VII- REFLEXÃO DOMINICAL
II: O MANDAMENTO QUE CONDUZ À VIDA ETERNA
14 de julho – 15º DOMINGO DO
TEMPO COMUM
Por Pe. Johan Konings, sj
I.
INTRODUÇÃO
GERAL
A liturgia deste domingo nos confronta
com o ensinamento de Jesus sobre o amor fraterno, supremo mandamento da vida
cristã. Trata-se do ponto fulcral da prática cristã. As leituras apresentam
dois aspectos principais: o que é amar e a quem se dirige nosso amor? As duas
perguntas fundem-se numa só compreensão: quem ama descobre logo a quem amar.
Como lema, que pode ser repetido na homilia e nos comentários, sugerimos:
“Torne-se próximo de seu irmão necessitado”, ou a sabedoria popular: “A melhor maneira
de ter amigos é ser amigo”.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS
BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 30,10-14)
A primeira leitura funciona como
verdadeira abertura solene para a liturgia da Palavra. O livro mais imponente
da Torá, o Deuteronômio, ensina-nos que o mandamento de Deus não está fora de
nosso alcance. Deus fez de Israel seu povo, não por este ser importante, mas
por amor e fidelidade à sua promessa (Dt 7,7-8). O amor de Deus por Israel não
tem explicação, mas tem consequências: Israel deve amar a Deus com todas as
suas forças (Dt 6,4-5). Deve escutar sua voz e não se afastar de suas
orientações; e, quando se afasta, deve “voltar”, converter-se (30,10). E, se o
povo diz que a Lei é difícil, Deus responde que não: não é coisa de outro
mundo. Está perto, ao alcance de quem o ama (30,11-14; cf. Jr 31,33; Br
3,15-29; Rm 10,6-8). Hoje importa redescobrir que lei e mandamentos não são
coisas do passado, inimigas da liberdade moderna. O termo que traduzimos por
lei (torah) deveria, na realidade, ser traduzido como ensinamento, instrução. É
uma sabedoria (cf. Sl 19 e Sl 119!). Ora, um bom conselho vale mais do que
ouro. Para os teólogos que redigiram o livro do Deuteronômio (no século VIII-VI
a.C.), a Lei de Moisés era inigualável tesouro de sabedoria, um rumo seguro para
a vida, em todas as circunstâncias. Para tê-la sempre diante dos olhos, deviam
colocá-la numa faixa amarrada na testa (Dt 6,8; cf. Ex 13,9 etc.). Os
“deuteronomistas” enfrentavam um tempo de afrouxamento em Israel, mais ou menos
como nós, hoje. A quem achava difíceis as orientações de Deus, respondiam: “Não
é verdade. A Lei não é coisa do outro mundo, ninguém a precisa procurar no céu
ou no inferno, ela está perto de ti”. Dificilmente poderia estar mais perto do
que naquela faixa na testa. Mas não é só por meio dessa faixa que ela pode
estar perto. Ela é uma palavra viva, lembrada continuamente pelos próprios
profetas, que viviam no meio do povo. E em Cristo ela se torna mais próxima do
que nunca. 2.
Evangelho (Lc 10,25-37) No evangelho ouvimos o ensinamento
do grande mandamento do amor e a parábola do bom samaritano. O trecho faz parte
de um conjunto do Evangelho de Lucas (Lc 10,26-11,13) que apresenta três
exigências fundamentais do ser cristão: 1) o “grande mandamento” do amor a Deus
e ao próximo (10,25-37); 2) o “único necessário” (10,38-42); 3) a “oração por
excelência” (11,1-13). O “grande mandamento” responde à pergunta pelo caminho
da vida eterna: amar a Deus e o próximo. Defrontamo-nos com um especialista da
Lei que procurava, em meio à multidão de prescrições, saber o que devia fazer
para “herdar a vida eterna”, a vida da era vindoura, do reino que Deus
estabeleceria no mundo para sempre (pois era assim que se concebia a vida
eterna) (Lc 10,25-28; cf. Mt 22,35-40; Mc 12,28-31). Jesus o remete à Lei
ensinada por Moisés. Pergunta o que aí se encontra. O escriba responde: amar a
Deus acima de tudo (cf. Dt 6,5) e o próximo como a si mesmo (cf. Lv 19,18). “É
isso mesmo que deves fazer”, responde Jesus. Novamente: não é coisa de outro
mundo! Depois, porém, o escriba pergunta quem é seu próximo. A resposta de
Jesus revoluciona suas categorias: o próximo não é um arbitrário “objeto de
caridade”; é todo homem, desde que eu me torne próximo dele. Todos nós estamos
de acordo em que devemos amar nosso próximo. Mas quem é ele? Minha velha tia
rica, prestes a ceder sua herança, ou meu empregado, com cuja família nada
tenho que ver? Visto que argumentar não adianta, Jesus conta uma história. Um
homem cai nas mãos de ladrões. Passa um sacerdote, mas não tem tempo para
parar, pois deve celebrar um sacrifício. Passa um especialista das leis de
pureza (um levita): este tem medo de sujar as mãos com o sangue do homem que
ficou semimorto na beira da estrada. Passa, depois, um inimigo, um samaritano,
talvez um comerciante concorrente do homem que foi assaltado. E esse
samaritano, inimigo dos judeus, cuida do homem à sua própria custa. Nesse ponto
da narrativa, Jesus pergunta não quem é o próximo a quem se devem fazer obras
caritativas, mas quem é o próximo do homem que foi assaltado. A inversão da
pergunta é significativa, porque o especialista da Lei é obrigado a responder
que um vil samaritano é o próximo de um judeu assaltado. Para todos nós, isso
significa: eu sou próximo de quem encontro no meu caminho, sou chamado a ser
solidário com ele, a me tornar próximo dele. Ao analisar o texto, aparecem
detalhes mais significativos ainda. O samaritano “comiserou-se”,
“aproximou-se”: uma linguagem que poderia ser aplicada ao próprio Deus. Deus
comiserou-se do ser humano, tornou-se próximo dele e salvou-o à sua própria
custa: custou a vida de seu Filho. O próximo, “aquele que se comiserou do
homem” (Lc 10,37), é Deus mesmo. “Vai e então faze a mesma coisa”, e já não
precisarás perguntar quem é teu próximo. E terás a vida eterna, porque desde já
estarás vivendo a vida de Deus mesmo. Gostamos de escolher nossos próximos.
Está errado. Somos próximos de quem encontramos. Deus nos colocou perto deles
para os tratarmos com o mesmo amor gratuito que ele nos dedica. 3. II leitura (Cl 1,15-20) A
segunda leitura apresenta o belo hino cristológico da carta aos Colossenses.
Essa carta dá uma resposta à introdução de doutrinas falsas na comunidade.
Alguns ensinam que, além de Cristo, devem-se venerar outros seres
transcendentes, “espíritos” etc. É difícil ser livre! Por isso, Paulo realça o
lugar central exclusivo de Cristo. Ele nos redimiu, dando a sua vida até a
morte. Só compreenderemos bem isso quando formos conscientes de que Cristo é
também o criador, com o Pai. Ele assume nossa vida e nosso mundo não por fora,
mas por dentro. No íntimo do ser homem, ele vive a plenitude de ser Deus.
Quando todos chegarem a essa plenitude, a criação estará completa. Esse hino é
uma das obras-primas do Novo Testamento. A ideia principal é a unidade da ordem
da criação e da redenção, em Cristo. Ele é a cabeça da redenção, assumindo a
todos na sua glória, porque é também a cabeça da criação. O hino expressa isso
em termos que lembram fortemente o prólogo de João (Jo 1,1-18) e os textos que
falam da Sabedoria como hipóstase unida a Deus desde antes da criação do mundo
(Pr 8,22-36; Eclo 24; Sb 7). O hino combina a figura da Sabedoria que preside à
criação, identificada a Cristo, com aquela outra imagem paulina de Cristo,
cabeça da Igreja, que é seu corpo. No pensamento bíblico, todo o corpo
participa da realidade de seu princípio vital (no caso, a cabeça). No
sacrifício e na glória de Cristo, assume-se todo o universo na reconciliação
com Deus. A “plenitude” (termo helenístico-gnóstico, indicando o “uno”, ou
seja, o ser perfeito) mora nele: a plenitude de Deus, englobando todos os seus
filhos. Esse texto pode ser interpretado como elo entre as duas outras
leituras, neste sentido: o amor a Deus e a seu ensinamento (primeira leitura)
encontra sua plenitude na fé que se concentra em Cristo e sua palavra,
proclamada no evangelho. (Um texto que melhor combinaria com o tema da primeira
leitura e do evangelho seria, por exemplo, Tg 1,21-25, sobre ouvir e praticar a
palavra.)
II.
PISTAS
PARA REFLEXÃO
Amor ao próximo e solidariedade: Os
profetas de Israel teceram os mais sublimes elogios à Lei, ou melhor, ao
ensinamento (torah) de Deus. Era um caminho de vida. Mesmo assim, havia quem
achasse a Lei complicada e procurasse um resumo ou pelo menos um
mandamento-chave que, por assim dizer, a resumisse. Essa questão foi
apresentada também a Jesus, e ele deu, sem hesitar, a resposta. Menciona o
mandamento que todo judeu recita diariamente na oração do “Shemá Israel” (Dt
6,4-5) – “Amar a Deus com todas as forças” – e acrescenta: “e ao próximo como a
si mesmo” (como está em Lv 19,18.35). Esses dois mandamentos são inseparáveis,
pois o amor ao próximo é o dever número um de quem ama a Deus. Paulo (Gl 5,13)
e Tiago (Tg 2,8) resumem toda a moral cristã nesse único mandamento. João nos
diz ser impossível amar a Deus sem amar o irmão (1Jo 4,21). Não se pode amar o
Pai sem amar os filhos. Mas o que é amar? E quem são nossos próximos? Os judeus
consideravam como “próximos”, isto é, como candidatos à sua solidariedade, os
membros da comunidade judaica e os estrangeiros residentes que viviam em seu
meio (e cooperavam com eles): a esses era preciso “amá-los como a si mesmo” (Lv
19,18.35). No caso dos inimigos, sobretudo dos samaritanos, a esses não se
devia amar, pelo contrário (cf. Mt 5,43). Ora, exatamente um samaritano se
torna solidário com um judeu jogado à beira da estrada, depois que dois
ilustres “próximos” judeus, um sacerdote e um levita, deram uma volta para não
se incomodarem com o compatriota assaltado... Jesus não respondeu diretamente à
pergunta do mestre da Lei: “Quem é o meu próximo?”. Ele respondeu por meio de
uma parábola, porque a questão não é descobrir, teoricamente, quem é e quem não
é próximo. A parábola insere o ouvinte numa nova situação prática, existencial.
Coração generoso se torna próximo de qualquer um que precisa; a melhor maneira
de ter amigos é ser amigo; a melhor maneira de encontrar o próximo é tornar-se
próximo, aproximar-se. A questão não é teórica, mas prática. Ora, nós, na
prática, esquecemos a parábola de Jesus e fazemos como o sacerdote e o levita:
afastamo-nos do necessitado – mesmo se pertence à nossa comunidade! – e não
“nos aproximamos” dele. Tornar-se próximo é ser solidário. Será que somos
solidários com os que vivem na margem da estrada de nossa sociedade? Mesmo
quando damos uma esmola a um coitado, não é para nos desviarmos dele? “Vai e
faze a mesma coisa”, diz Jesus. Imitar o samaritano exige solidariedade,
assumir a vida do outro, não livrar-se dele. Torná-lo um irmão, pois esse é o
sentido verdadeiro da palavra “próximo”. Como fica essa solidariedade nesse
tempo em que a doutrina da competição, do lucro e do proveito ilimitado solapou
o tecido social, as relações de gratuidade entre as pessoas?
Pe.
Johan Konings, sj
Nascido
na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor
em Teologia e licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade
Católica de Leuven (Lovaina). Atualmente é professor de Exegese Bíblica na
Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a
partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de
Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo
João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje.
E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/14-de-julho-15o-domingo-do-tempo-comum/
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