sábado, 9 de outubro de 2021

PASTORAL E APOSTOLADO


Os demônios do apostolado (I)

“Sejam advertidos, pois, os que são muito ativos, que pensam abarcar o mundo com suas pregações e obras exteriores, que fariam muito mais bem á Igreja e agradariam muito mais a Deus, sem falar no bom exemplo que dariam, se gastassem ao menos a metade deste tempo em estar com Deus em oração… Com isso, fariam mais e com menos trabalho com uma só obra do que com mil, alcançando merecimento de sua oração e recobrando forças espirituais com ela; do contrário, tudo não passa de agitação, de fazer pouco mais que nada e, às vezes, nada e, outras vezes, dano” (São João da Cruz)


Preâmbulo

Uma boa prática profissional, para que seja eficaz, humanizadora e aceitável aos seus beneficiados, requer competência científica e certos valores da parte do profissional.


Um médico deve ser competente: sem competência, ele não pode prestar um serviço à saúde e sua profissão se torna ineficiente; para ter êxito, requer também certas qualidades e atitudes de espírito: inspirar confiança, estar disponível ao enfermo, ter tino, ser confidente… Este conjunto de valores conformam o que se chamaria em linguagem cristã “a espiritualidade” de um médico.


O apostolado, a “profissão apostólica”, exige condições análogas: competência e uso de métodos pertinentes, certos conteúdos e temas que é preciso conhecer, uma mensagem adequada a transmitir… Exige, igualmente, certas atitudes, convicções e valores espirituais da parte do apóstolo. É o que propriamente constitui a “espiritualidade” de um médico.


Entretanto, o apostolado, por sua própria natureza, é diferente de qualquer outra profissão ou atividade: sua espiritualidade é essencial para sua eficácia: a atitude do apóstolo é condição necessária para o fruto de seu apostolado.


Pois, um médico competente, ainda que seja medíocre de espírito e eticamente falando, pode ter êxito e curar pacientes. Mas um apóstolo carente de espírito, normalmente não alcançará êxito decisivo e profundo, a não ser aparente. Dizemos “normalmente”, porque pode suceder que Deus, em sua bondade, faça grandes coisas através de um servidor medíocre. Na realidade, aqui o espírito é mais necessário do que a habilidade.


Por que as coisas são assim? Basicamente porque o apostolado é uma profissão de Deus feito homem, e não é uma profissão humana. Seu objeto é transmitir o caminho, a verdade e a vida de Deus e não a do ser humano. Por isso, Jesus Cristo é o único apóstolo, e os seres humanos são apóstolos na medida em que Jesus os chama para tal e lhes comunica seu poder.


Daí que o espírito e os valores do apóstolo, vêm total e unicamente de sua relação com Jesus Cristo: ele é um eleito dele, seu enviado e seu instrumento, ao mesmo tempo livre e dependente do poder apostólico de Deus. Daí nascem todas as atitudes, os valores e as convicções que configuram a espiritualidade do apostolado.


Estes valores, os encontramos em Jesus, que é sua fonte e modelo, e nos santos por imitação de Cristo. Naqueles que ainda não são santos, estes valores também estão presentes, mas mesclados com incoerências múltiplas e com tentações mais ou menos consentidas. Por isso, um bom modo de conhecer o espírito do apostolado é conhecer as incoerências e tentações a que está submetido. O espírito bom ressalta por contraste com o espírito mau, e se conhece melhor uma virtude, ao conhecer os “demônios” que a tentam.


Vejamos alguns dos “demônios” mais corriqueiros do apostolado. Para identificá-los, sirvamo-nos da experiência, vista a partir do ideal cristão do apostolado. Através das tentações, este ideal revelar-se-á a nós por contraste, como a sombra revela a luz.

 

1. O Messianismo

 

O demônio do messianismo induz o apóstolo a constituir-se no centro de toda atividade pastoral em que está engajado. É uma tentação que vai penetrando sutilmente sua vida, até levá-lo a sentir-se indispensável em tudo.


O messianismo constitui basicamente uma atitude deficiente em relação a Deus: eu sou o “piloto” e o Senhor é o “co-piloto” ajudante. Quem cai nesta tentação, não é que deixe de levar Deus em conta, de rezar e de recorrer a ele diante dos problemas, mas o faz para que Deus simplesmente lhe ajude no apostolado que ele próprio dirige e planeja. Em última análise, se busca incorporar o Senhor em nosso trabalho e não de incorporarmo-nos no trabalho de Deus, que é o específico do apostolado: Deus é o “piloto”, e eu sou o “co-piloto” ajudante. Trata-se, inconscientemente, de substituir o messianismo de Cristo, o único evangelizador, pelo nosso messianismo pessoal.


Esta atitude diante de Deus, se projeta numa atitude deficiente também para com os demais que colaboram conosco. Tornamo-nos incapazes de delegar responsabilidades ou tarefas: não confiamos verdadeiramente nas pessoas, com exceção de uns poucos, habitualmente réplica fiel de nós mesmos, acabando rodeados unicamente por eles. É uma tendência que costuma agravar-se no transcurso dos anos.


Existe sempre uma relação entre a atitude diante de Deus e a atitude frente aos outros e vice-versa. Assim, a desconfiança nos colaboradores do apostolado, reflete uma desconfiança em Deus, que é justamente o que vai implícito no demônio do messianismo. Pois, confiar realmente em Deus, supõe uma confiança prudencial nos outros. E, por sua vez, a confiança nos outros também implica Deus, pois foi ele quem os foi chamando e colocando-os como companheiros nossos de trabalho.


O messianismo tem também consequências negativas nos resultados externos do apostolado, ao menos a longo prazo, além de comprometer o fruto profundo da evangelização. Em primeiro lugar, a atitude messiânica não deixa os outros crescerem, uma vez que a expansão e maturação da obra apostólica não caminham paralelamente, como devia ser, com a maturidade e crescimento daqueles que a levam a cabo. Em segundo lugar, sucede, então,  que as iniciativas e criações do apostolado messiânico, não contribuem necessariamente para formar pessoas, nem para preparar sucessores. Normalmente, o apóstolo messiânico se identifica a tal ponto com sua obra que, quando ele desaparece ou se translada, ela se acaba: era demasiadamente pessoal e não havia substitutos preparados.


O verdadeiro apostolado que constrói o Reino de Deus a partir da Igreja ali onde ela ainda não está, contribui sempre para fazer desabrochar a própria Igreja: seus evangelizadores e comunidades. Também se aprende a ser cristão aprendendo a evangelizar, e isso não é possível sem realmente assumir responsabilidades. Um apóstolo maduro revela, entre outras coisas, que alguém confiou nele.

 

2. O Ativismo

 

O demônio do ativismo não significa ser muito ativo ou muito trabalhador, ou ter muitas ocupações e apostolados diversos. Ser ativo, apostólico, não é ser “ativista” como tentação.


O ativismo se produz na medida em que aumenta a distância e a incoerência entre o que um apóstolo faz e diz, entre o que ele é e o que ele vive como cristão. É verdade que na condição humana aceitamos como normal a inadequação entre o “ser” e o “agir” mas, no caso do ativismo, ela é acentuada e tende a crescer, não a diminuir, como seria o ideal do processo cristão.


O ativismo tem muitas expressões. Uma delas é a falta de renovação na vida pessoal do apóstolo. Neste caso, normalmente a oração é insuficiente e deficiente. Não há momentos prolongados de silêncio e retiro. Não se cultiva o estudo, apenas se lê. Nem sequer se deixa tempo para descansar o suficiente e repor-se. Paralelamente, há sobrecarga de trabalho, de atividades múltiplas, e a agenda de compromissos costuma estar cheia. O ativista dá a impressão de que é necessário, como estilo de vida, um grande volume de trabalho externo. Daí a criação de um círculo vicioso, cuja origem – excessiva atividade ou negligência em renovar-se – não é fácil identificar: por um lado está o aumento de atividades que faz cada vez mais difícil tomar as medidas de renovação interior, e que são as que conduzem ao crescimento no “ser”; por outro lado a incapacidade (que tende a crescer) de renovar-se tende a compensar-se e disfarçar-se com a entrega a um ativismo desenfreado. Em última análise, o ativismo é a desculpa do “escapismo”.


O ativismo também se exprime numa das distorções mais radicais do apostolado: colocar toda a alma nos meios de ação e de apostolado, no que se organiza e se faz, esquecendo-se de Deus, quem é, afinal de contas, por quem se faz, se organiza e se trabalha. Com isso, o apóstolo se transforma num profissional que multiplica iniciativas, habitualmente boas, não parando para discernir, para perguntar a Deus se são necessárias ou oportunas ou se é preciso fazê-las agora e desta maneira. Assim, os meios do apostolado acabam obscurecendo seu sentido e seu fim.


Outra expressão do demônio do ativismo é não trabalhar ao ritmo de Deus, substituindo-o pelo próprio ritmo. Isso ocorre quando se vai mais rápido ou mais lento do que Deus. Normalmente, o ativista, pelo menos num primeiro momento, costuma pecar por aceleração. É o resultado da desproporção, sempre existente, entre a visão e os projetos do apóstolo e a realidade das pessoas envolvidas. O normal é que um agente de pastoral tenha mais visão que sua comunidade e que seu povo, e saiba antes e melhor que eles onde e como chegar. Além disso, as pessoas não respondem ao ritmo que a gente quer, pois o ritmo do crescimento corresponde ao ritmo de Deus e não das previsões da gente. O ritmo de Deus é constante, mas de um processo lento. Os seres humanos, como as plantas e o resto da criação, não mudam e nem crescem à força, artificialmente, queimando etapas. É preciso esperar e ter paciência sem, com isso, deixar de educar, cultivar e exigir: é preciso ser como Deus, adequando-nos ao seu ritmo e forma de agir e transmitir a vida.


Pedagogicamente, esta forma de ativismo pode ser desastrosa. Ao acelerar o ritmo das pessoas e dos processos, não somente se dificulta o crescimento destas pessoas, como se pode também destruir e “queimar” muitas delas; outras se afastarão e será muito difícil recuperá­-las. Em todo caso, dado o aparente fracasso de seu projeto, o ativista, uma vez tendo experimentado o demônio da impaciência apostólica, facilmente cai na tentação do desânimo. “Aqui, com essa gente, não se pode fazer nada”. Pois, a impaciência e o desânimo são gêmeos. Ambos são filhos do orgulho, da autossuficiência, do esquecer que “tanto o que planta como o que rega não são nada, e sim Deus que faz crescer” (1 Cor 3,7).

 

3. Fazer da confiança em Deus uma farsa

 

A principal característica deste demônio do apostolado é, obviamente, esquecer que a desconfiança na gente mesmo, acompanhada por uma total confiança em Deus, é a essência da espiritualidade do apóstolo. A tentação é pôr a confiança em Deus num segundo plano, como um recurso em caso de necessidade e de emergência, esquecendo de fazê-lo presente nos apostolados ordinários e cotidianos. Ao não colocar a confiança em Deus, com toda a convicção da alma, se está pondo a confiança na gente mesmo, ainda que se diga o contrário. Quando se trata dos resultados profundos e teológicos da evangelização (o Reino da graça) e não de resultados psicológicos ou de pura influência humana, é preciso confiança absoluta no Senhor e desconfiança absoluta na gente mesmo. No apostolado, as duas confianças não podem fazer-se presentes simultaneamente: ou se confia realmente em Deus e se desconfia da gente, ou se confia na gente e se desconfia de Deus.


Desconfiança ou confiança na gente é aqui uma qualidade teológica e não psicológica. Isto é, não se trata de ser inseguro, com complexo de inferioridade, não reconhecer dons e condições humanas e de vida cristã que Deus nos deu, certamente em abundância. A confiança humana e psicológica é necessária ao apóstolo. A desconfiança de que estamos falando está num outro nível, no âmbito dos frutos do Espírito. E paradoxalmente, uma autêntica confiança no Deus do apostolado comunica ao apóstolo a confiança psicológica que lhe pode faltar diante da evidência de suas limitações humanas.


O evangelizador que colocou sua confiança nele mesmo e não no Senhor, como atitude habitual e profunda (tão profunda que muitas vezes nem percebe mais que Deus está presente, tornando-se cego em sua autossuficiência), reforça esta tentação com certos tipos de êxito proporcionados pelas suas qualidades humanas e sua influência. Ora, as atividades apostólicas seguem as leis da eficácia humana, que é sempre exitosa num primeiro momento, mas que nem sempre está ligada à graça e à obra permanente de Deus. Todos conhecemos evangelizadores inteligentes, preparados e com muitas qualidades, que exerciam grande atração e influência. Talvez por esta razão, colocavam sua confiança apostólica em si mesmos, mais do que em Deus. Evangelizadores estes, que durante alguns anos brilharam no apostolado. Eram convidados para pregar retiros e dar conferências, suscitaram vocações sacerdotais e tiveram muitos seguidores. Num determinado momento, surgiram algumas contradições e fracassos e, quase da noite para o dia, se apagaram. E mais, muitos de seus jovens seguidores, com o tempo, se distanciaram da Igreja. Os grupos e comunidades que tinham formado não perseveraram e as vocações que haviam suscitado foram se retirando do seminário… O que aconteceu? Deus deu-lhes a entender “Eu não estou contigo”. Deus deixou este apóstolo sozinho, revertendo sua promessa de “estarei convosco até o final dos tempos” (Mt 28,20). Apenas concedeu-lhe os resultados de sua autossuficiência.


O colocar a confiança primeiramente em Deus e não na gente mesmo, tem uma caricatura: recorrer à confiança de Deus nas ocasiões em que a gente não fez o que devia fazer na atividade apostólica, ou em momentos que a gente se comportou de maneira irresponsável ou não se preparou como devia. Estas confianças oportunistas são uma manipulação da verdadeira confiança em Deus. Ora, a confiança, para que seja autêntica, supõe que o apóstolo tenha se preparado e trabalhado como se tudo dependesse dele e que, uma vez feito tudo o que estava ao seu alcance, às vezes até ao heroísmo, não põe sua confiança em seu trabalho e em sua preparação, mas no poder de Deus.

 

4. Não confiar na força da verdade

 

Este demônio é uma variante da pouca confiança em Deus, ainda que seja uma tentação com características próprias.


A verdade cristã, exposta por Cristo e transmitida pelo magistério da Igreja, apresenta desafios doutrinais e morais que hoje vão na contracorrente das ideologias e dos critérios éticos das culturas dominantes e secularizadas. Verdades como a vida depois da morte, a confiança na providência amorosa de Deus, o valor positivo do sofrimento, da cruz ou da austeridade, a necessidade, às vezes, de crer ou de aceitar sem entender, assim como o valor da castidade ou da virgindade, da preservação do matrimônio ou da defesa da vida, ainda que em casos extremos, não são hoje afirmações “populares”. Inclusive para os que crêem nelas, não deixam de ser uma pedra de tropeço quando lhes afetam pessoalmente.


Ora, diante disso, todo apóstolo está exposto à tentação de vacilar, de não oferecer a verdade de Cristo tal como ela é (ainda com as necessárias considerações pedagógicas de tempo, oportunidade, etc.), supondo que ela não vai ser seguida ou aceita, ou que é inconveniente fazê-lo. É desta maneira que nas diversas formas do apostolado da palavra se passa por cima de certas verdades ou se cai na ambiguidade, confiando mais na prudência humana, que não se confunde com a conveniente pedagogia, do que na força e no poder de persuasão da própria verdade. Cai-se igualmente nesta tentação na formação de pessoas, na hora de oferecer um conselho, uma orientação, uma esperança… Em lugar das exigências e da luz do Evangelho, se oferece às pessoas mera experiência humana, conselhos “razoáveis”, privando-as da oportunidade de conhecerem progressivamente a verdade que nos faz livres.


Confiar na força do apostolado supõe para o apóstolo ter a convicção de que a verdade da fé e da moral coincide com a humanização do ser humano e seus grandes ideais. É preciso crer que na verdade está o autêntico bem das pessoas e, portanto, sua única felicidade verdadeira.

 

5. Pregar problemas e não certezas

 

Este demônio leva a confundir os distintos níveis e momentos do apostolado da palavra. Há momentos e públicos em que o que se espera é uma conversa ou uma palestra sobre alguma questão em discussão, conjecturas, opiniões e problemas de Igreja. Mas, em se tratando da catequese, da homilia, da pregação missionária, é necessário sempre transmitir a mensagem cristã, que é a mensagem de Cristo, em toda a sua integridade. Neste âmbito, as pessoas esperam receber as certezas da fé para renovar a própria vida. Elas não esperam e nem querem que seus questionamentos e perguntas lhes sejam devolvidos sem resposta. Muito menos querem que se repitam relatos de conflitos e de problemas, sem estarem iluminados com as certezas da fé. A essência da evangelização é anunciar uma mensagem e não problemas. Estes podem ser anunciados, mas só como ponto de partida. Trata-se de anunciar certezas e não conjecturas ou opiniões pessoais.


As causas desta tentação podem ser várias: uma poderia ser a falta de critério, de experiência ou de discernimento por parte do apóstolo; outra, a tendência em projetar seu estado interior. Ora, quando se vacila em relação a convicções, quando a vida cristã é mais um conjunto de problemas e de perguntas do que de certezas, a tendência é transmitir isso aos outros. O ditado antigo que diz: “a boca fala do que o coração está cheio”, se aplica ao apostolado ao pé da letra.


A comunidade cristã se edifica basicamente sobre a fé, a esperança e a caridade de seus membros. Ela não se edifica sobre as dúvidas, as confusões e as problematizações compartilhadas.

 

6. Reduzir a esperança

 

Este demônio seculariza o anúncio da esperança cristã. Ora, esta se funda nas promessas de Cristo: a ressurreição depois da morte, a vida eterna, a certeza de seu amor e de sua graça nesta vida que tornam possível o ser humano ser santo em qualquer circunstância, viver com dignidade e ser capaz de superar o mal moral e a tentação em todas as suas formas. Esta é a esperança que essencialmente alimenta o apostolado.


Neste caso, a tentação consiste em transmitir uma mensagem de esperanças humanas em detrimento da esperança cristã fundamental. O apóstolo prega e promove a confiança em relação a um futuro social e político melhor, a superação de uma enfermidade, de um problema humano ou da pobreza, ou promete ainda o êxito das libertações que a humanidade busca nos dias de hoje… Entretanto, ainda que estas esperanças humanas sejam legítimas e se deva lutar por elas, não estão garantidas por Cristo para esta terra. Não sabemos com certeza se elas se realizarão. Anunciá-las como esperança cristã seria enganar as pessoas e reduzir o Evangelho a uma mensagem de libertações humanas legítimas ou de otimismo no porvir, o que não é alheio ao apostolado, mas que não tem a certeza da esperança cristã.


Reduzir a esperança é esvaziar o anúncio da vocação do ser humano à vida eterna, à santidade, à fé e á caridade como o motor e o valor supremo das libertações humanas. É converter o apostolado em inspiração de expectativas humanas e de empenho para um mundo melhor, coisas boas e que desafiam o cristianismo, mas que não deveriam reduzir sua essência, que é a proclamação de Cristo como a verdadeira esperança do ser humano.

 

7. Perder o sentido das pessoas

 

Este demônio converte o apóstolo num executivo da pastoral. Alguns cargos e trabalhos se prestam mais a isso, mas em todo caso, o resultado, progressiva e às vezes imperceptivelmente, se dá de maneira semelhante. Isso ocorre quando o apóstolo se vai deixando absorver de tal modo pelo administrativo, o organizativo, o planejamento e a supervisão, que já não tem tempo, e sobretudo espaço psicológico, para dedicar-se às pessoas pelas quais trabalha, para dedicar-lhes o tempo necessário e para estar próximo delas.


O demônio da despersonalização do apostolado faz com que o apóstolo esteja tão dedicado aos meios de ação e de serviço, que esquece das pessoas a quem serve e em função das quais estão organizações e programas que tanto o absorvem.


Esta tentação pode tomar outras formas. Por exemplo, o apóstolo que se converte em executivo pastoral, poderá ter a tendência a dar um valor excessivo aos planos, aos programas e às linhas de ação, esquecendo-se da realidade das pessoas que devem levar a cabo tudo isso. Acaba impondo esquemas às pessoas em lugar de adaptar os esquemas e programas à realidade delas. E assim, realidade o apóstolo executivo vão se tornando cada vez mais distante.


O ponto de partida de todo apostolado são as pessoas, com suas possibilidades e seus limites, e não os esquemas, por melhores e mais ideais que sejam.

 

8. Fazer acepção de pessoas

 

Deste demônio praticamente ninguém escapa. Não é fácil tomar consciência desta tentação. Ele ataca até o apóstolo mais espiritual, não porque não saiba disso, mas por cegueira. Por isso a expulsão deste demônio implica um longo caminho de iluminação das motivações apostólicas, que como toda iluminação de motivos normalmente se faz durante a vida toda.


Habitualmente nesta tentação do apostolado (salvo que tenha caído em níveis muito baixos), as acepções e discriminações de pessoas não são motivadas por preconceitos graves: racismo, classicismo, nacionalismo, tratamento diferenciado de ricos e pobres, etc. Estes graus de discriminação normalmente não estão presentes na pastoral da Igreja, a não ser em casos extremos. O demônio da acepção de pessoas costuma apresentar-se de maneira mais sutil.


Trata-se aqui de dar mais tempo, interessar-se mais e estar mais disponível às pessoas em geral e para os membros da comunidade cristã que têm mais qualidades humanas, que são mais inteligentes, mais interessantes ou agradáveis, mais simpáticos e atraentes… Consequentemente, se deixa de modo sutil num segundo plano, os que são menos dotados, mais opacos e menos atraentes, menos inteligentes e gratificantes… Esta é a forma mais comum de acepção de pessoas no apostolado, tanto mais sutil, profunda e persistente, quanto mais inconsciente ela for.


Além disso, no apostolado, no caso da predileção pelos pobres, ela não pode restringir-se ao nível sociológico, que é sempre essencial, é verdade. Ela precisa chegar igualmente a todos os “pobres” em qualidades humanas externas, psicologicamente discriminados em atenção e acolhida. Ora, o apostolado não pode guiar-se unicamente pelo critério da eficácia, que aconselha investir preferencialmente nos mais dotados e nos líderes potenciais. Deve, igualmente, testemunhar o primado da caridade fraterna, que se revela preferencialmente com os desprezados e esquecidos.

 

(Continua no próximo Domingo...)

 

(*) Este texto é um extrato do livro do teólogo chileno Segundo GALILEA, Tentación y Discernimiento, Narcea, Madrid 1991, p. 29-67.

https://www.presbiteros.org.br/os-demonios-do-apostolado/

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