se cuidam como deveriam, e nutrem um sentimento de onipotência tal, como se o infortúnio e a adversidade - assim como de resto a própria morte - jamais fossem capazes de alcançá-los. E se considerarmos que o maior bem a que estamos sujeitos a perder é a própria vida, o fantasma do envelhecimento, assim como o medo obsessivo pela perda do controle financeiro, não seriam senão versões em menor escala do temor maior, que é o de perder a própria vida. Mais cedo ou mais tarde certamente serão constrangidos a alterar seus hábitos de vida em razão de uma doença qualquer, adquirida não necessariamente em razão do  avançar da idade, mas da forma "doentia" e equivocada com que vinham encarando  a própria vida nas etapas anteriores. A "velhice", nesse caso, só tende a agravar ainda mais as coisas.

À guisa de conclusão: "das coisas, dos fatos e dos acontecimentos, em si mesmos considerados, não se extraem princípios", afirma a filosofia da ciência, notadamente a chamada "epistemologia". Kant, certamente mais que nenhum outro filósofo, sabia muito bem disso. Essa tarefa, ele o demonstrou muito bem, cabe à razão, assim como também a ela cabe a missão de simbolizar e atribuir sentidos e significados, que a fenomenologia coloca sob responsabilidade da consciência. Sendo assim, diante de uma pergunta do tipo: "qual o significado da vida?", a resposta não pode ser outra senão: a vida não traz em si mesma seu próprio sentido ou significado: tem e terá o sentido ou significado que cada um de nós atribuirmos a ela. Não é portanto uma pergunta a ser feita a quem quer que seja: a este ou àquele "mestre", a esta ou àquela "filosofia", à "religião" "a"  ou  à "religião" "b",  e sim a cada um de nós mesmos. Isto vale também para a morte, o sofrimento, o bem ou o mal, a "velhice" e tantas outras experiências do viver humano.

Foi buscando entender melhor essa modalidade "sui generis" de interpretação que o grande cientista Albert Einstein fez questão de conhecer e encontrar-se, em 1930, com o não menos mundialmente conhecido místico Rabindranath Tagore, para uma conversa que segundo Deepak Chopra duraria nada menos que três dias seguidos. De Tagore Einstein ouviria, entre outras afirmações desconcertantes, que não pode existir universo sem a existência dos humanos, que se há uma verdade absoluta fora do entendimento do ser humano ela é inalcançável pelos seus fatos, e que nada pode existir a menos que seja "percebido" pela mente humana. De resto, concluiria Tagore, a própria ciência é uma atividade levada a cabo por seres humanos, e os fatos não podem ser ditos existentes senão enquanto vistos e medidos pelo homem. Segundo Chopra, "no fim os planetas não colidiram: passaram ao largo um do outro, e nesse trajeto trocaram olhares. O ar estava respirável e a paisagem não era hostil".

Qual o real significado da última fase da vida, a que muito impropriamente continuamos chamando de "velhice"? Tal pergunta, como se depreende do anteriormente afirmado, não admite senão uma única resposta: "a 'velhice' tem o significado que cada um de nós atribuirmos a ela". Se finitude ou completude,  decadência ou sapiência, deterioração ou transformação, dependerá essencialmente do conteúdo que foi mentalmente  sendo elaborado e assumido ao longo das etapas que a precederam. Se como afirma certo princípio evolucionário, "a ontogenia recapitula a filogenia" - isto é, cada indivíduo traz em si as características fundamentais de sua espécie - não é menos verdade que essa "herança", sobretudo no tocante à cultura e ao "modus vivendi" de uma geração, não se transmite de forma rígida e determinística, mas sim de forma dialética e dialogal. Isso se faz tanto pela mediação do inconsciente coletivo - conceitos, crenças e representações sociais - quanto pelo inconsciente e a consciência individuais. Quanto maior o alcance do "despertar da consciência", maior o grau de libertação do indivíduo em relação aos condicionamentos  da espécie e os ditames da coletividade específica à qual pertence, afirmam os grandes mestres orientais. Claro que existe certo "idealismo" e certo "romantismo" nesse modo de ver a vida e de interpretar a realidade, não raro acompanhados por percepções filosóficas e crenças religiosas num "logos" ou "mente transcendente" que tudo governa e sempre intervém de forma salvífica e providente na história dos homens. Isso pode ser bom ou ruim. Mas em muitos casos é certo que acaba fazendo com que as pessoas se alienem do processo, abracem o conformismo e a passividade, e abdiquem da tarefa e da responsabilidade que a todos e a cada um de nós se impõem. São os "animais de rebanho", de que tanto falava Nietzsche, presas fáceis para os animais de rapina.

Em seu livro "A velhice", entre as tantas "estórias" recolhidas pelos irmãos Grimm em meio ao riquíssimo folclore popular alemão e espalhadas pelo mundo inteiro, tais como "a bela adormecida", "chapeuzinho vermelho", "João e o pé de feijão", e muitas outras, Simone de Beauvior nos fala de um conto curiosamente pouco conhecido, relacionado à "velhice". O filho dá de comer ao pai em  uma gamela de madeira, num canto separado dos demais. Depara-se com o próprio filho, ainda infante, recolhendo pequenos tocos de pau, que lhe diz: "é para você, quando ficar velho!". Imediatamente o avô recupera seu lugar na mesa comum. Esse conto de Grimm, em particular, nos ensina que o ser humano não vive nunca em estado natural. Tanto na sua "velhice", como de resto em qualquer idade ou fase da vida, seu estatuto lhe é "imposto" pela sociedade na qual se encontra inserido. Ainda assim, a perspectiva do próprio idoso em relação à fase em que está vivendo "pode", e "deve" ser diferente daquela que permanece arraigada no imaginário coletivo e na representação social dos profissionais e cuidadores que trabalham com idosos, quando essa visão é doentia e irracional. Tampouco se pode ignorar que o significado da velhice para homens e mulheres, por uma série de motivos, não é o mesmo, como também não o é para o idoso pobre e aquele de família abastada. E se o valor maior de uma cultura ou sociedade, continuar sendo medido pela produtividade, a "velhice" continuará sendo avaliada como o tempo da inutilidade, "menos valia", passando a valer muito pouco nas "trocas sociais" e nos intercâmbios "intergeracionais" Os orientais de um modo geral, os chineses e japoneses em especial, podem nos ensinar algumas lições a respeito. A principal delas talvez seja a de que   a evolução técnica e tecnológica, por mais revolucionária que seja, não se faz sem a preservação de tradições milenares e do  "humano" que elas portam consigo, de princípios e valores inegociáveis, do respeito, reconhecimento e veneração para com os idosos e anciãos que contribuiram e deram suas vidas para a construção de um povo e a elevação do espírito de uma nação. Dir-se-à que somos uma nação jovem, ainda social e culturalmente em construção, o que não deixa de ser verdade. Ainda assim uma interrogação fundamental se impõe: o rumo e a direção que estamos tomando, bem como o caminho que estamos seguindo trazendo conosco as gerações mais jovens, filhos e netos, nos levarão de fato aonde pretendemos chegar? Afinal, como afirma Oliver Wendell Holmes, "uma das coisas mais importantes na vida não é saber onde estamos, mas em que direção estamos indo".

 

      (*) Texto enviado por whasapp, de Vitória(ES).

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