sábado, 12 de fevereiro de 2022

SANTO AGOSTINHO


A Filosofia cristã de Agostinho

Por Sávio Laet de Barros Campos (*)

Agostinho opunha à filosofia dos gentios uma filosofia cristã, a qual era, para ele, a única verdadeira. A Juliano, ele dizia: : “Por favor, não seja para ti de maior valor a filosofia dos gentios que a nossa cristã, única filosofia verdadeira, pois esta palavra significa estudo ou amor à sabedoria”41. No De Civitate Dei, a lógica que o levara a fazer tal asserção é assaz simples: o filósofo não é senão o amante da sabedoria. Agora bem, Deus é a própria sabedoria. Ora, o único Deus verdadeiro é o Deus dos cristãos. Logo, só os cristãos amam a verdadeira sabedoria. Donde só eles podem reivindicar, com justeza, o título de filósofos. 42

Ora, então a filosofia só surgiu com o cristianismo? Decerto que não. Entretanto, os filósofos pagãos só cultivaram a verdadeira sabedoria naquilo que ensinaram consoante a fé cristã, isto é, naquelas sentenças que se coadunam com a verdade cristã. Destarte, Agostinho reconhecia, ao lado dos profetas (aos quais tomava como “filósofos” por excelência), outros que, inobstante não terem alcançado a verdade plena, conseguiram acercar-se dela, embora apenas parcialmente. No De Civitate Dei, ele pondera: Todas as verdades que entre seus erros alguns filósofos chegaram a discutir e se esforçaram em persuadir com esmero (...) tudo isso foi pregado ao povo na Cidade de Deus por boca dos profetas, sem argumentos e sem disputas. Para eles (O povo de Israel), eram esses os filósofos, quer dizer os amigos da Sabedoria, seus sábios, seus teólogos, seus profetas e seus doutores em piedade e em probidade.43 Não é difícil imaginar a razão pela qual Agostinho identificava a religião cristã com a verdadeira filosofia e os seus profetas com os verdadeiros sábios.44 Com efeito, ele viveu numa época em que a ascese e a contemplação eram apanágio de uma filosofia que aspirava a ser “salvífica”. A filosofia pagã do tempo de Agostinho, sobretudo de cunho neoplatônico, se esforçava para proporcionar aos seus sequazes, por meio de uma mística especulativa ascendente, a libertação das suas almas do cárcere corporal, tão inquinado às paixões e à dispersão. Ora, para o nosso pensador, semelhante salvação só se encontrava no cristianismo. Só o cristianismo poderia tornar a alma verdadeiramente livre. Só ele poderia dar a conhecer, sem rastros de erros, o caminho da salvação, que é Cristo. Ademais, o cristianismo, contrariamente às demais seitas filosófico-religiosas, não reservava esta salvação apenas a uma casta, mas colocava-a ao alcance de todos. Eis a clássica passagem na qual Agostinho retoma o itinerário do filósofo pagão Porfírio, mostrando como ele aponta para a religião cristã que, contudo, não descobriu:

Assim, não o satisfazia o que com tanto esmero aprendera a respeito da libertação da alma e lhe parecia, ou melhor, parecia a outros, que o conheciam e professavam. Quando afirma que nem mesmo da filosofia mais verdadeira teve conhecimento de seita que contenha o caminho universal para a libertação da alma, parece-me demonstrar, à evidência, que a filosofia em que filosofou não era a mais verdadeira ou não continha a referida senda. Como pode, é claro, ser a mais verdadeira, se não contém semelhante senda? Pois que outra senda universal existe para a libertação da alma, senão a que livra todas as almas e, sem ela, nenhuma se livra? (...) Essa é a religião cristã, que contém o caminho universal para a libertação da alma, porque por nenhum, senão por ele, pode ver-se livre.45 Sem embargo, Agostinho estava tão certo de que a religião cristã é a única fonte da verdadeira sabedoria, que afiançava aos seus leitores que, se todos os grandes filósofos do passado voltassem à vida e tivessem a oportunidade de conhecer a doutrina cristã, deveras não pestanejariam em lançar fora todas as asserções errôneas que fizeram, ou seja, todas aquelas doutrinas que propugnaram e que não se conjugam com a fé e a religião cristã, a fim de se fazerem cristãos: Portanto, se aqueles filósofos pudessem voltar à vida conosco, reconheceriam, sem dúvida, a força da Autoridade, que por vias tão simples operou a salvação da humanidade e – mudando algumas palavras e sentenças – ter-se-iam feito cristãos, como vimos que se fizeram muitos platônicos modernos de nossa época.46

Agostinho, no célebre Sermão 43, expressa numa fórmula perfeita esta dupla atividade da razão que funda a filosofia cristã sobre a qual discorremos acima: “(...) compreende para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut intelligas)”47. Com efeito, compreendendo aquilo em que se deve crer, cremos48 e, crendo, podemos compreender aquilo em que cremos. Se, por um lado, é preciso partir da fé; por outro, é dever de quem crê, buscar inteligir aquilo em que crê, pois a inteligência não elimina, antes, clarifica a fé. 49 De sorte que fé e razão se complementam50, porquanto se “A fé busca, o entendimento encontra” 51. Aliás, na vida eterna, a fé dará lugar à visão, como a esperança à posse, pois só a caridade permanecerá e será robustecida.52 Sendo assim, o filosofar na fé é uma espécie de prelibação da visão da glória. O entendimento é, pois, o intermediário entre a fé e a visão. Ele advém qual recompensa para quem creu: “O entendimento é uma recompensa da fé”53, “A fé é um mérito e o entendimento é um prêmio”54. Neste sentido, ainda no Comentário ao Evangelho de João, Agostinho afirma: “(...) o entendimento é um fruto da fé”55. E este entendimento só será pleno na Pátria. Por ora, vivemos numa espécie de interstício entre a fé e a visão, que consiste em procurar inteligir o conteúdo da fé. Todavia, permanece como uma das “indeterminações agostinianas”, até onde vai esta inteligência que pressupõe a fé e que consiste na tentativa de entendê-la. Será que ela chega a pretender obter as “rationes necessariae” dos artigos de fé, post fidem? Em Agostinho, há passagens e passagens. Uma delas, no De Vera Religione, inclina-nos a pensar que a resposta à questão por nós levantada seja positiva. Diz Agostinho: De onde resulta que as verdades, nas quais primeiramente acreditamos, fiando-nos na autoridade, tornam-se depois compreensíveis (pela reflexão), até nos parecerem certíssimas.56 Em outras passagens, o Doutor de Hipona afirma de forma tão veemente a inefabilidade divina, que tendemos a pensar que ele não tenha nunca defendido que, post fidem, pudéssemos chegar às “rationes necessariae” dos artigos de fé. Numa destas passagens, no De Ordine, Agostinho ressalta que, com relação a Deus, “(...) se conhece melhor ignorando”57 e, noutra passagem do mesmo diálogo, diz que, no que toca a Deus, “(...) não há nenhum conhecimento na alma a não ser saber até que ponto o desconhece”58 . De qualquer forma, é certo que não há um “racionalismo” em Agostinho, pois sempre se trata de um intelecto fecundado pela fé e pela graça, vale dizer, de um intellectus fidei. Ele mesmo admite: “(...) reconhecemos que caminhamos pela fé e não pela clara visão (...) se não caminharmos pela fé, não poderemos chegar à clara visão (...)”59. Deveras também não há um “ontologismo” agostiniano, pois a visão de Deus em si mesmo, em sua essência, pertence apenas aos bem-aventurados. De fato, no que tange às verdades de fé, “(...) compreender perfeitamente consiste na visão sempiterna de Deus”60, a qual apenas aos celícolas é acessível. Contudo, parece perdurar uma certa indeterminação entre o que pertence à filosofia e o que pertence à teologia no Bispo de Hipona, talvez porque esta demarcação nem fosse um problema para ele. Gilson acena para isto: Não se poderia levantar uma lista de verdades, na qual algumas seriam, para ele, essencialmente filosóficas, enquanto outras seriam essencialmente teológicas; pois todas as verdades necessárias à beatitude, fim último do homem, estão reveladas nas Escrituras; em todas, sem exceção, pode-se e deve-se acreditar. Por outro lado, não há sequer uma entre elas de que a nossa razão não possa obter alguma inteligência, contanto que a isso se dedique, e, ao fazê-lo, o pensamento funciona como razão – já que a fé não mais intervém a título de prova, mas somente a título de objeto.61 Tudo se passa como se, a totalidade das verdades que, ante fidem, assentimos por autoridade, post fidem pudéssemos descobri-las, alcançando-as segundo a medida de nossas forças pela razão, sem, contudo, esgotá-las, visto que elas têm Deus por objeto: “Todas as verdades reveladas podem, ao menos em certa medida, ser conhecidas; nenhuma poderia se esgotada, já que elas têm Deus como objeto”62. Agora bem, se, como havíamos dito, por filosofia cristã, Agostinho entende justamente esta tentativa de a razão inteligir o que havia crido, e que, ademais, esta especulação acerca do credo, torna-se, em Agostinho, como que um antegozo da visão face a face, temos que, na filosofia cristã do nosso filósofo, encerra-se a verdadeira religião. Raciocinando de outro modo, chegamos à mesma conclusão. Com efeito, se, conforme também já assinalamos, a verdadeira religião consiste no esforço de tentarmos chegar à inteligência do que cremos, posto que a beatitude eterna, nosso fim último, consiste na visão de Deus e não na fé, temos novamente que, a filosofia cristã de Agostinho é a verdadeira religião. Gilson é contundente ao constatar isso: Uma filosofia que quer ser um verdadeiro amor pela sabedoria deve partir da fé, da qual será inteligência. Uma religião que se quer tão perfeita quanto possível, deve tender à inteligência a partir da fé. Assim entendida, a verdadeira religião é a verdadeira filosofia e, por sua vez, a verdadeira filosofia é a verdadeira religião. A isso Agostinho chama de “filosofia cristã”, ou seja, tal como ele a entende, uma contemplação racional da revelação cristã (...). 63 A filosofia, que seja verdadeira e, por assim dizer, autêntica, não tem outra função senão a de ensinar o que seja o Princípio sem princípio de todas as coisas e a imensidade do Intelecto que nele reside e o que daí se originou para nossa salvação sem nenhum detrimento para ele, a quem os veneráveis mistérios nos ensinam ser um único Deus onipotente e que ele é uma Trindade Poderosa, Pai e Filho e Espírito Santo (...).64 De qualquer maneira, o certo é que “(...) se crê e se ensina como fundamento da salvação humana que estejam concordes: a filosofia – isto é, a procura da sabedoria – e a religião”65 . De qualquer modo também, o que parece claro em Agostinho, ratificamos, é que não existe em seu pensamento uma nítida distinção entre teologia e filosofia, uma vez que para ele a própria filosofia seria uma teologia. No De Ordine, Agostinho chega a dizer que a filosofia possui tão somente duas questões, a saber, “(...) uma concernente à alma, outra a Deus (...)”66.Ora, no De Civitate Dei, ele define a teologia como sendo uma palavra grega que significa “(...) razão ou discurso sobre a divindade”67. Logo, se a filosofia tem por objeto a Deus, ela também é uma teologia. Ademais, se, de acordo com o que vimos, a filosofia possui um discurso sobre Deus que se estende até a tentativa de intelecção dos próprios mistérios cristãos, podemos dizer que, em Agostinho, há uma filosofia cristã que é, também ela, uma teologia cristã.

____________

41 AGOSTINHO. Réplica a Juliano. IV, XIV, 72. Disponível em: Acesso em: 24/10/2007. (A tradução para o português é nossa). Referindo-se a esta filosofia, diz Agostinho no Contra Academicos: AGOSTINHO. Contra os Acadêmicos. III, XIX, 42: “Mas foi necessário que passassem muitos séculos e discussões para que se elaborasse, segundo julgo, um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira. Esta filosofia não é a deste mundo, que nossos mistérios com toda a razão abominam, mas a de outro mundo inteligível (...)”.

42 AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. VIII, I: “O nome ‘filósofo’ traduzido ao português, significaria ‘amor à sabedoria’. Pois bem, se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus.” 43 AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 4ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001. XVIII, XLI, 3. 44 No De Vera Religione, Agostinho rejeita a todos os religiosos que não são filósofos em seus atos de piedade e a todos os filósofos que não religiosos no seu filosofar: AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. 7, 12: “Deixemos, pois de lado: – todos os que não são nem filósofos em sua prática religiosa, nem religiosos em sua filosofia (...)”.

45 Idem. Ibidem. X, XXXII, 1. 46 AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. 7, 7. 47 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Um texto célebre do Sermão 43 resume essa dupla atividade da razão numa fórmula perfeita: compreende para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut inelligas).

48 Aqui compreender não significa conhecer o mistério, mas apenas ter presente qual é o objeto ao qual devemos assentir. Por exemplo, saber que a Trindade deve ser crida, não significa compreender o seu mistério e sim assegurar-se dos testemunhos da fé, que nos asseguram que devemos crer nele. 49 Idem. Op. Cit: “E analogamente, por seu turno, a inteligência não elimina a fé, mas a fortalece, e, de certo modo, a clarifica”. 50 Idem. Op. Cit: “(...) fé e razão são complementares (...)”. 51 AGOSTINHO. A Trindade. XV, 2, 2. 52 AGOSTINHO. Solilóquios. Trad. Adaury Frangiotti. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1998. VII, 14: “R. Vejamos, se ainda são necessárias essas três coisas para a alma, depois que ela tenha conseguido ver a Deus, isto é, compreendê-lo. Para que é necessária a fé se já o vê? Tampouco é necessária a esperança, porque já o possui. Porém, o amor não só não perde nada, mas é acrescido em elevadíssimo grau, pois, ao ver aquela beleza singular e verdadeira, amará ainda mais.” 53 AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXIX, 6. 54 Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. XLVIII, 1. 55 Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXII, 2. 56 Idem. A Verdadeira Religião. 8, 14. 13 no De Ordine, Agostinho 57 Idem. A Ordem. II, XVI, 44. 58 Idem. Ibidem. II, XVIII, 47. 59 AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. II, 12, 17. 60 Idem. Ibidem. 61 GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Trad. Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006. p. 76. O próprio Agostinho, no De Ordine, afirma que, uma vez crendo por autoridade, podemos, segura e confiantemente, buscarmos com logro as razões das coisas que, a priori, cremos sem compreender: AGOSTINHO. A Ordem. II, IX, 26: “Quem entra por esta porta (a da autorictas) sem nenhuma dúvida segue os preceitos da vida ideal dos quais, quanto já se tenha tornado dócil, finalmente aprenderá que as mesmas coisas, que seguiu sem compreendê-las com a razão, estão dotadas de muita razão (...)”. (O parêntese é nosso).

62 GILSON. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. p. 76. 63 Idem. Ibidem. p. 86 64 AGOSTINHO. A Ordem. II, V, 16. 65 Idem. A Verdadeira Religião. 5, 8. 66 Idem. A Ordem. II, XVIII, 47. 67 Idem. A Cidade de Deus. VIII, I.

Sávio Laet de Barros Campos (*)

Bacharel-Licenciado e Pós-Graduado em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso.

http://www.filosofante.org/filosofante/not_arquivos/pdf/Agostinho_intellige_ut_credas_crede_ut_intelligas.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário