VIII-
REFLEXÃO
DOMINICAL II
24 de agosto – 21° DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Gisele Canário*
A porta
estreita e o chamado universal: uma reflexão sobre justiça e conversão
I.
INTRODUÇÃO GERAL
As leituras de hoje são um convite para juntos
refletirmos sobre o chamado universal à salvação e a resposta que cada um de
nós deve dar. O tema mais impactante é a tensão entre a misericórdia de Deus e
nossa responsabilidade pessoal. A “porta estreita” é um convite à transformação
interior, onde o esforço não está em obras exteriores, mas em um coração
disposto a abraçar o projeto do Reino de Deus de justiça e inclusão.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS
BÍBLICOS
1.
I leitura (Is 66,18-21)
No capítulo final de Isaías, apresenta-se uma
visão importante de restauração universal, onde Deus reúne todas as nações para
contemplarem sua glória. O texto, pertencente ao período do pós-exílio
babilônico, apresenta as aspirações de uma comunidade que busca redefinir sua
identidade em meio ao desafio de reintegração na terra e convivência com outras
culturas. A intenção do profeta é reafirmar a universalidade da salvação
divina, contrastando com uma visão restritiva da eleição de Israel.
É no versículo 18 que a expressão “conheço
suas obras e seus pensamentos” destaca a onisciência divina, apresentando um
Deus que rompe com as fronteiras étnicas e culturais, e que conduz a humanidade
ao reconhecimento de sua soberania. A menção de nações como Társis, Fut, Lud,
além de Javã e outros territórios, demonstra um conhecimento geopolítico amplo
para a época e simboliza a abrangência da missão salvífica, que alcança os
confins da terra conhecidos pelos antigos. Esses nomes representam povos distantes,
sugerindo um movimento missionário de convocação universal.
Exegeticamente, o termo hebraico kavod, traduzido como “glória”, não se limita a um
atributo estático de Deus, mas carrega o sentido de uma presença dinâmica e
transformadora, que manifesta o poder divino e exige resposta concreta das
nações. A glória de Deus, portanto, revela-se como um chamado à conversão e ao
reconhecimento da sua justiça.
Outro elemento teológico significativo é a
inclusão de sacerdotes e levitas “de todas as nações” (v. 21), rompendo com uma
visão exclusiva do sacerdócio levítico e apontando para uma redefinição da
identidade religiosa de Israel. Este movimento representa uma abertura radical
à diversidade, sugerindo que a eleição não é mais privilégio de um povo
específico, mas uma vocação universal, em que todos podem participar do serviço
a Deus.
2. II leitura (Hb 12,5-7.11-13)
A carta aos Hebreus apresenta uma reflexão
sobre a disciplina divina como uma expressão do amor e cuidado de Deus para com
os fiéis. No contexto das provações e perseguições enfrentadas pela comunidade
cristã, a “correção” divina é compreendida não como castigo, mas como um
processo de formação na fé, um caminho pedagógico de crescimento espiritual e
fortalecimento moral. O autor recorre a uma linguagem familiar aos leitores,
utilizando a metáfora paterna, em que Deus é retratado como um Pai amoroso que
instrui e convida seus filhos para a vida em retidão.
Exegeticamente, o termo grego paideia, frequentemente traduzido como “educação” ou
“disciplina”, tem um significado amplo, englobando instrução, correção e
treinamento com o objetivo de promover o amadurecimento moral e espiritual. No
pensamento helenístico e na tradição judaica, a paideia estava
associada ao desenvolvimento integral da pessoa, envolvendo a aquisição de
conhecimento, a prática da virtude e a construção do caráter.
As imagens das “mãos cansadas” e dos “joelhos
enfraquecidos”, inspiradas em Isaías 35,3, evocam a exaustão e o desânimo
enfrentados pelos fiéis diante das dificuldades, ao mesmo tempo que apontam
para a necessidade de renovação espiritual e perseverança. O autor encoraja a
comunidade a se fortalecer e a prosseguir com firmeza no caminho da fé,
confiando na ação restauradora que vem de Deus, amoroso e cheio de compaixão.
3. Evangelho (Lc 13,22-30)
No Evangelho deste domingo, Jesus responde à
questão sobre o número dos que serão salvos com uma reflexão sobre esforço
pessoal e verdadeira conversão. A imagem da “porta estreita” simboliza as
exigências do discipulado autêntico, destacando que a entrada no Reino de Deus
não se dá por privilégios herdados, mas por um compromisso pessoal, marcado
pela renúncia e pela vivência concreta dos valores do Evangelho.
Historicamente, o Evangelho de Lucas foi
escrito para comunidades compostas por judeus e gentios, que enfrentavam
tensões relacionadas à inclusão e à identidade no novo povo de Deus. A
expressão “virão do Oriente
e do Ocidente” (Lc 13,29) é
uma alusão às promessas escatológicas do Antigo Testamento (cf. Is 43,5-6; Sl
107,3) e reflete a teologia universalista característica de Lucas, enfatizando
que a salvação está aberta a todos os povos, rompendo com a concepção
exclusivista da eleição de Israel.
Do ponto de vista linguístico, o verbo
grego agōnizomai, traduzido como “fazer esforço”, evoca a ideia de
uma luta árdua e contínua, remetendo às competições atléticas da época. Essa
escolha de palavra reforça que a adesão ao Reino de Deus exige perseverança,
autodisciplina e determinação. O esforço mencionado por Jesus implica uma busca
ativa pela justiça e uma transformação radical da vida. Além disso, a presença
do termo adikía, traduzido como “injustiça”,
denuncia uma prática religiosa superficial e incoerente, que não gera frutos de
retidão nem reflete uma verdadeira mudança de coração.
A estrutura narrativa do texto adverte contra
a falsa segurança baseada em proximidade cultural ou religiosa com Jesus,
apontando para a necessidade de uma resposta concreta ao chamado divino. Sem
dúvida, esse Evangelho convida a uma conversão genuína, em que a prática da
justiça, a humildade e a inclusão dos marginalizados são sinais autênticos do
Reino de Deus. Dessa forma, Lucas enfatiza que a salvação é um convite aberto a
todos os que, com sinceridade, se dedicam ao caminho da fé com esforço e
fidelidade.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Universalidade da
salvação. Isaías nos lembra que Deus chama todos os povos para participar
de sua glória. Como podemos, como comunidade cristã, viver e promover essa
inclusão?
Disciplina como amor. A correção divina não é
punitiva, mas educativa. Estamos abertos a reconhecer os desafios da vida como
oportunidades de crescimento humano e espiritual?
Porta estreita e
conversão. Jesus nos convida a um compromisso real com o Reino. Que
esforços estamos dispostos a fazer para alinhar nossas vidas aos valores do
Evangelho?
IV. CONCLUSÃO
As leituras de hoje nos desafiam a abraçar o
chamado universal de Deus, reconhecendo que a salvação é um dom que exige
compromisso. Em um mundo onde ainda enfrentamos desigualdades e exclusão, o
convite é urgente: precisamos exigir de nossos governantes que acolham
refugiados, migrantes e marginalizados. Segundo dados da ONU, mais de 100
milhões de pessoas estão atualmente deslocadas de suas casas devido a guerras,
violência e crises climáticas. Inspirados pelo projeto de Jesus, que possamos
caminhar pela “porta estreita”, sendo testemunhas vivas de inclusão, justiça e
restauração, construindo um mundo mais humano e solidário.
Gisele Canário*
*é mestra em
Teologia (Exegese Bíblica Antigo Testamento) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Teologia pela Instituição
São Paulo de Estudos Superiores e licenciatura em Geografia pela Universidade
Cruzeiro do Sul. É assessora no Centro Bíblico Verbo onde atua com a orientação
de comunidades eclesiais e cursos bíblicos, para estudos bíblicos, gravação de
vídeos, formação em material para leitura online desde 2011.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/24-de-agosto-21-domingo-do-tempo-comum/