X -VOCAÇAO À LIBERDADE I
Por Pe. José Comblin
O presente artigo reproduz a
conclusão do livro de J. Comblin “Vocação para a liberdade”, publicado pela
Paulus Editora.**
Neste Blog SB SABENDO BEM vou postar
dvdindo o artig em duas partes.
A vocação humana para a
liberdade está radicalmente condicionada pela história. Por isso ela permanece
sempre limitada. Ainda que possa crescer e realizar efeitos cada vez mais
profundos, o ser humano nunca alcançará a plenitude da liberdade. Dada a
pertença ao mundo criado, toda liberdade será necessariamente limitada,
parcial, sujeita a retrocessos, precária, frágil — sempre será realidade a ser
conquistada. Porém, essa é a condição humana e a condição de criatura.
Ideologias podem imaginar um final da humanidade, porém sem nenhum efeito real.
A vocação para a liberdade está sujeita à história.
No entanto, ela não é o
produto da história. O sonho que acompanhou a trajetória do ser humano foi o de
fundar uma liberdade para sempre. O imperador Augusto pensava dessa maneira ao
ter dado ao mundo impérios. A mesma ilusão renovou-se na modernidade: a
liberdade completa pelo advento da ciência, da tecnologia, do progresso da
produção material, isto é, pela economia. A liberdade também não é o resultado
de processos dialéticos. A liberdade procede de Deus: é vocação. Nasce e surge
dentro da consciência humana. Não nasce pelo desenvolvimento espontâneo da
consciência. Sendo vocação, a liberdade vem da parte de fora. Ela é proveniente
de um apelo.
Por isso começou no povo
de Israel e atingiu o auge na pessoa de Jesus. A liberdade de Jesus não foi
produto da história: entrou na história. E, da mesma maneira, a liberdade de
todos os seres humanos que o seguiram também não foi produto da história. Todos
esses seres humanos foram chamados. Todos nasceram para a liberdade respondendo
a um chamado, despertados por esse chamado.
No entanto, o exercício
prático dessa liberdade no meio da sociedade humana — até por meio do próprio
corpo — depende tanto da fase de evolução dos corpos humanos como da fase de
evolução das sociedades humanas. Ainda hoje duas pessoas podem ouvir o mesmo
chamado para a liberdade. Porém, se uma mora nos Estados Unidos e outra no
centro da África, a aplicação prática e a extensão efetiva do chamado à
liberdade serão bem diferentes.
Nos primeiros séculos
até a “conversão” de Constantino, o povo cristão viveu a liberdade na
emancipação da sociedade totalitária greco-romana. Negar-lhe a adoração ao
imperador era afirmar a liberdade pessoal em relação a uma sociedade que
pretendia envolver a totalidade do ser humano. Era emancipar-se do domínio da
sociedade. Os primeiros cristãos prolongaram a resistência do povo de Israel,
que, ao afirmar a transcendência de Deus, se negava a ser dominado por uma
sociedade totalitária. Afirmar a transcendência de Javé era também afirmar a transcendência
da pessoa humana.
No entanto, a afirmação
dos cristãos em face do império romano levava a uma separação radical: um
pequeno povo eleito, que vive a liberdade, e a grande massa mergulhada na
opressão do sistema que abrange todas as dimensões do ser humano.
No primeiro milênio o
predomínio da vida e da espiritualidade monástica compensou as tendências para
a paganização do cristianismo sob a conduta de imperadores. O monge tornou-se
independente da sociedade totalitária em que a maioria vivia mergulhada. A luta
contra as “paixões” tornava a pessoa livre dos temores e dos desejos pelos
quais a sociedade dominava os seus membros. O monge tornava-se livre
negativamente. Faltava o outro aspecto: liberdade para agir. Ao fugir da
sociedade, tornava-se incapaz de agir nela e sobre ela. Depois de se libertar
do mundo, era preciso voltar a ele para o libertar — era o monge que não podia
fazer. Era o limite da vida monástica na forma vivida no primeiro milênio e
ainda predominante no Oriente.
No Ocidente abriu-se uma
brecha que permitiu novas perspectivas. Foi a luta entre o “sacerdócio” e o
“império”; no concreto, a rivalidade entre o Papa e o imperador (com os seus
sucessores, os reis e os Estados Modernos). Essa divisão quebrou a tremenda
unidade da sociedade holística, totalitária, das civilizações que predominaram
durante milênios (desde os faraós do Egito, os imperadores da China, do Japão e
da Índia, até os imperadores romanos).
Nem o imperador
conseguiu extinguir a autoridade do Papa, nem o Papa suplantar a autoridade do
imperador e dos reis. Nenhum dos dois — nem o Papa nem o imperador — conseguiu
a autoridade completa dos impérios anteriores. Nenhum conseguiu constituir uma
sociedade totalmente organizada. Na desordem esta a possibilidade de liberdade.
A liberdade nasce do caos! Nenhum dos projetos daquele segundo milênio se
realizou: nem o da cristandade, nem o do Império, nem o dos reis, nem o dos
Estados Modernos. Nunca se conseguiu a unidade e a ordem. Durante mil anos as
pessoas mais cultas lamentaram essa falta de unidade. No entanto, essa mesma
falta de unidade foi a grande chance histórica da liberdade. Somente há
liberdade quando nenhum poder alcança realizar a unidade sonhada.
Dessa forma, a ascensão
do poder imperial do Papa cumpriu um papel histórico: destruiu as pretensões
holísticas das sociedades antigas de tipo imperial. O Papa foi sempre o apoio
de todas as resistências contra a dominação dos reis ou dos Estados Modernos.
Em compensação, o poder
imperial do Papa deformou a Igreja porque introduziu nela a própria estrutura
imperial, sobretudo quando os Estados Modernos deixaram de representar um polo
de oposição às pretensões imperiais do Papa.
Na realidade, o esquema imperial do papado já cumpriu a sua
função histórica, e é muito significativo que João Paulo II tenha tomado, na
encíclica Ut Unum Sint, a
iniciativa de propor a reforma da maneira pela qual se exerce hoje o
“ministério petrino”. Essa iniciativa do Papa João Paulo II será,
provavelmente, celebrada mais tarde como um dos momentos mais significativos do
seu pontificado: foi o Papa que primeiro lançou o projeto de reforma do
funcionamento do papado (Ut
Unum Sint 95-96).
Os modernos entenderam a
libertação como emancipação das sociedades tradicionais de tipo holístico, emancipação
do indivíduo doravante autor da sua própria vida graças à produção autônoma de
bens materiais e à participação no poder político. O indivíduo seria,
doravante, o autor das leis e o produtor dos bens necessários para a vida:
deixaria de depender da sociedade, seja ela família, clã, tribo ou império.
Pela autonomia econômica e política, pela autonomia do pensamento, fonte de
todas as demais autonomias, o indivíduo alcançaria a verdadeira liberdade.
Assim foi o sonho e, até
certo ponto, o projeto da modernidade.
De fato, em grande
parte, o domínio da sociedade sobre o indivíduo afrouxou. Cada um ficou muito
mais independente do que jamais se imaginou no passado. A imagem concreta dessa
liberdade é a formidável migração humana que leva os camponeses, 90% da
população mundial há 100 anos, para as cidades, onde já se aglomera mais da
metade da população mundial e 80% da população do Brasil. Bilhões de homens e
mulheres em busca da liberdade de acordo com a modernidade: do campo
tradicional para a cidade moderna.
No entanto, a liberdade
moderna manifestou os seus limites. Primeiro os modernos acharam que a causa
das dominações e da opressão era a escassez de bens materiais. Achavam que a
abundância levaria à liberdade. Criou-se a abundância. Porém, essa abundância
serviu para aumentar cada vez mais os desejos de uma minoria de privilegiados.
Estes monopolizam a máquina de produção e deixam a maioria frustrada. A
dominação não vem da escassez, e sim da má distribuição: os mais fortes
tornam-se prisioneiros de desejos cada vez mais exacerbados. Não sabem que
oprimem e criam pobreza porque somente pensam em satisfazer os seus novos
desejos. A produção não cria liberdade.
Quanto à liberdade política, desde o início percebeu-se que
estava subordinada às exigências da economia. Em nome dessas exigências, a
participação real dos cidadãos fica cada vez mais reduzida. Os economistas
estabelecem as regras do jogo político. O que sobra para um verdadeiro
exercício de democracia é muito limitado. A economia criou nova sociedade
holística e totalitária. Consegue manter a submissão dos cidadãos graças à
manipulação da cultura. Quem dispõe dos meios de comunicação — as potências
econômicas — cria uma cultura que leva cada um dos cidadãos a se identificar
com a sociedade estabelecida. Sob as formas da democracia, criou-se um modelo
uniforme de ser humano — o Homo
praiensis — que todos aceitam, até com entusiasmo. Sugere-se
uma consciência de liberdade, porém trata-se da liberdade de aderir ao modelo
uniforme imposto pela publicidade e pelo trabalho cultural da mídia. A
sociedade cria um jogo de desejos e de satisfações suficientemente adaptado
para evitar qualquer perturbação séria da ordem estabelecida.
Veio a reação à qual
alguns deram o nome de pós-modernidade. Na realidade a pós-modernidade não
suprime nem suplanta a modernidade. Por sinal, já havia expressões da
pós-modernidade no século XIX. A pós-modernidade acompanha o desenvolvimento da
sociedade moderna, porém em forma de protesto e antagonismo. A pós-modernidade
é a afirmação do indivíduo contra as novas formas de dominação e conformismo
que foram criadas pela própria modernidade. Porém, a pós-modernidade levanta
novos desafios para uma verdadeira liberdade.
A reivindicação do
indivíduo é legítima e a liberdade cristã é a liberdade do indivíduo na sua
vida pessoal. Não se trata de uma liberdade vivida simplesmente na
coletividade, liberdade nacional, liberdade histórica, liberdade do povo, que
tantas vezes serviu para ocultar a dominação da nação ou da economia sobre os indivíduos.
Porém, a pós-modernidade
evolui muitas vezes no sentido do famoso grito de Jean-Paul Sartre: “O inferno
são os outros!”. A liberdade vivida pelas novas classes dirigentes do mundo
ocidental é a liberdade de isolamento: a liberdade contra os outros, que
enxerga nos outros prováveis obstáculos. Os pós-modernos isolam-se da massa dos
excluídos e vivem em paraísos cuidadosamente protegidos por todos os sistemas
que a tecnologia atual permite. Daí a tendência para cair no narcisismo
confundido com a liberdade.
O maior desafio da
liberdade na atualidade já não viria mais do totalitarismo, como aconteceu
durante muitos séculos, e sim do individualismo radical que a cultura ocidental
está espalhando pelo mundo inteiro.
Diante da invasão do
individualismo ocidental pós-moderno, vários cultos tradicionais reagem: reage
o mundo muçulmano pelo fundamentalismo, reage o mundo chinês pelo apego ao
autoritarismo político, reagem os fundamentalismos hinduístas — e mesmo os
povos ameríndios e as minorias negras das Américas, mais do que as religiões
tradicionais na África.
Aparece, dessa forma,
uma polarização totalitarismo-individualismo que exclui qualquer advento de
uma verdadeira liberdade. A verdadeira liberdade realiza-se no serviço
voluntário ao outro. Longe de fugir do outro, sobretudo do necessitado, a
liberdade consiste em aceitar o desafio, ir ao encontro da diferença e criar
uma resposta a uma situação nova. O outro é o desafio que provoca a liberdade.
Essa concepção opõe-se tanto ao totalitarismo quanto ao individualismo. Opõe-se
ao totalitarismo, que somente aceita o semelhante e rejeita tudo o que é
diferente. Opõe-se ao individualismo, que vê no outro a ameaça, e não a
provocação da liberdade.
A ideia de serviço é
alheia aos nossos contemporâneos, porque a cultura oficial postula que todos os
indivíduos são iguais, todos são autossuficientes e, por conseguinte, podem e
devem resolver todos os seus problemas sem ajuda de ninguém. Essa é a doutrina
dominante no mundo ocidental. Se existem pobres, trata-se do último resíduo da
sociedade anterior, ou simplesmente pobres são os que escolheram esta condição
por preguiça ou incapacidade: são os não empregáveis, os irrecuperáveis que não
adianta ajudar, pois seria perder tempo e dinheiro.
A palavra serviço ainda se
usa como concessão às massas populares que ainda carregam a herança do
vocabulário cristão. Porém, de modo geral, a palavra fica vazia: não lhe
corresponde nenhum serviço sério.
O desafio da liberdade
no século XXI será o novo tipo de relacionamento humano. Homens e mulheres
serão convidados a se libertar do seu individualismo, que é, afinal, medo de
viver plenamente, medo dos seres humanos, medo dos verdadeiros desafios
humanos. Porém, não se trata de voltar a formas antigas de sociedade holística,
saída condenada de antemão, embora várias civilizações agredidas pela nova
cultura pós-moderna não achem outra. A fé cristã pode aceitar a provocação dos
outros em vista de uma nova convivência.
A quem se dirige o apelo
para a liberdade? Não digamos simplesmente: a todos os seres humanos — como se
todos fossem iguais e pudessem igualmente receber um convite de libertação.
À medida que a Igreja se
identifica com uma cultura, o que aconteceu de modo tão intenso nos dois
milênios da sua história, adota a figura de ideologia da sociedade e se dirige
igualmente a todos — pois tende a identificar, uniformizar todos os membros da
sociedade numa ideologia comum.
À medida que a Igreja
volta a escutar o evangelho e a Bíblia no conjunto, deve reconhecer que a
Bíblia toda e os evangelhos inteiros oferecem a visão de uma humanidade feita
de polos opostos: oprimidos e opressores, ricos e pobres, poderosos e sem-poder
— ou de modo mais radical: senhores e escravos. O evangelho encontra senhores
ou escravos. Nunca encontra “homens” ou “mulheres”, porque estes são
abstrações. Não existe o homem abstrato realizando a essência humana abstrata.
Qualquer indivíduo humano sempre é ou senhor ou escravo. Essa é a visão bíblica
** Texto
proveniente da conclusão do livro Vocação
para a liberdade, Paulus, São Paulo, 3ª ed., 2001.
Pe. José
Comblin
https://www.vidapastoral.com.br/artigos/antropologia-teologica/vocacao-a-liberdade/
(GONTINUA NO PRÓXIMO DOMINGO....}
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