domingo, 28 de março de 2021

DISSE SANTO AGOSTINHO

SERMÃO SOBRE O SALMO 50 (MISERERE) – 2ª Parte.

8 - "Reconheço a minha iniqüidade e o meu pecado está sempre diante de mim". Não deixei para trás o que fiz, não olho os outros, esquecido de mim mesmo, não tento retirar o argueiro do olho de meu irmão, quando tenho uma trave nos meus (Mt 7,3). Meu pecado está a minha frente, não nas costas. Estava atrás de mim quando me foi enviado o profeta, e me propôs a parábola da ovelha do pobre. Disse o profeta Natan a Davi: "Um homem rico possuía ovelhas em grande número. Um pobre, seu vizinho, tinha só uma ovelha. Ele a criara junto de si e a alimentava com a sua comida. Um hóspede veio à casa do homem rico, que nada quis tirar de seu rebanho. Tomou a ovelhinha do pobre e a preparou para sua visita. De que é digno?" Davi, então, irado proferiu a sentença. De fato, o rei sem saber em que laço caíra, proferiu sentença de morte para o rico, que devia devolver a ovelha em quádruplo (2Rs 12,2-6). Sentença muito severa, no entanto, justíssima. Mas seu pecado ainda não estava diante dele. Achava-se atrás dele o que cometera.  Ainda não reconhecia sua iniquidade, e por isto não perdoava a alheia. O profeta, contudo, que para tal fora enviado, tirou o pecado de suas costas, e colocou-o diante de seus olhos, para que visse que proferia sentença tão severa contra si mesmo. Transformou a língua dele num bisturi para cortar e curar a ferida que ele tinha no coração. Igualmente, assim agiu o Senhor com os judeus, quando lhe apresentaram a mulher adúltera, propondo-lhe uma cilada, mas quem nela caiu foram eles mesmos. Disseram: "Esta mulher foi surpreendida em adultério. Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, porém, que dizes?" Eles tentavam apanhas a Sabedoria de Deus numa cilada ambivalente. Se o Senhor mandasse matá-la, perderia a fama de mansidão; se ordenasse que a despedissem livre, incorreria na calúnia de ser censor da lei. Sua resposta foi a seguinte: Não disse: Matai; não disse, Soltai, mas: "Quem dentre vós não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a pedra". É justa a lei que ordena se mate uma adúltera; mas esta lei justa pede ministros inocentes. Ponderai quem é que apresentais, mas atendei também no que sois. "Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após o outro. Ficaram a adúltera e o Senhor", restaram a mulher ferida e o médico, a grande miséria e a grande misericórdia. Os que a apresentaram encheram-se de vergonha, mas não pediram perdão; a que fora levada perante o Senhor, confundiu-se e foi curada. Disse-lhe o Senhor: "Mulher, ninguém te condenou? Disse ela; Ninguém, Senhor. Disse, então Jesus: Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais" (Jo 8,4-11). Por acaso, Cristo agiu contra a sua Lei? Pois, o Pai não dera a Lei sem o Filho. Se por ele foram feitos o céu, a terra e tudo o que eles contêm, como a Lei seria promulgada sem o Verbo de Deus? Nem Deus, nem o imperador agem contra as suas próprias leis quando dão perdão aos faltosos que confessarem. Moisés é ministro da Lei, mas Cristo é promulgador da Lei. Moisés manda apedrejar, enquanto é juiz, ao invés, Cristo, como rei, dá o perdão. Deus, portanto, dela se compadeceu em sua grande misericórdia, conforme ela aqui roga, pede, exclama, lamenta. Isto não quiseram fazer os que apresentaram a adúltera. Reconheceram o médico, porque lhe mostraram o ferimento, mas não procuraram dele o remédio. Desta maneira agem muitos que não se envergonham de pecar, mas têm vergonha de fazer penitência. Oh! Incrível loucura! Não te coras da ferida, e tens vergonha das faixas? Porventura não é mais fétida e pútrida quando está descoberta? Refugia-te, portanto, junto do médico, faze penitência, dizendo: "Reconheço a minha iniqüidade e o meu pecado está sempre diante de mim".


9 - "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti". Qual o sentido desta palavra? Não fora diante dos homens que Davi cometeu adultério e matou o marido desta mulher? Todos não souberam do ato de Davi? Por que então: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti?" Porque és o único sem pecado. Só é justo para punir aquele que em nada merece ser castigado; é justo censor pois não tem em si algo de repreensível. "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado". É difícil, irmãos, saber a quem são dirigidas estas palavras. O salmista fala, em verdade, a Deus, e é claro que Deus Pai não foi julgado. O que significa: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado?" Ele vê que o futuro juiz deve ser o primeiro julgado, o justo julgado pelos pecadores, e nisto mesmo seria vencedor, porque não havia nele o que julgar. Somente entre os homens pôde dizer com verdade o homem Deus: Se encontraste pecado em mim, declarai-o (Jo 8,46). Mas existiria algo de oculto aos homens, e estes não descobriam o que de fato  havia, porque não era evidente? Em outra passagem afirma o perspicaz examinador de todos os pecados: "O príncipe do mundo vem". Declara: "O príncipe do mundo vem", o príncipe da morte, a infligir a morte aos pecadores, pois, a morte entrou no mundo pela inveja do diabo (Sb 2,24). "O príncipe do mundo vem" (disse o Senhor, quando a paixão estava próxima); "contra mim ele nada pode", não encontrará pecado algum, nada que mereça a morte, nem condenação. Seria como se lhe dissesse alguém: Então, por que hás de morrer? Prossegue: "Mas o mundo saberá que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos! Partamos daqui!" (Jo 14, 30.31). Sofro, diz ele, sem merecer pelos que merecem a morte, para torná-los dignos de minha vida, pois indignamente sofro a morte em seu favor. O profeta Davi diz então a este que não tem pecado algum: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado". Superas todos os homens, todos os juízes, e quem se reputa por justo, que foste injustamente julgado, que tens o poder de entregar a tua vida e poder de novamente retomá-la (Jo 10,18). Vences, portanto, ao seres julgado. Superas a todos os homens; és mais do que todos eles, que por ti foram feitos.


10 - "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado. Eis que fui concebido em iniqüidade". Seria como se dissesse: São vencidos os que fizeram como tu, Davi. Não é pequeno mal, pequeno pecado, cometer adultério com homicídio. Que acontece aos que desde o nascimento, desde que saíram do seio de sua mãe, nada fizeram de semelhante? Também a estes imputas alguns pecados, de sorte que o Senhor supere a todos, ao começar a ser julgado? Davi faz o papel de todo o gênero humano, pondera os vínculos de todos, considera a propagação da morte, nota a origem da iniqüidade, e diz: "Eis que fui concebido em iniqüidade". Por acaso nascera Davi de um adultério? Nascerá de Jessé, homem justo e de sua esposa (1Rs 16,18). Por que razão diz que foi concebido em iniqüidade, senão porque contraiu o pecado original de Adão? A própria necessidade da morte liga-se ao pecado. Ninguém nasce sem contrair a culpa, a pena. Diz em outra passagem o profeta: "Ninguém é puro em tua presença, nem a criança de um dia de vida sobre a terra" (Jó 14,4). Mas, sabemos que no batismo de Cristo os pecados são perdoados, e que este batismo vale para a remissão dos pecados. Se as crianças são inteiramente inocentes, porque as mães correm para a igreja quando elas adoecem? Que pecado apaga aquele batismo, a que se refere aquele perdão? Vejo a criança inocente a chorar, não a se encolerizar. Que lava o batismo? Que dívida se paga com aquela graça? Apaga-se a propagação do pecado. Se aquela criança pudesse falar, te diria, e se já tivesse o entendimento que possuía Davi, te responderia: O que observas em mim, que sou uma criança? É verdade que não vês pecados que tenha cometido, mas fui concebido em iniqüidade e "em pecado me gerou minha mãe". Isento deste vínculo da concupiscência carnal, nasceu Cristo não de um varão, mas de uma virgem que concebeu por obra do Espírito Santo. Dele não se pode dizer que foi concebido em iniqüidade; não se pode dizer: Sua mãe o gerou em pecado. A ela foi dito: "O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra" (Lc 1,35). Por conseguinte, não se diz que os homens são concebidos em iniqüidade e em pecado são gerados pelas mães porque seria pecado a união dos cônjuges, mas porque a geração se produz numa carne sujeita à pena devida ao pecado. O castigo da carne é a morte, e de fato nela é inerente a própria mortalidade. Daí decorre que o Apóstolo não afirma que o corpo há de morrer, mas que está morto. Diz ele: "O corpo está morto, pelo pecado, mas o espírito é vida, pela justiça" (Rm 8,10). Como então, nasceria sem o vínculo do pecado quem é concebido e gerado de um corpo morto pelo pecado? A casta união conjugal não é culpada, mas o pecado original acarreta a merecida pena. O marido não é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto, todos morrem em Adão, mas em Cristo todos são vivificados (1Cor 15,22). "Eis porque", diz o Apóstolo, "por meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque nele todos pecaram" (Rm 5,12). Está bem delimitada a questão: Em Adão todos pecaram. Excetua-se apenas a criança inocente que não nasceu com o pecado de Adão.


11 - "Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria. Amaste a verdade", isto é, não deixaste impunes os pecados, nem mesmo daqueles a quem perdoaste. "Amaste a verdade". Concedeste misericórdia, contudo conservaste a verdade. Perdoas àquele que confessa. perdoas, mas ao penitente. Assim se preserva a misericórdia unida à verdade. Misericórdia porque o homem é libertado; verdade porque o pecado é punido. "Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria". Por que motivo "recônditas?" Por que "incertas?" Porque até a estes Deus perdoa. Nada de tão oculto, nada de tão incerto. Diante desta incerteza, os ninivitas fizeram penitência. Declararam, disseram a si mesmos que deviam pedir misericórdia, apesar das ameaças do profeta, apesar de seu aviso: "Ainda três dias, e Nínive será destruída". Perguntaram-se uns aos outros: "Quem sabe? Talvez Deus volte atrás, arrependa-se e se compadeça". Estavam na incerteza, pois diziam: "Quem sabe?" Na dúvida, fizeram penitência e mereceram misericórdia segura. Prostraram-se com lágrimas, jejuns, cilício e cinza, gemeram, choraram e Deus os poupou (Jn 3, 4-10). Nínive ficou de pé, ou foi destruída? Os homens vêem de um modo e Deus de outro. Penso que se cumpriu o que o profeta predissera. Pondera o que foi Nínive, e vê que foi destruída, derrubada relativamente ao mal, edificada no tocante ao bem, assim como Saulo, o perseguidos, foi derrubado e ergueu-se Paulo, o pregador (At 9,4). Quem não diria que à nossa cidade seria uma felicidade ser destruída de sorte que todos os insensatos deixassem suas futilidades, e acorressem à igreja contritos, pedindo a misericórdia de Deus em relação a seus pecados passados? Não diríamos: Onde está aquela Cartago? Como não é mais o que fora, foi destruída; mas se ela se tornou o que não era, foi edificada. Por esta razão é que foi dito a Jeremias: "Eu te constituo para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar" (Jr 1,10). Daí também aquela palavra do Senhor: "Sou eu quem fere e torno a curar" (Dt 32,39). Fere, extrai a podridão do crime, cura a dor da ferida. Assim fazem os médicos, que cortam, extraem, curam. Armam-se para ferir, usam o bisturi para curar. Mas como os pecados dos ninivitas eram grandes, eles disseram: "Quem sabe?" Essa incerteza Deus tirara de seu servo Davi. Ao responder ele, ao profeta que estava em sua presença e o argüia: "Pequei", logo ouviu o profeta, isto é, do Espírito de Deus que estava no profeta: "O Senhor perdoa a tua falta" (2Rs 12,13). Ele lhe revelou as coisas incertas e recônditas de sua sabedoria.


12 - "Aspergir-me-ás com o hissopo e serei purificado". Sabemos que o hissopo é uma erva insignificante, mas medicinal; suas raízes aderem às pedras. Daí se tirou a comparação, o símbolo da purificação do coração. Também tu firma-te na raiz do amor, a tua pedra. Sê humilde, unida a teu Deus humilde, para que sejas sublime em teu Deus glorificado. Serás aspergido com o hissopo; a humildade de Cristo te purificará. Não desprezes a erva; ao invés, atende à virtude do medicamento. Direi ainda alguma coisa que costumamos ouvir dos médicos, ou experimentar nos doentes. Diz-se que o hissopo é apto a purificar os pulmões. Os pulmões costumam assinalar a soberba. Dali parte o inchaço, o hálito. Foi dito de Saulo, o perseguidor, como sendo Saulo soberbo, que partira para prender os cristãos, respirando morticínio (At 9,1). Respirava morticínio, desejava derramar sangue, tinha os pulmões não purificados. Escuta-o agora, humilde porque foi purificado por meio do hissopo: "Aspergir-me-ás com o hissopo e serei purificado: lavar-me-ás e ficarei mais alvo do que a neve", isto é, purificar-me-ás. Diz o profeta: "Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve" (Is 1,18). É destes fiéis que Cristo tece a veste sem mancha nem ruga (Ef 5,27). Por este motivo, a sua veste no monte, que brilhou ficando alva como a neve (Mt 17,2), representava a Igreja purificada de toda mácula de pecado.


13 - Mas por que o hissopo figura a humildade?

https://santo-agostinho-salmos.blogspot.com/2016/08/salmo-50-miserere-1.html

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário