Vlll- REFLEXÃO DOMINICAL III
14 de setembro –
EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ
Por Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
Na cruz, a
redenção e a vida em plenitude
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A cruz era uma forma de
tortura e de execução da pena de morte. Ela servia para aterrorizar possíveis
inimigos políticos do império romano. Os crucificados podiam agonizar
lentamente durante dias, em completa nudez e à vista de todos. Não tinham
direito aos ritos funerários nem ao sepultamento, algo fundamental na
Antiguidade, de modo que os cadáveres apodreciam suspensos na cruz. Essa
situação era compreendida como exílio do espírito impedido de se reunir aos
seus antepassados, como se acreditava acontecer aos mortos (cf. Gn 15,15). Para
os judeus, a cruz não era apenas humilhação e tortura, mas maldição (Dt
21,22-23).
É necessário se
perguntar como um instrumento de tortura, de morte cruel e de maldição pôde se
converter em símbolo para o seguimento de Jesus (Mt 10,38). Essa mudança
radical no significado da cruz, que de símbolo de maldição se transformou em
sinal de salvação, somente foi possível porque a cruz se tornou o modo concreto
de Jesus demonstrar com que intensidade Deus amou o mundo (Jo 3,16).
Em vez da tirania e da
opressão de uns sobre os outros, a vitória da cruz não é outra senão aquela do
amor sobre o ódio, do perdão sobre a vingança, do abaixamento e do serviço (Fl
2,7-8). A atitude de Jesus na cruz é contrária à atitude do império romano e dos
demais condenados por rebelião contra o dominador político. Estes estavam
dominados pelo ódio; aquele, pelo amor ao extremo.
A fidelidade de Jesus ao Pai e seu ato de confiança ilimitada no
Deus de Israel superam toda rebeldia e orgulho da criatura na tentativa de
suplantar o Criador. Na cruz se mostra a fidelidade e o amor de Deus ao ser
humano, de modo que nem mesmo a morte terrível de seu Filho amado impediu a
efetivação desse amor. Na cruz também se mostra até que ponto o ser humano pode
manter-se fiel a Deus e ao projeto salvífico. Jesus suspenso na cruz é, ao
mesmo tempo, o sinal do amor extremo de Deus pela humanidade e do amor humano
na fidelidade a Deus. Eis a vitória da cruz.
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
I leitura (Nm 21,4b-9): Vislumbravam um sinal de salvação
Os estudiosos consideram
esse relato como tentativa de explicar a presença de uma serpente de bronze que
tinha se tornado objeto de culto no templo de Jerusalém, até a época da reforma
religiosa efetivada pelo rei Ezequias (cf. 2Rs 18,4).
Em várias civilizações
antigas, a serpente era adorada como símbolo da vida, da fecundidade (Canaã) e
da sabedoria (Egito). Recentes escavações arqueológicas (no vale de Timna,
Israel) encontraram um templo, datado do século XIII a.C. e dedicado ao deus
egípcio Hathor, em cujo recinto principal havia uma serpente de cobre de 12 cm.
A influência dos povos vizinhos pode ter motivado os hebreus a usar uma imagem
de serpente para curar picadas de cobra ou, tomada como amuleto, para se
proteger das serpentes do deserto durante uma travessia por lugares perigosos.
Com o objetivo de
combater os cultos idólatras e apoiar a reforma de Ezequias, o autor do texto
bíblico atribuiu a Deus a permissão para o uso da serpente de bronze durante a
estadia dos hebreus no deserto, sob o comando de Moisés, narrando primeiramente
as causas desse fato.
Os redimidos da
escravidão do Egito, durante a peregrinação no deserto, ficaram impacientes por
causa da rota difícil e indireta para a terra da promessa. Outra vez faltou pão
e água e os hebreus novamente murmuraram (cf. Nm 11; Ex 16), sentindo-se
enfastiados com o maná, descrito como alimento miserável (v. 5). Os hebreus
estavam descontentes com o que Deus havia feito por eles, levando-os para o
deserto, e, além disso, estavam desconfiados do que ele faria. Por isso se
rebelaram e, como consequência, foram mordidos por serpentes ardentes. Por
causa dessa vinculação entre rebeldia e serpentes, os sábios judeus uniram esse
episódio à queda de Adão.
Os hebreus se
arrependeram e clamaram ao Senhor, que ordenou a Moisés o uso da serpente de
bronze para que fossem curados. Naquela época, era senso comum representar numa
imagem o causador de um dano, para que pudesse ser conjurado. Acreditava-se
que, ao tê-lo em imagem diante dos olhos, o ser humano poderia controlá-lo. Por
isso, o autor bíblico esclarece que não era a serpente de bronze que curava,
pois o ato de clamarem a Deus e de seguirem as instruções divinas demonstrava
que tinham fé na palavra e na providência do Senhor.
O eixo no qual o
episódio se move é a confissão dos pecados (“todos pecamos!”, v. 7) e a
resposta misericordiosa do próprio Deus, que lhes dá cura, salvando-os da morte
mediante um símbolo (cf. Sb 16,5-14) que prefigurava o Redentor definitivo do
pecado e da morte, Jesus Cristo.
2. Evangelho (Jo 3,13-17): “Para que o mundo fosse salvo por
ele” (v. 17)
Por causa de sua
rebelião contra Deus, os hebreus foram mordidos por serpentes e curados ao
fixar o olhar na serpente de bronze. Esse episódio é citado por Jesus para
mostrar o paradoxo da cruz: sinal de nossa rebelião contra Deus e de nossa
salvação por causa do amor de Deus para conosco.
Em ambos os casos, no
tempo de Moisés e no tempo de Jesus, o ser humano está sob uma sentença de
morte como consequência do pecado (transgressão da Lei) e Deus, juiz
misericordioso, provê o meio de libertação dessa sentença para que o ser humano
receba a vida e não a morte. Deus não nos trata conforme nossos pecados nos
fazem merecedores.
Ao relacionar o ato de Moisés com o seu, pelo qual oferta a vida
na cruz, Jesus não estabelece comparação entre si próprio e a serpente, mas
ressalta a libertação que se realizou em ambas as situações por meio de
uma elevação. No
Evangelho de João, o termo elevação alude
tanto à cruz de Cristo quanto à sua ascensão ao Pai. Significa que a exaltação
de Cristo é a condição para a introdução do ser humano na “casa do Pai” (cf.
14,2), no âmbito celeste.
A consequência dessa
elevação/ascensão é que o ser humano passa a ter a vida em Cristo. A vida
eterna se inicia já neste mundo para aquele que se decidiu por Cristo e fez
adesão da própria vida àquela oferta realizada na cruz.
Jesus, elevado na cruz, aparece vencedor da morte e doador da
vida para todos os que crêem nele e se associam à sua oferta de vida ao Pai.
Contudo, a obra de redenção realizada por Jesus é a “obra do Pai” (cf. 17,4).
Portanto, na cruz de Cristo se enfatiza a gratuidade do amor do Pai, que chega
ao extremo. É o Pai quem oferece a salvação ao ser humano; esse convite
continua aberto, esperando o “sim” de cada um, até que Cristo venha.
3. II leitura (Fl 2,6-11): “Jesus Cristo é Senhor, para glória de
Deus Pai” (v. 11)
O trecho de Fl 2,6-11 é chamado de Hino da Kénosis, termo
grego que significa “vazio”, “privar-se de poder” ou “abdicar do que possui”.
Esse vocábulo caracteriza toda a vida de Jesus, o Filho de Deus, como alguém
que não se apegou à sua condição divina ao entrar na história, mas assumiu as
limitações próprias das criaturas, até as últimas consequências, a ponto de
ficar à mercê do egoísmo e da violência humana, que o levaram à morte terrível
na cruz.
Jesus viveu a vida
humana perdendo-a, esvaziando-se, renunciando totalmente a si mesmo. Foi uma
vida desfigurada, humilhada, um modo de ser em relação ao outro, uma vida
descentrada de si e a serviço do ser humano.
E por causa da unidade
indissolúvel que vem dessa relação entre Jesus e o Pai, entre o humano e o
divino, é que esse esvaziamento de Jesus diz algo a respeito de Deus em si
mesmo. O esvaziamento de si não é apenas uma maneira de ser de Jesus, mas a
maneira de ser de Deus. O Pai de Jesus Cristo é um Deus que se rebaixa para
poder dialogar com o ser humano e tornar-se o seu parceiro nos percalços da
trajetória histórica.
Cristo esvaziou-se, sendo de condição divina, renunciou aos
privilégios dessa condição e assumiu uma existência humana como servo, morrendo
na cruz. Por isso Deus o exaltou acima de tudo, para que ele reine sobre todas
as realidades. A glorificação de Cristo será vista totalmente no último dia,
quando a obra de Deus estiver plena. Até lá, todos estão num processo rumo à
plenitude (para alcançar o Cristo). A vida de Paulo segue o exemplo de Cristo.
Os filipenses devem fazer o mesmo que Paulo, ou seja, ter os mesmos sentimentos
de Cristo (Fl 2,5), pondo a vontade de Deus em primeiro lugar, e não a busca de
privilégios.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Jesus estava disposto a
morrer, como tantos outros judeus de seu tempo, pela causa de Deus. De fato,
muitos de seus contemporâneos tomaram as armas para defender a Lei, o templo e
o povo. Jesus proclamou o Reino de Deus durante todo o seu ministério público,
mas, ao contrário de seus contemporâneos, fez isso sem o uso das armas e sem
empregar qualquer tipo de violência.
Após a crucifixão de
Jesus, seus discípulos foram chamados de cristãos e foram constituídos em
continuadores de sua obra de redenção, e não seus vingadores, como era comum
naquela época. Mas, com o passar do tempo, a Igreja esqueceu o significado da
cruz e lhe restituiu sua antiga conotação de morte e de terror. A cruz estava
nas espadas e nas bandeiras dos cruzados e em outras situações de guerra santa
em nome da fé cristã.
A instituição da
solenidade da Exaltação da Santa Cruz visava inicialmente ao propósito de
assegurar a vitória numa guerra santa em nome da fé cristã em 626 d.C., quando
o imperador bizantino Heráclio (que viveu de 575 a 641) venceu os persas.
Ao presidente da
celebração cabe a tarefa urgente de instruir a assembleia sobre o perigo de
tamanho desvio da fé cristã. Jamais qualquer elemento da fé deve servir de
motivo para a discórdia e para a violência contra quem quer que seja. Qualquer
tipo de desamor em nome da fé é não somente estranho, mas contrário à fé
cristã.
Aíla Luzia Pinheiro
Andrade, nj
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em
Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde
também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns
anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro
Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).
E-mail: aylanj@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/14-de-setembro-exaltacao-da-santa-cruz/
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