sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

X- VOCAÇAO À LIBERDADE II

 

 

X-           VOCAÇAO À LIBERDADE II

 

Na concepção cristã, a vocação para a liberdade dirige-se aos escravos. O cristianismo é uma religião de escravos. Nisso é diferente de todas as outras religiões. À medida que se afasta dessa característica, torna-se semelhante às outras religiões.

O filósofo pagão já o tinha observado: o cristianismo era uma religião de escravos. E acrescentava: e de mulheres, porque, de alguma maneira, as mulheres se assemelham aos escravos em tantas situações.

Alguns já perguntaram: como evangelizar depois de Auschwitz? Ora, o evangelho é justamente feito para vir “depois de Auschwitz”: o Auschwitz do Egito, da Babilônia e de todas as perseguições do povo de Deus, até o Auschwitz do século XX.

Qualquer mensagem de liberdade corre o risco de desvio se não parte da situação fundamental da vocação para a liberdade. O evangelho dirige-se aos humilhados, perseguidos, excluídos. Uma vez que se afasta desses destinatários autênticos, perde o seu sabor, perde a sua originalidade, perde a sua autenticidade.

Hoje, existem milhões e dezenas de milhões de cristãos perseguidos não somente na China e na Coreia do Norte, mas em numerosos países muçulmanos (no Sudão e na Nigéria, por exemplo). A teologia cristã é feita para eles e a partir deles, não a partir dos restos das velhas cristandades da Europa ou mesmo da América.

Há milhões e até bilhões de excluídos, necessitados, humilhados. O evangelho é feito para eles como apelo para a liberdade. Se queremos fazer uma teologia para o homem abstrato, é preciso afastar-nos do evangelho — e então não saberemos mais o que seja liberdade.

Foi o que aconteceu, sobretudo a partir do século XIV, quando João XXII declarou que Jesus não era pobre e rejeitou dessa maneira toda a tradição anterior de opção pelos pobres. Doravante a Igreja falou para os homens abstratos e nem a reforma protestante mudou esta situação.

Uma das consequências desse ocultamento do evangelho foi a maneira pela qual se legitimou a conquista e se realizou a suposta evangelização da América e das outras partes do mundo conquistadas pelas nações da antiga cristandade.

Para os habitantes da América, o cristianismo apareceu como a religião dos senhores, dos amos, dos vencedores e opressores, e como a legitimação da conquista e da dominação.

Os pobres reapareceram oficialmente com João XXIII. Antes dele, tiveram vida clandestina na Igreja: a clandestinidade de Canudos, de Pe. Cícero Romão Batista de Juazeiro do Norte, de Pe. Ibiapina. O evangelho foi anunciado, porém clandestinamente. Os que o anunciaram publicamente foram expulsos — por exemplo, os que se negavam a aceitar a escravidão como sistema social.

A mensagem de liberdade dirige-se aos pobres, porque eles têm condições de lutar pela liberdade. Eles têm uma longa caminhada para percorrer. Porém podem, porque estão mergulhados na opressão.

Claro que — a experiência o confirma tantas vezes — quando os pobres se promovem, muitas vezes adotam o mesmo modo de sentir e de agir dos poderosos. O que se lhes pede é algo heroico: lutar pela nova sociedade em que as relações são vividas na liberdade.

Os ricos não podem ser chamados à liberdade? Os ricos não recebem esse apelo também? O evangelho mostra que os ricos podem ser chamados também. Há, todavia, uma condição: romper com o seu mundo, os seus valores e o seu modo de viver, e então seguir Jesus. Não pode haver evangelho de conciliação, como se fez na Igreja durante 15 séculos: apagar de tal modo o conteúdo do evangelho, que o cristianismo se torna exatamente igual às religiões pagãs.

O Vaticano II abriu as portas para a liberdade. Teve a ousadia de se deixar conduzir pelos textos do Novo Testamento. A Constituição, Gaudium et Spes reabilitou a liberdade. Imediatamente criou-se toda uma literatura teológica sobre cristianismo e liberdade.

Infelizmente isso não durou mais do que dez anos. O medo voltou a tomar conta da maior parte da hierarquia, do Papa e da Cúria romana. Trata-se do velho medo da liberdade, que prevalece desde o século XIV — quando foram condenados, queimados e torturados os espirituais franciscanos e muitas pessoas suspeitas de ter afinidades com eles.

O medo da liberdade voltou a tomar conta da Igreja católica. No entanto, o próprio Papa chega à conclusão de que o sistema deixou de funcionar. Pois a forma pela qual se exerce o ministério petrino é a pedra angular sobre a qual se sustenta toda a Igreja imperial. Se muda o ministério do Papa, muda o resto. Neste final de pontificado, a questão da liberdade na Igreja volta a ocupar o centro da atenção. O novo Papa já tem a sua função preparada — o Papa atual assinalou-lhe a tarefa de modificar a maneira pela qual se exerce o ministério petrino, quer dizer, a maneira pela qual se vive a liberdade na Igreja.

Na América Latina, as massas têm consciência da liberdade. Sentem-se livres porque aceitam o sistema em que estão. Aceitam-no porque acreditam nas mensagens que lhes são dirigidas. Vão para a praia e sentem-se livres. Hoje, liberdade é sinônimo de estar na praia, tomando sol e bebendo cerveja gelada. As pessoas convenceram-se de que essa é a liberdade. Por isso a compreensão da vocação será tarefa prolongada, porém, não impossível.

“Onde está o Espírito, aí está a liberdade”. Não foi sem consequência que o Espírito Santo desapareceu quase completamente da teologia católica e da consciência tanto da hierarquia como do povo durante quase 700 anos — desde a condenação dos espirituais franciscanos e de todos os discípulos do abade Joaquim de Fiori. A simples referência ao Espírito Santo já era suspeita por si própria. A mística da obediência substituiu o Espírito Santo.

Acabo de ouvir um bispo chileno dizer numa entrevista à imprensa: “Quem obedece nunca erra”. Essa foi a espiritualidade praticada durante séculos. Assim pensava também Eichmann, que exterminou os judeus por obediência. Assim pensaram os oficiais e soldados que torturaram os presos e os jogaram no mar, utilizando-se de aviões da marinha (na Argentina). Assim pensam e dizem os inúmeros funcionários públicos que dão cobertura a todas as malversações das autoridades, e assim dão a entender também os que ficam calados diante das injustiças que se cometem dentro da Igreja. Será verdade que “quem obedece nunca erra”? Infelizmente devemos reconhecer que inúmeras gerações católicas foram educadas nesse espírito, que, certamente, não procede do Espírito Santo. Porque este proclama que é melhor obedecer a Deus do que aos homens, mesmo quando pretendem falar em nome de Deus — como fizeram as autoridades de Israel que prenderam os apóstolos.

Recentemente o Espírito Santo fez uma nova entrada na Igreja, de modo totalmente imprevisto: o vento sopra e não se sabe por onde entra. Entrou pelo pentecostalismo e pelos movimentos carismáticos. É uma entrada que muitos na Igreja não desejavam. Porém, doravante não se poderá negar a presença do Espírito e fazer uma teologia sem falar do Espírito Santo.

Com o Espírito Santo todo o sistema tem de mudar. Em lugar da ordem estabelecida, o que prevalece é a desordem, o imprevisto, a improvisação, a novidade e o abalo daquilo que parecia estabelecido. A missão do Espírito consiste justamente em suscitar a liberdade.

Se o objeto do evangelho é a vocação para a liberdade, como haverá de ser a evangelização? Quem é que deve ser evangelizado? Durante 15 séculos predominou a persuasão de que a evangelização começa pelos grandes. A conversão de Constantino provocou uma inversão radical. A Igreja, que era dos escravos, tornou-se a Igreja dos senhores. Os missionários que foram ao encontro dos povos germânicos procuraram batizar os chefes, e estes davam a todos os súditos a ordem de se batizar também. Os primeiros missionários que foram para o Oriente buscaram o diálogo com os reis e imperadores, e os jesuítas que foram para a China conseguiram entrar na corte do imperador. Porém, não converteram ninguém. Na América a ordem era: cristianizar os filhos dos caciques. Na África, converter os chefes ou os filhos dos chefes. A evangelização devia proceder das classes altas e descer para todos.

Esta foi a doutrina oficial no Brasil até o Vaticano II: antes os dirigentes, primeiro recuperar os dirigentes. Foi e ainda é a doutrina romana oficial. Por isso a hierarquia deu apoio aos regimes fascistas e aos regimes militares da América Latina. Todos davam apoio à Igreja.

Então, diante de tais fatos, surgem as perguntas: O que do evangelho era anunciado a esses dirigentes? Por que adotaram o cristianismo com tanta facilidade? O que era que os encantava no cristianismo? Teria sido a vocação à liberdade?

Podemos ter a certeza de que a palavra liberdade pouquíssimas vezes foi pronunciada pelos missionários ao longo de 15 séculos. Qual era então o evangelho que foi aceito pelos imperadores romanos, pelos reis e chefes germânicos e eslavos, pelos chefes das tribos africanas e pelos caciques indígenas?

Não é preciso fazer um longo estudo. É evidente que o evangelho que receberam era bem diferente daquele que está no Novo Testamento.

Hoje a Igreja coloca-se diante do desafio de evangelizar. Porém, qual será o evangelho? A quem será destinado o evangelho? Eis a questão crucial. Se queremos converter as classes privilegiadas, nada de liberdade, nem de libertação. Anunciaremos um Deus muito compreensivo, que compreende muito bem o modo de viver dos privilegiados e, de antemão, os absolve, consola-os no meio dos problemas, conflitos e dissabores que vêm da própria abundância em que vivem.

O missionário fica totalmente condicionado pelo público que escolhe. Ele tem uma liberdade: a liberdade de escolher o seu público — pode evangelizar os pobres ou os ricos. Uma vez feita a escolha perde a liberdade, porque, doravante, o evangelho que anunciará lhe será ditado pelo seu público. O missionário que pretende evangelizar os privilegiados é prisioneiro deles. Não tem nenhuma liberdade de dizer ou fazer o que quer — deve dizer e fazer o que quer o seu público. Somente pode anunciar um evangelho de liberdade se fala para pessoas sem riqueza, sem propriedade, sem privilégios para defender. Será mais acolhido pelas mulheres do que pelos homens, porque são mais pobres; pelos jovens do que pelos velhos, porque são mais pobres; pelas pessoas de cor do que pelos brancos, porque são mais pobres…

Por isso mesmo — devido à escolha malfeita — o evangelho fica tantas vezes desvitalizado, perde sua força de repercussão, torna-se refúgio nas frustrações da vida.

Na América Latina, o evangelho da liberdade estava de tal modo desconhecido, que a teologia da libertação provocou um escândalo em todo o mundo católico conservador. De repente foi-lhes dito que o evangelho era o contrário de tudo o que eles achavam ser o cristianismo. Para eles, o cristianismo significava ordem, tranquilidade, paz social, resignação diante das situações de injustiça, cada um conformado com a sua sorte, respeito às autoridades constituídas quaisquer que fossem, respeito à propriedade, respeito aos costumes e normas tradicionais. Tinham paganizado o cristianismo e sentiram-se agredidos. Quem teve a culpa? Todos e ninguém. A evangelização começou pelo lado errado.

Pois bem. Passaram-se 500 anos. Agora começou novo século. Qual será o evangelho para o século XXI?

Ao longo dos séculos o cristianismo passou por tantos desvios, assemelhou-se de tal maneira às outras religiões, identificou-se tanto com outras culturas — sobretudo a cultura bizantina e a cultura ocidental —, que se tem a impressão de que a evangelização ainda está para começar. De alguma maneira mal começou, e começou de modo tão fragmentário que quase tudo está para ser feito.

Os 2.000 anos de história deixaram magníficos monumentos de “civilização cristã”, deram espaço para milhares de “santos”, cristãos imitadores autênticos de Jesus Cristo. Mas, o mundo ouviu o evangelho? Os pobres, os excluídos do mundo — os 4 bilhões de pobres — ouviram o evangelho e o apelo para a liberdade? A Igreja dedica-se a isso? Dedica-se a anunciar-lhes a liberdade de Cristo? Parece que estamos no início do primeiro século da evangelização.

De onde parte a evangelização? Com certeza, dos países em que os cristãos são pobres e perseguidos, na África e na Ásia. Não constam no anuário pontifício, mas a força do Espírito Santo está com eles.

Nas bibliotecas de teologia há milhões de livros que quase ninguém lê. Para a evangelização, poucas coisas dessas toneladas de papel é recuperável. Quase nada disso serve para iniciarmos a entrada no mundo de hoje. Além da Bíblia, pouca coisa será realmente de grande utilidade. O mundo de hoje é muito diferente: tudo deve começar de novo. A metade, pelo menos, dos livros foram escritos para apagar a palavra liberdade do linguajar cristão e procurar justificar um evangelho sem liberdade. A outra metade desconhece a mensagem de liberdade. Um entre mil entrou no assunto. Os que viveram a liberdade não escreveram e morreram. É preciso começar tudo de novo. Como entrar na liberdade? Escolhendo-a e começando tudo de novo.

Claro que é humanamente impossível. Humanamente Nicodemos tinha razão: um ser humano não pode apagar sua vida inteira. Não pode livrar-se dela inteiramente. No entanto, o Espírito faz renascer de novo, começar tudo de novo. Em cada um de nós agirá à medida dos limites do nosso apego ao passado, ao que somos. Todavia, o Espírito levar-nos-á para além daquilo que somos, a sermos outros, e assim começará a evangelização.

 


** Texto proveniente da conclusão do livro Vocação para a liberdade, Paulus, São Paulo, 3ª ed., 2001.

Pe. José Comblin

 

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/antropologia-teologica/vocacao-a-liberdade/

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