sábado, 8 de março de 2025

VIII-REFLEXÃO DOMINICAL IIComo assinar 9 de março – 1º DOMINGO DA QUARESMA Por Junior Vasconcelos do Amaral* Guiados pelo Espírito Santo ao deserto

 

 

I-             VIII-REFLEXÃO DOMINICAL  IIComo assinar

9 de março – 1º DOMINGO DA QUARESMA

Por Junior Vasconcelos do Amaral*

 

Guiados pelo Espírito Santo ao deserto

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia deste 1º domingo da Quaresma, das tentações no deserto, é momento ímpar dos exercícios quaresmais. Muitas vezes, como Jesus Cristo, atravessamos desertos até nos encontrarmos com oásis espirituais, sinais de ressurreição. Nesse percurso incontornável, pela fé, somos acompanhados pelo Espírito Santo, que nos conduz e nos ajuda, como ajudou a Cristo, a superar as tentações do prazer, do possuir e do desejo de manipular a Deus. Em síntese, essa é a essência do Evangelho nesta liturgia. Na primeira leitura, o credo do Deuteronômio faz o povo de Deus recordar sua vida no deserto, como arameu errante. O Senhor liberta seu povo, realizando um êxodo especial: a libertação da escravidão do passado. Na segunda leitura, Paulo nos convida a renovar nossa esperança: crer, com o coração, que somos capazes de alcançar a justiça de Deus – a salvação que esperamos pela fé.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Dt 26,4-10)

O livro do Deuteronômio (em grego, “Segundas leis”) simboliza um “tesouro” teológico no qual as obras seguintes se inspiram, formando uma espécie de corrente teológica, chamada “deuteronomista”. É o último livro da Torá, ou Pentateuco. Foi redigido, possivelmente, no Reino do Norte (Israel), por volta do século VIII a.C. O capítulo 26 está localizado no fim do bloco mais antigo – as memórias de Moisés (12-26). Esse capítulo, que inspira esta liturgia, trata das primícias: assim como os primogênitos humanos e animais pertencem a Deus (Ex 13,11), as primícias da terra também são consagradas a ele (Ex 22,28). O capítulo reúne uma série de recomendações: primícias, dízimo trienal e o último discurso, que trata Israel como povo do Senhor. Corresponde à lei do santuário em seus primórdios (26,1-14). O sacerdote é aquele que recebe a oferta das mãos de todos os que são chamados a partilhar (v. 4).

O v. 5 destaca as palavras ditas durante tal oferta, na presença de Deus: “Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Tornou-se um povo grande, forte e numeroso”. Trata-se de uma anáfora (no sentido de discurso) anamnética, elencando os fatos e feitos realizados por Deus no passado. Por “errante”, pode-se, em outros termos, entender alguém “condenado a perecer”, como afirma Gerhard von Rad em sua obra Deuteronomy. O autor do Deuteronômio mostra uma bela história de superação, do punhado de gente à grande multidão, povo grande, forte e numeroso. Deus realiza proezas na vida de sua gente, é o que o credo desse livro quer apresentar.

Na história de Israel (v. 6-7), existem seus inimigos egípcios, que impuseram ao povo dura escravidão. Tal padrão de opressão, pedido de ajuda e ação libertadora divina é como um typós (imagem) do Deuteronômio (cf. Jz 3,7-11). Deus ouve seu povo, sua angústia e opressão. Ele o libertou (v. 8), tirando-o do Egito com mão poderosa e braço forte. Esse Deus tem características humanas (antropomorfismo), de homem forte e valente (v. 8). Conduz seu povo (v. 9) para a terra de Canaã, onde corre leite e mel e onde há os mais puros e saborosos alimentos. A ação divina dá sentido à oferta dos primeiros frutos (v. 10). Deus concede ao povo aquilo que esse mesmo povo lhe oferece. O último gesto é inclinar-se em adoração diante do Criador, o Deus libertador.

2. II leitura (Rm 10,8-13)

Essa passagem de Romanos, se comparada à primeira leitura, pode ser considerada um credo cristão, um testamento para a fé. Seu ponto alto se encontra  no v. 11: “Todo aquele que nele crer não ficará confundido”. Antes, no v. 8, escutamos que “a palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração”. A palavra nos sustenta na fé e, se por ela proclamarmos que Cristo ressuscitou, por ela seremos salvos (v. 9). “Confessar”, para Paulo, significa permanecer continuamente vinculado a Cristo; não se trata de uma confissão de fé pontual, do passado, mas presente e permanente, experimentada em nossas atitudes, que corroboram nossa fé: ela parte do coração (v. 10).

Crer com o coração é essencial para um judeu: o coração tem razões desconhecidas pela própria razão (Blaise Pascal). A fé que nos foi revelada pelos antepassados serve de testemunho para nós hoje. Entretanto, fazemos nós mesmos uma experiência particular, realizando nossa própria adesão a Cristo. Esse movimento de fé é chamado de “concordar”; ou seja, com o nosso coração estamos ligados a alguém – no caso, a Jesus Cristo. Para Paulo, não há distinção entre judeu ou grego (v. 12), quando todos temos Cristo como Senhor (Kyrios). Por fim, ressaltamos  no v. 13 a teologia judaica do nome (Shem): se cremos no nome, que necessariamente não precisamos pronunciar por respeito e desnecessária tentativa de “possuí-lo”, seremos salvos, isto é, justificados.

3. Evangelho (Lc 4,1-13)

O 1º domingo da Quaresma apresenta aos cristãos as tentações de Jesus. Desde que assumiu a condição humana, Cristo “foi tentado em todas as formas, à nossa semelhança, menos o pecado” (Hb 4,15). No primeiro Evangelho escrito – São Marcos –, Jesus foi tentado todo o tempo, durante os quarenta dias e noites, o que alude à sua vida total, na qual perpassam inúmeras tentações. Lucas e Mateus, porém, distinguem-se de Marcos, narrando três tentações diferentes, ligadas à experiência existencial vivida por Jesus. Esses dois sinóticos diferem na ordem das duas últimas tentações, um detalhe que aqui ressaltamos, mesmo que en passant.

Lucas inicia a narrativa do deserto dizendo que Jesus, cheio do Espírito Santo, era guiado por ele pelo deserto (v. 1-2). A pneumatologia (compreensão sobre o Espírito Santo) dessa cena nos faz recordar que Maria concebeu e deu à luz Jesus por força misteriosa do Espírito, que desceu sobre ela com sua sombra (Lc 1,35). Em Pentecostes (At 2,4), o Espírito Santo desce sobre os apóstolos, que, a partir de então, vão proclamar o Evangelho a todos os povos. Essa pneumatologia acentua que Jesus e a Igreja são guiados e fortalecidos pelo Espírito.

A primeira tentação está ligada ao prazer de colocar os bens terrenos acima dos valores do Reino, servindo-se daquilo que é passageiro em detrimento do que é eterno. Transformar pedra em pão (v. 3) seria ceder ao desejo do não sofrimento, de livrar-se do incômodo de passar pela situação que muitos pobres passam. Quando se desconfia do amor providente de Deus, há o apego às riquezas deste mundo. É importante lembrar que as ameaças, como um contraditório às bem-aventuranças em Lucas (6,24-26), condenarão os ricos que já têm nesta vida a consolação. “Transformar pedra em pão” é cair na tentação de obter tudo de forma fácil, sem o suor do trabalho, sem justiça social, sem distribuição de renda e sem políticas públicas que priorizem a vida, e não o capital. Jesus mesmo tem o caminho: “nem só de pão vive o homem” (v. 4).

A segunda tentação (v. 5-7) serve para pensar que todo poder usurpado não visa ao bem comum, mas à satisfação da vaidade e do ego humano. Adorar o diabo é condição de possibilidade para adquirir toda honraria sem sensatez, atropelando os processos orgânicos da ética, na busca da “vantagem em tudo”. A expressão “eu te darei todo este poder com a glória destes reinos...” corresponde à sedução da facilidade para adquirir os bens que se deseja. “Por isso, se te prostrares diante de mim...” corresponde, por sua vez, à idolatria, uma típica forma de Israel se relacionar com os Baalim (plural de Baal – “senhor” ou “marido”), deuses cananeus da fertilidade, responsáveis pelas chuvas e boas safras. Essa idolatria impactava a ética, o modo de agir das pessoas, denotando uma fé superficial ou nula. Jesus responde a tal sedução diabólica, dizendo: “Adorarás ao Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto”, recordando Dt 6,13, no qual o verbo é “temerás” no lugar de “prestarás”.

A terceira tentação (v. 9-12) está associada à religião, pois se passa no pináculo do templo, no coração do judaísmo contemporâneo a Jesus. O tentador diz a Jesus que se jogue do alto, utilizando o Sl 90,11-12, que traduz a ordem de Deus a seus anjos para que guardem Jesus na queda. Trata-se de visão distorcida desses versículos. É a visão de um Deus mágico, que, tal como um aplicativo de celular, está on-line ou não para executar uma função necessária, urgente: salvar obrigatoriamente uma pessoa do perigo a que ela mesma se expôs. Para vencer a tentação de tentar o próprio Deus, Jesus utiliza-se de Dt 6,16: “Foi dito, ‘não tentarás ao Senhor, teu Deus’”. Para o Filho de Deus, vencer as ciladas do maligno é possível em razão de sua íntima relação com o Pai. É a relação de confiança filial que serve de base para o “sim” constante de Jesus.

O Evangelho tem seu encerramento com o v. 13: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno”. Assim como ocorreu nesse primeiro momento, posteriormente o diabo não terá vez com o Senhor. Cristo não reproduz, em sua permanência no deserto, aquilo que viveram seus antepassados (Ex 32), cuja adoração ao bezerro de ouro os levou à morte. O bezerro ou boi eram símbolos da força e da fertilidade no Egito. O culto desse deus egípcio estava ligado à licenciosidade, ou seja, ao não apreço ao cumprimento da Lei de Deus, à sua Palavra. Jesus, ao contrário de seus antepassados, é fiel ao Pai. Sua oração, o pai-nosso, testemunha seu cumprimento da vontade de Deus (Mt 6,10).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Somos convidados, neste domingo, a acompanhar Jesus pelo deserto e a suplicar ao Espírito Santo que nos guie e acompanhe nesta travessia quaresmal. A Quaresma é tempo de arrependimento e conversão, de oração e penitência. Deve-se fomentar na comunidade dos fiéis um espírito solidário pela fé. Crer em Cristo é condição para a salvação, mas agir conforme cremos constitui o testemunho autêntico. Despertar no coração de nossos fiéis a adesão à Campanha da Fraternidade, no cuidado com a Casa Comum, a Terra, em busca da ecologia integral.

Junior Vasconcelos do Amaral*

 

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br

https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/9-de-marco-1o-domingo-da-quaresma-2/

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