Os demônios do apostolado (I)
“Sejam advertidos, pois, os que são muito ativos, que pensam abarcar o mundo com suas pregações e obras exteriores, que fariam muito mais bem á Igreja e agradariam muito mais a Deus, sem falar no bom exemplo que dariam, se gastassem ao menos a metade deste tempo em estar com Deus em oração… Com isso, fariam mais e com menos trabalho com uma só obra do que com mil, alcançando merecimento de sua oração e recobrando forças espirituais com ela; do contrário, tudo não passa de agitação, de fazer pouco mais que nada e, às vezes, nada e, outras vezes, dano” (São João da Cruz)
Preâmbulo
Uma boa prática
profissional, para que seja eficaz, humanizadora e aceitável aos seus
beneficiados, requer competência científica e certos valores da parte do
profissional.
Um médico deve ser
competente: sem competência, ele não pode prestar um serviço à saúde e sua
profissão se torna ineficiente; para ter êxito, requer também certas qualidades
e atitudes de espírito: inspirar confiança, estar disponível ao enfermo, ter
tino, ser confidente… Este conjunto de valores conformam o que se chamaria em
linguagem cristã “a espiritualidade” de um médico.
O apostolado, a
“profissão apostólica”, exige condições análogas: competência e uso de métodos
pertinentes, certos conteúdos e temas que é preciso conhecer, uma mensagem
adequada a transmitir… Exige, igualmente, certas atitudes, convicções e valores
espirituais da parte do apóstolo. É o que propriamente constitui a
“espiritualidade” de um médico.
Entretanto, o
apostolado, por sua própria natureza, é diferente de qualquer outra profissão
ou atividade: sua espiritualidade é essencial para sua eficácia: a atitude do
apóstolo é condição necessária para o fruto de seu apostolado.
Pois, um médico competente, ainda que seja medíocre de espírito e eticamente falando, pode ter êxito e curar pacientes. Mas um apóstolo carente de espírito, normalmente não alcançará êxito decisivo e profundo, a não ser aparente. Dizemos “normalmente”, porque pode suceder que Deus, em sua bondade, faça grandes coisas através de um servidor medíocre. Na realidade, aqui o espírito é mais necessário do que a habilidade.
Por que as coisas são
assim? Basicamente porque o apostolado é uma profissão de Deus feito homem, e
não é uma profissão humana. Seu objeto é transmitir o caminho, a verdade e a vida
de Deus e não a do ser humano. Por isso, Jesus Cristo é o único apóstolo, e os
seres humanos são apóstolos na medida em que Jesus os chama para tal e lhes
comunica seu poder.
Daí que o espírito e os
valores do apóstolo, vêm total e unicamente de sua relação com Jesus Cristo:
ele é um eleito dele, seu enviado e seu instrumento, ao mesmo tempo livre e
dependente do poder apostólico de Deus. Daí nascem todas as atitudes, os
valores e as convicções que configuram a espiritualidade do apostolado.
Estes valores, os
encontramos em Jesus, que é sua fonte e modelo, e nos santos por imitação de
Cristo. Naqueles que ainda não são santos, estes valores também estão
presentes, mas mesclados com incoerências múltiplas e com tentações mais ou
menos consentidas. Por isso, um bom modo de conhecer o espírito do apostolado é
conhecer as incoerências e tentações a que está submetido. O espírito bom
ressalta por contraste com o espírito mau, e se conhece melhor uma virtude, ao
conhecer os “demônios” que a tentam.
Vejamos alguns dos
“demônios” mais corriqueiros do apostolado. Para identificá-los, sirvamo-nos da
experiência, vista a partir do ideal cristão do apostolado. Através das
tentações, este ideal revelar-se-á a nós por contraste, como a sombra revela a
luz.
1. O Messianismo
O demônio do messianismo
induz o apóstolo a constituir-se no centro de toda atividade pastoral em que
está engajado. É uma tentação que vai penetrando sutilmente sua vida, até
levá-lo a sentir-se indispensável em tudo.
O messianismo constitui
basicamente uma atitude deficiente em relação a Deus: eu sou o “piloto” e o
Senhor é o “co-piloto” ajudante. Quem cai nesta tentação, não é que deixe de
levar Deus em conta, de rezar e de recorrer a ele diante dos problemas, mas o
faz para que Deus simplesmente lhe ajude no apostolado que ele próprio dirige e
planeja. Em última análise, se busca incorporar o Senhor em nosso trabalho e
não de incorporarmo-nos no trabalho de Deus, que é o específico do apostolado:
Deus é o “piloto”, e eu sou o “co-piloto” ajudante. Trata-se,
inconscientemente, de substituir o messianismo de Cristo, o único
evangelizador, pelo nosso messianismo pessoal.
Esta atitude diante de
Deus, se projeta numa atitude deficiente também para com os demais que
colaboram conosco. Tornamo-nos incapazes de delegar responsabilidades ou
tarefas: não confiamos verdadeiramente nas pessoas, com exceção de uns poucos,
habitualmente réplica fiel de nós mesmos, acabando rodeados unicamente por
eles. É uma tendência que costuma agravar-se no transcurso dos anos.
Existe sempre uma
relação entre a atitude diante de Deus e a atitude frente aos outros e
vice-versa. Assim, a desconfiança nos colaboradores do apostolado, reflete uma
desconfiança em Deus, que é justamente o que vai implícito no demônio do
messianismo. Pois, confiar realmente em Deus, supõe uma confiança prudencial
nos outros. E, por sua vez, a confiança nos outros também implica Deus, pois
foi ele quem os foi chamando e colocando-os como companheiros nossos de
trabalho.
O messianismo tem também
consequências negativas nos resultados externos do apostolado, ao menos a longo
prazo, além de comprometer o fruto profundo da evangelização. Em primeiro
lugar, a atitude messiânica não deixa os outros crescerem, uma vez que a
expansão e maturação da obra apostólica não caminham paralelamente, como devia
ser, com a maturidade e crescimento daqueles que a levam a cabo. Em segundo
lugar, sucede, então, que as iniciativas e criações do apostolado
messiânico, não contribuem necessariamente para formar pessoas, nem para preparar
sucessores. Normalmente, o apóstolo messiânico se identifica a tal ponto com
sua obra que, quando ele desaparece ou se translada, ela se acaba: era
demasiadamente pessoal e não havia substitutos preparados.
O verdadeiro apostolado
que constrói o Reino de Deus a partir da Igreja ali onde ela ainda não está,
contribui sempre para fazer desabrochar a própria Igreja: seus evangelizadores
e comunidades. Também se aprende a ser cristão aprendendo a evangelizar, e isso
não é possível sem realmente assumir responsabilidades. Um apóstolo maduro
revela, entre outras coisas, que alguém confiou nele.
2. O Ativismo
O demônio do ativismo
não significa ser muito ativo ou muito trabalhador, ou ter muitas ocupações e
apostolados diversos. Ser ativo, apostólico, não é ser “ativista” como
tentação.
O ativismo se produz na
medida em que aumenta a distância e a incoerência entre o que um apóstolo faz e
diz, entre o que ele é e o que ele vive como cristão. É verdade que na condição
humana aceitamos como normal a inadequação entre o “ser” e o “agir” mas, no
caso do ativismo, ela é acentuada e tende a crescer, não a diminuir, como seria
o ideal do processo cristão.
O ativismo tem muitas
expressões. Uma delas é a falta de renovação na vida pessoal do apóstolo. Neste
caso, normalmente a oração é insuficiente e deficiente. Não há momentos
prolongados de silêncio e retiro. Não se cultiva o estudo, apenas se lê. Nem
sequer se deixa tempo para descansar o suficiente e repor-se. Paralelamente, há
sobrecarga de trabalho, de atividades múltiplas, e a agenda de compromissos
costuma estar cheia. O ativista dá a impressão de que é necessário, como estilo
de vida, um grande volume de trabalho externo. Daí a criação de um círculo
vicioso, cuja origem – excessiva atividade ou negligência em renovar-se – não é
fácil identificar: por um lado está o aumento de atividades que faz cada vez
mais difícil tomar as medidas de renovação interior, e que são as que conduzem
ao crescimento no “ser”; por outro lado a incapacidade (que tende a crescer) de
renovar-se tende a compensar-se e disfarçar-se com a entrega a um ativismo
desenfreado. Em última análise, o ativismo é a desculpa do “escapismo”.
O ativismo também se
exprime numa das distorções mais radicais do apostolado: colocar toda a alma
nos meios de ação e de apostolado, no que se organiza e se faz, esquecendo-se
de Deus, quem é, afinal de contas, por quem se faz, se organiza e se trabalha.
Com isso, o apóstolo se transforma num profissional que multiplica iniciativas,
habitualmente boas, não parando para discernir, para perguntar a Deus se são
necessárias ou oportunas ou se é preciso fazê-las agora e desta maneira. Assim,
os meios do apostolado acabam obscurecendo seu sentido e seu fim.
Outra expressão do
demônio do ativismo é não trabalhar ao ritmo de Deus, substituindo-o pelo
próprio ritmo. Isso ocorre quando se vai mais rápido ou mais lento do que Deus.
Normalmente, o ativista, pelo menos num primeiro momento, costuma pecar por
aceleração. É o resultado da desproporção, sempre existente, entre a visão e os
projetos do apóstolo e a realidade das pessoas envolvidas. O normal é que um
agente de pastoral tenha mais visão que sua comunidade e que seu povo, e saiba
antes e melhor que eles onde e como chegar. Além disso, as pessoas não
respondem ao ritmo que a gente quer, pois o ritmo do crescimento corresponde ao
ritmo de Deus e não das previsões da gente. O ritmo de Deus é constante, mas de
um processo lento. Os seres humanos, como as plantas e o resto da criação, não
mudam e nem crescem à força, artificialmente, queimando etapas. É preciso
esperar e ter paciência sem, com isso, deixar de educar, cultivar e exigir: é
preciso ser como Deus, adequando-nos ao seu ritmo e forma de agir e transmitir
a vida.
Pedagogicamente, esta
forma de ativismo pode ser desastrosa. Ao acelerar o ritmo das pessoas e dos
processos, não somente se dificulta o crescimento destas pessoas, como se pode
também destruir e “queimar” muitas delas; outras se afastarão e será muito
difícil recuperá-las. Em todo caso, dado o aparente fracasso de seu projeto, o
ativista, uma vez tendo experimentado o demônio da impaciência apostólica,
facilmente cai na tentação do desânimo. “Aqui, com essa gente, não se pode
fazer nada”. Pois, a impaciência e o desânimo são gêmeos. Ambos são filhos do
orgulho, da autossuficiência, do esquecer que “tanto o que planta como o que
rega não são nada, e sim Deus que faz crescer” (1 Cor 3,7).
3. Fazer da confiança em Deus
uma farsa
A principal
característica deste demônio do apostolado é, obviamente, esquecer que a
desconfiança na gente mesmo, acompanhada por uma total confiança em Deus, é a
essência da espiritualidade do apóstolo. A tentação é pôr a confiança em Deus
num segundo plano, como um recurso em caso de necessidade e de emergência,
esquecendo de fazê-lo presente nos apostolados ordinários e cotidianos. Ao não
colocar a confiança em Deus, com toda a convicção da alma, se está pondo a
confiança na gente mesmo, ainda que se diga o contrário. Quando se trata dos
resultados profundos e teológicos da evangelização (o Reino da graça) e não de
resultados psicológicos ou de pura influência humana, é preciso confiança
absoluta no Senhor e desconfiança absoluta na gente mesmo. No apostolado, as
duas confianças não podem fazer-se presentes simultaneamente: ou se confia realmente
em Deus e se desconfia da gente, ou se confia na gente e se desconfia de Deus.
Desconfiança ou
confiança na gente é aqui uma qualidade teológica e não psicológica. Isto é,
não se trata de ser inseguro, com complexo de inferioridade, não reconhecer
dons e condições humanas e de vida cristã que Deus nos deu, certamente em
abundância. A confiança humana e psicológica é necessária ao apóstolo. A
desconfiança de que estamos falando está num outro nível, no âmbito dos frutos
do Espírito. E paradoxalmente, uma autêntica confiança no Deus do apostolado
comunica ao apóstolo a confiança psicológica que lhe pode faltar diante da
evidência de suas limitações humanas.
O evangelizador que
colocou sua confiança nele mesmo e não no Senhor, como atitude habitual e profunda
(tão profunda que muitas vezes nem percebe mais que Deus está presente,
tornando-se cego em sua autossuficiência), reforça esta tentação com certos
tipos de êxito proporcionados pelas suas qualidades humanas e sua influência.
Ora, as atividades apostólicas seguem as leis da eficácia humana, que é sempre
exitosa num primeiro momento, mas que nem sempre está ligada à graça e à obra
permanente de Deus. Todos conhecemos evangelizadores inteligentes, preparados e
com muitas qualidades, que exerciam grande atração e influência. Talvez por
esta razão, colocavam sua confiança apostólica em si mesmos, mais do que em
Deus. Evangelizadores estes, que durante alguns anos brilharam no apostolado.
Eram convidados para pregar retiros e dar conferências, suscitaram vocações
sacerdotais e tiveram muitos seguidores. Num determinado momento, surgiram
algumas contradições e fracassos e, quase da noite para o dia, se apagaram. E
mais, muitos de seus jovens seguidores, com o tempo, se distanciaram da Igreja.
Os grupos e comunidades que tinham formado não perseveraram e as vocações que
haviam suscitado foram se retirando do seminário… O que aconteceu? Deus
deu-lhes a entender “Eu não estou contigo”. Deus deixou este apóstolo sozinho,
revertendo sua promessa de “estarei convosco até o final dos tempos” (Mt
28,20). Apenas concedeu-lhe os resultados de sua autossuficiência.
O colocar a confiança
primeiramente em Deus e não na gente mesmo, tem uma caricatura: recorrer à
confiança de Deus nas ocasiões em que a gente não fez o que devia fazer na
atividade apostólica, ou em momentos que a gente se comportou de maneira
irresponsável ou não se preparou como devia. Estas confianças oportunistas são
uma manipulação da verdadeira confiança em Deus. Ora, a confiança, para que
seja autêntica, supõe que o apóstolo tenha se preparado e trabalhado como se
tudo dependesse dele e que, uma vez feito tudo o que estava ao seu alcance, às
vezes até ao heroísmo, não põe sua confiança em seu trabalho e em sua
preparação, mas no poder de Deus.
4. Não confiar na força da
verdade
Este demônio é uma
variante da pouca confiança em Deus, ainda que seja uma tentação com
características próprias.
A verdade cristã,
exposta por Cristo e transmitida pelo magistério da Igreja, apresenta desafios
doutrinais e morais que hoje vão na contracorrente das ideologias e dos
critérios éticos das culturas dominantes e secularizadas. Verdades como a vida
depois da morte, a confiança na providência amorosa de Deus, o valor positivo
do sofrimento, da cruz ou da austeridade, a necessidade, às vezes, de crer ou
de aceitar sem entender, assim como o valor da castidade ou da virgindade, da
preservação do matrimônio ou da defesa da vida, ainda que em casos extremos,
não são hoje afirmações “populares”. Inclusive para os que crêem nelas, não
deixam de ser uma pedra de tropeço quando lhes afetam pessoalmente.
Ora, diante disso, todo
apóstolo está exposto à tentação de vacilar, de não oferecer a verdade de
Cristo tal como ela é (ainda com as necessárias considerações pedagógicas de
tempo, oportunidade, etc.), supondo que ela não vai ser seguida ou aceita, ou
que é inconveniente fazê-lo. É desta maneira que nas diversas formas do
apostolado da palavra se passa por cima de certas verdades ou se cai na ambiguidade,
confiando mais na prudência humana, que não se confunde com a conveniente
pedagogia, do que na força e no poder de persuasão da própria verdade. Cai-se
igualmente nesta tentação na formação de pessoas, na hora de oferecer um
conselho, uma orientação, uma esperança… Em lugar das exigências e da luz do
Evangelho, se oferece às pessoas mera experiência humana, conselhos
“razoáveis”, privando-as da oportunidade de conhecerem progressivamente a
verdade que nos faz livres.
Confiar na força do
apostolado supõe para o apóstolo ter a convicção de que a verdade da fé e da
moral coincide com a humanização do ser humano e seus grandes ideais. É preciso
crer que na verdade está o autêntico bem das pessoas e, portanto, sua única
felicidade verdadeira.
5. Pregar problemas e não
certezas
Este demônio leva a
confundir os distintos níveis e momentos do apostolado da palavra. Há momentos
e públicos em que o que se espera é uma conversa ou uma palestra sobre alguma
questão em discussão, conjecturas, opiniões e problemas de Igreja. Mas, em se
tratando da catequese, da homilia, da pregação missionária, é necessário sempre
transmitir a mensagem cristã, que é a mensagem de Cristo, em toda a sua
integridade. Neste âmbito, as pessoas esperam receber as certezas da fé para
renovar a própria vida. Elas não esperam e nem querem que seus questionamentos
e perguntas lhes sejam devolvidos sem resposta. Muito menos querem que se
repitam relatos de conflitos e de problemas, sem estarem iluminados com as
certezas da fé. A essência da evangelização é anunciar uma mensagem e não
problemas. Estes podem ser anunciados, mas só como ponto de partida. Trata-se
de anunciar certezas e não conjecturas ou opiniões pessoais.
As causas desta tentação
podem ser várias: uma poderia ser a falta de critério, de experiência ou de
discernimento por parte do apóstolo; outra, a tendência em projetar seu estado
interior. Ora, quando se vacila em relação a convicções, quando a vida cristã é
mais um conjunto de problemas e de perguntas do que de certezas, a tendência é
transmitir isso aos outros. O ditado antigo que diz: “a boca fala do que o
coração está cheio”, se aplica ao apostolado ao pé da letra.
A comunidade cristã se
edifica basicamente sobre a fé, a esperança e a caridade de seus membros. Ela
não se edifica sobre as dúvidas, as confusões e as problematizações
compartilhadas.
6. Reduzir a esperança
Este demônio seculariza
o anúncio da esperança cristã. Ora, esta se funda nas promessas de Cristo: a
ressurreição depois da morte, a vida eterna, a certeza de seu amor e de sua
graça nesta vida que tornam possível o ser humano ser santo em qualquer
circunstância, viver com dignidade e ser capaz de superar o mal moral e a
tentação em todas as suas formas. Esta é a esperança que essencialmente
alimenta o apostolado.
Neste caso, a tentação
consiste em transmitir uma mensagem de esperanças humanas em detrimento da
esperança cristã fundamental. O apóstolo prega e promove a confiança em relação
a um futuro social e político melhor, a superação de uma enfermidade, de um
problema humano ou da pobreza, ou promete ainda o êxito das libertações que a
humanidade busca nos dias de hoje… Entretanto, ainda que estas esperanças
humanas sejam legítimas e se deva lutar por elas, não estão garantidas por
Cristo para esta terra. Não sabemos com certeza se elas se realizarão.
Anunciá-las como esperança cristã seria enganar as pessoas e reduzir o
Evangelho a uma mensagem de libertações humanas legítimas ou de otimismo no
porvir, o que não é alheio ao apostolado, mas que não tem a certeza da
esperança cristã.
Reduzir a esperança é
esvaziar o anúncio da vocação do ser humano à vida eterna, à santidade, à fé e
á caridade como o motor e o valor supremo das libertações humanas. É converter
o apostolado em inspiração de expectativas humanas e de empenho para um mundo
melhor, coisas boas e que desafiam o cristianismo, mas que não deveriam reduzir
sua essência, que é a proclamação de Cristo como a verdadeira esperança do ser
humano.
7. Perder o sentido das pessoas
Este demônio converte o
apóstolo num executivo da pastoral. Alguns cargos e trabalhos se prestam mais a
isso, mas em todo caso, o resultado, progressiva e às vezes imperceptivelmente,
se dá de maneira semelhante. Isso ocorre quando o apóstolo se vai deixando
absorver de tal modo pelo administrativo, o organizativo, o planejamento e a
supervisão, que já não tem tempo, e sobretudo espaço psicológico, para
dedicar-se às pessoas pelas quais trabalha, para dedicar-lhes o tempo
necessário e para estar próximo delas.
O demônio da
despersonalização do apostolado faz com que o apóstolo esteja tão dedicado aos
meios de ação e de serviço, que esquece das pessoas a quem serve e em função
das quais estão organizações e programas que tanto o absorvem.
Esta tentação pode tomar
outras formas. Por exemplo, o apóstolo que se converte em executivo pastoral,
poderá ter a tendência a dar um valor excessivo aos planos, aos programas e às
linhas de ação, esquecendo-se da realidade das pessoas que devem levar a cabo
tudo isso. Acaba impondo esquemas às pessoas em lugar de adaptar os esquemas e
programas à realidade delas. E assim, realidade o apóstolo executivo vão se
tornando cada vez mais distante.
O ponto de partida de
todo apostolado são as pessoas, com suas possibilidades e seus limites, e não
os esquemas, por melhores e mais ideais que sejam.
8. Fazer acepção de pessoas
Deste demônio
praticamente ninguém escapa. Não é fácil tomar consciência desta tentação. Ele
ataca até o apóstolo mais espiritual, não porque não saiba disso, mas por
cegueira. Por isso a expulsão deste demônio implica um longo caminho de
iluminação das motivações apostólicas, que como toda iluminação de motivos
normalmente se faz durante a vida toda.
Habitualmente nesta
tentação do apostolado (salvo que tenha caído em níveis muito baixos), as
acepções e discriminações de pessoas não são motivadas por preconceitos graves:
racismo, classicismo, nacionalismo, tratamento diferenciado de ricos e pobres,
etc. Estes graus de discriminação normalmente não estão presentes na pastoral
da Igreja, a não ser em casos extremos. O demônio da acepção de pessoas costuma
apresentar-se de maneira mais sutil.
Trata-se aqui de dar
mais tempo, interessar-se mais e estar mais disponível às pessoas em geral e
para os membros da comunidade cristã que têm mais qualidades humanas, que são
mais inteligentes, mais interessantes ou agradáveis, mais simpáticos e
atraentes… Consequentemente, se deixa de modo sutil num segundo plano, os que
são menos dotados, mais opacos e menos atraentes, menos inteligentes e
gratificantes… Esta é a forma mais comum de acepção de pessoas no apostolado,
tanto mais sutil, profunda e persistente, quanto mais inconsciente ela for.
Além disso, no
apostolado, no caso da predileção pelos pobres, ela não pode restringir-se ao
nível sociológico, que é sempre essencial, é verdade. Ela precisa chegar
igualmente a todos os “pobres” em qualidades humanas externas, psicologicamente
discriminados em atenção e acolhida. Ora, o apostolado não pode guiar-se
unicamente pelo critério da eficácia, que aconselha investir preferencialmente
nos mais dotados e nos líderes potenciais. Deve, igualmente, testemunhar o
primado da caridade fraterna, que se revela preferencialmente com os
desprezados e esquecidos.
(Continua
no próximo Domingo...)
(*) Este texto é um extrato do livro do teólogo chileno Segundo GALILEA, Tentación y Discernimiento, Narcea, Madrid 1991, p. 29-67.
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