I- VIII-REFLEXÃO DOMINICAL IIComo
assinar
9 de
março – 1º DOMINGO DA QUARESMA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
Guiados
pelo Espírito Santo ao deserto
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste 1º
domingo da Quaresma, das tentações no deserto, é momento ímpar dos exercícios
quaresmais. Muitas vezes, como Jesus Cristo, atravessamos desertos até nos
encontrarmos com oásis espirituais, sinais de ressurreição. Nesse percurso
incontornável, pela fé, somos acompanhados pelo Espírito Santo, que nos conduz
e nos ajuda, como ajudou a Cristo, a superar as tentações do prazer, do possuir
e do desejo de manipular a Deus. Em síntese, essa é a essência do Evangelho
nesta liturgia. Na primeira leitura, o credo do Deuteronômio faz o povo de Deus
recordar sua vida no deserto, como arameu errante. O Senhor liberta seu povo,
realizando um êxodo especial: a libertação da escravidão do passado. Na segunda
leitura, Paulo nos convida a renovar nossa esperança: crer, com o coração, que
somos capazes de alcançar a justiça de Deus – a salvação que esperamos pela fé.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 26,4-10)
O livro do Deuteronômio
(em grego, “Segundas leis”) simboliza um “tesouro” teológico no qual as obras
seguintes se inspiram, formando uma espécie de corrente teológica, chamada
“deuteronomista”. É o último livro da Torá, ou Pentateuco. Foi redigido,
possivelmente, no Reino do Norte (Israel), por volta do século VIII a.C. O
capítulo 26 está localizado no fim do bloco mais antigo – as memórias de Moisés
(12-26). Esse capítulo, que inspira esta liturgia, trata das primícias: assim
como os primogênitos humanos e animais pertencem a Deus (Ex 13,11), as
primícias da terra também são consagradas a ele (Ex 22,28). O capítulo reúne
uma série de recomendações: primícias, dízimo trienal e o último discurso, que
trata Israel como povo do Senhor. Corresponde à lei do santuário em seus
primórdios (26,1-14). O sacerdote é aquele que recebe a oferta das mãos de
todos os que são chamados a partilhar (v. 4).
O v. 5 destaca as
palavras ditas durante tal oferta, na presença de Deus: “Meu pai era um arameu
errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como
estrangeiro. Tornou-se um povo grande, forte e numeroso”. Trata-se de uma
anáfora (no sentido de discurso) anamnética, elencando os fatos e feitos
realizados por Deus no passado. Por “errante”, pode-se, em outros termos,
entender alguém “condenado a perecer”, como afirma Gerhard von Rad em sua obra
Deuteronomy. O autor do Deuteronômio mostra uma bela história de superação, do
punhado de gente à grande multidão, povo grande, forte e numeroso. Deus realiza
proezas na vida de sua gente, é o que o credo desse livro quer apresentar.
Na história de Israel
(v. 6-7), existem seus inimigos egípcios, que impuseram ao povo dura
escravidão. Tal padrão de opressão, pedido de ajuda e ação libertadora divina é
como um typós (imagem) do Deuteronômio (cf. Jz 3,7-11). Deus ouve seu povo, sua
angústia e opressão. Ele o libertou (v. 8), tirando-o do Egito com mão poderosa
e braço forte. Esse Deus tem características humanas (antropomorfismo), de
homem forte e valente (v. 8). Conduz seu povo (v. 9) para a terra de Canaã,
onde corre leite e mel e onde há os mais puros e saborosos alimentos. A ação
divina dá sentido à oferta dos primeiros frutos (v. 10). Deus concede ao povo
aquilo que esse mesmo povo lhe oferece. O último gesto é inclinar-se em
adoração diante do Criador, o Deus libertador.
2. II leitura (Rm 10,8-13)
Essa passagem de
Romanos, se comparada à primeira leitura, pode ser considerada um credo
cristão, um testamento para a fé. Seu ponto alto se encontra no v. 11:
“Todo aquele que nele crer não ficará confundido”. Antes, no v. 8, escutamos
que “a palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração”. A palavra nos
sustenta na fé e, se por ela proclamarmos que Cristo ressuscitou, por ela
seremos salvos (v. 9). “Confessar”, para Paulo, significa permanecer
continuamente vinculado a Cristo; não se trata de uma confissão de fé pontual,
do passado, mas presente e permanente, experimentada em nossas atitudes, que
corroboram nossa fé: ela parte do coração (v. 10).
Crer com o coração é
essencial para um judeu: o coração tem razões desconhecidas pela própria razão
(Blaise Pascal). A fé que nos foi revelada pelos antepassados serve de
testemunho para nós hoje. Entretanto, fazemos nós mesmos uma experiência
particular, realizando nossa própria adesão a Cristo. Esse movimento de fé é
chamado de “concordar”; ou seja, com o nosso coração estamos ligados a alguém –
no caso, a Jesus Cristo. Para Paulo, não há distinção entre judeu ou grego (v.
12), quando todos temos Cristo como Senhor (Kyrios). Por fim, ressaltamos
no v. 13 a teologia judaica do nome (Shem): se cremos no nome, que
necessariamente não precisamos pronunciar por respeito e desnecessária
tentativa de “possuí-lo”, seremos salvos, isto é, justificados.
3. Evangelho (Lc 4,1-13)
O 1º domingo da Quaresma
apresenta aos cristãos as tentações de Jesus. Desde que assumiu a condição
humana, Cristo “foi tentado em todas as formas, à nossa semelhança, menos o
pecado” (Hb 4,15). No primeiro Evangelho escrito – São Marcos –, Jesus foi
tentado todo o tempo, durante os quarenta dias e noites, o que alude à sua vida
total, na qual perpassam inúmeras tentações. Lucas e Mateus, porém, distinguem-se
de Marcos, narrando três tentações diferentes, ligadas à experiência
existencial vivida por Jesus. Esses dois sinóticos diferem na ordem das duas
últimas tentações, um detalhe que aqui ressaltamos, mesmo que en passant.
Lucas inicia a narrativa
do deserto dizendo que Jesus, cheio do Espírito Santo, era guiado por ele pelo
deserto (v. 1-2). A pneumatologia (compreensão sobre o Espírito Santo) dessa
cena nos faz recordar que Maria concebeu e deu à luz Jesus por força misteriosa
do Espírito, que desceu sobre ela com sua sombra (Lc 1,35). Em Pentecostes (At
2,4), o Espírito Santo desce sobre os apóstolos, que, a partir de então, vão
proclamar o Evangelho a todos os povos. Essa pneumatologia acentua que Jesus e
a Igreja são guiados e fortalecidos pelo Espírito.
A primeira tentação está
ligada ao prazer de colocar os bens terrenos acima dos valores do Reino,
servindo-se daquilo que é passageiro em detrimento do que é eterno. Transformar
pedra em pão (v. 3) seria ceder ao desejo do não sofrimento, de livrar-se do
incômodo de passar pela situação que muitos pobres passam. Quando se desconfia
do amor providente de Deus, há o apego às riquezas deste mundo. É importante
lembrar que as ameaças, como um contraditório às bem-aventuranças em Lucas
(6,24-26), condenarão os ricos que já têm nesta vida a consolação. “Transformar
pedra em pão” é cair na tentação de obter tudo de forma fácil, sem o suor do
trabalho, sem justiça social, sem distribuição de renda e sem políticas
públicas que priorizem a vida, e não o capital. Jesus mesmo tem o caminho: “nem
só de pão vive o homem” (v. 4).
A segunda tentação (v.
5-7) serve para pensar que todo poder usurpado não visa ao bem comum, mas à
satisfação da vaidade e do ego humano. Adorar o diabo é condição de
possibilidade para adquirir toda honraria sem sensatez, atropelando os
processos orgânicos da ética, na busca da “vantagem em tudo”. A expressão “eu
te darei todo este poder com a glória destes reinos...” corresponde à sedução
da facilidade para adquirir os bens que se deseja. “Por isso, se te prostrares
diante de mim...” corresponde, por sua vez, à idolatria, uma típica forma de
Israel se relacionar com os Baalim (plural de Baal – “senhor” ou “marido”),
deuses cananeus da fertilidade, responsáveis pelas chuvas e boas safras. Essa
idolatria impactava a ética, o modo de agir das pessoas, denotando uma fé
superficial ou nula. Jesus responde a tal sedução diabólica, dizendo: “Adorarás
ao Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto”, recordando Dt 6,13, no qual o
verbo é “temerás” no lugar de “prestarás”.
A terceira tentação (v.
9-12) está associada à religião, pois se passa no pináculo do templo, no
coração do judaísmo contemporâneo a Jesus. O tentador diz a Jesus que se jogue
do alto, utilizando o Sl 90,11-12, que traduz a ordem de Deus a seus anjos para
que guardem Jesus na queda. Trata-se de visão distorcida desses versículos. É a
visão de um Deus mágico, que, tal como um aplicativo de celular, está on-line
ou não para executar uma função necessária, urgente: salvar obrigatoriamente
uma pessoa do perigo a que ela mesma se expôs. Para vencer a tentação de tentar
o próprio Deus, Jesus utiliza-se de Dt 6,16: “Foi dito, ‘não tentarás ao
Senhor, teu Deus’”. Para o Filho de Deus, vencer as ciladas do maligno é
possível em razão de sua íntima relação com o Pai. É a relação de confiança
filial que serve de base para o “sim” constante de Jesus.
O Evangelho tem seu
encerramento com o v. 13: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de
Jesus, para retornar no tempo oportuno”. Assim como ocorreu nesse primeiro
momento, posteriormente o diabo não terá vez com o Senhor. Cristo não reproduz,
em sua permanência no deserto, aquilo que viveram seus antepassados (Ex 32),
cuja adoração ao bezerro de ouro os levou à morte. O bezerro ou boi eram símbolos
da força e da fertilidade no Egito. O culto desse deus egípcio estava ligado à
licenciosidade, ou seja, ao não apreço ao cumprimento da Lei de Deus, à sua
Palavra. Jesus, ao contrário de seus antepassados, é fiel ao Pai. Sua oração, o
pai-nosso, testemunha seu cumprimento da vontade de Deus (Mt 6,10).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Somos convidados, neste
domingo, a acompanhar Jesus pelo deserto e a suplicar ao Espírito Santo que nos
guie e acompanhe nesta travessia quaresmal. A Quaresma é tempo de arrependimento
e conversão, de oração e penitência. Deve-se fomentar na comunidade dos fiéis
um espírito solidário pela fé. Crer em Cristo é condição para a salvação, mas
agir conforme cremos constitui o testemunho autêntico. Despertar no coração de
nossos fiéis a adesão à Campanha da Fraternidade, no cuidado com a Casa Comum,
a Terra, em busca da ecologia integral.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é
presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região
Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu
doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na
Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é
professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado
Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve
pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia
pastoral. E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/9-de-marco-1o-domingo-da-quaresma-2/
Nenhum comentário:
Postar um comentário