domingo, 20 de junho de 2021

AS FESTAS JUNINAS- PARTE II

 

3.    Contribuições indígenas às festas juninas

 

As celebrações religiosas populares de matriz portuguesa, com o tempo, passaram a receber da cultura nativa elementos indígenas, por serem festas comemoradas por mestiços, os chamados caboclos ou caipiras, isto é, “moradores do mato” ou moradores do interior.

 

Mesmo com o processo de urbanização, até meados do século passado, as cidades mantiveram essas comemorações com o colorido mestiço.

 

Os santos juninos, sobretudo São João e São Pedro, passaram a receber atributos dos heróis míticos de matriz tupi-guarani, como Tupã e Karaí ou Karaíba. É possível que São João fosse identificado com Karaí-ru-ete ou Karaí, entidade que se manifesta no fogo, no corisco e no “crepitar da chama”. É uma das quatro divindades do panteão guarani (GODOY, 2003, p. 74-75). Daí a importância da fogueira e da brasa nessas comemorações.

 

Os portugueses foram chamados de caraíbas no século XVI, nome genérico dado aos demiurgos tupis (THEVET, 2009, p. 56). Sua pele branca, as armas de fogo que traziam e sua procedência, vindos pelo mar, levaram-nos a serem identificados como demiurgos.

 

Esse substrato ancestral talvez explique por que cada família, sobretudo no Nordeste, costuma fazer sua fogueira em frente da casa, numa maneira de homenagear o santo e pedir-lhe proteção.

 

Não é de estranhar a tradição “casamenteira” – encontrada nessa região pelo barão de Studart no século passado – que associa o fogo à adivinhação. Tomava-se um ramo de manjericão e, depois de passá-lo pela fogueira, ele era jogado pela moça casadoura sobre o telhado. Se no dia seguinte continuasse verde, o noivo seria um jovem; se murchasse, seria um velho (CASCUDO, 1988, p. 405).

 

A festa de São João fundiu-se no Brasil com a festa tupi do milho, celebrada em agosto, quando se comemorava o início do ano-novo, tradição ainda conservada entre os Guarani Mbyá. Este povo denomina essa época de Ara Pyaú (Tempo Novo). Segundo Luciana Galante, “os fortes ventos (yvytu) iniciam o período, anunciando a chegada da primavera. É chegada a hora de realizar o batismo da erva-mate, o ka’a nheemongaraí, cujas projeções sobre o ano-novo são interpretadas pelo Xeramoi [pajé]” (GALANTE, 2011, p. 57). É o momento não só de realizar o “batismo” da erva-mate, como também de celebrar o nheemongaraí, cerimônia de nominação, quando as crianças recebem o nome guarani dado pelo pajé. Devido a influências católicas, esse ritual é chamado de “batismo guarani”.

 

Nesse período, em algumas aldeias, ocorre a “festa do milho”, quando se reúnem a comunidade e os parentes de aldeias vizinhas numa comemoração que pode durar vários dias. É o que constatamos na aldeia Tekoá Ytu, da terra indígena do Jaraguá, na capital paulista.

 

Dessa tradição nativa permaneceu, em nossa cultura mestiça, não o “batismo do milho”, ligado à bênção das primícias agrícolas, mas o “batizado da boneca de milho”, como pude identificar numa foto, da década de 1950, de um antigo morador de minha terra natal (Acervo fotográfico de Águas da Prata, 1992). Nesse caso, houve uma transposição de significantes, permanecendo o significado subjacente. Essa festa rural, que caiu em desuso, era uma oportunidade para as famílias realizarem um encontro de vizinhos.

 

Não se pode esquecer o papel do milho nas culturas indígenas, sendo um dos alimentos mais ricos da agricultura da América. Entre os Maia do México e Guatemala, é reverenciado como uma divindade, Yum Kaax, o senhor do milho (CENAMI; CCD, 1993, p. 33-36).

 

No Sudeste e Nordeste, as comemorações são marcadas por comidas à base de milho – numa recuperação da antiga festa do milho, de tradição tupi –, cujos nomes são também de origem tupi: a canjica (do guarani: kangy = mole + kaa = planta), feita com milho seco despolpado e cozido; o curau (kure = ralado + u = comida), creme de milho ralado; a pamonha (pomonga = pegajoso), creme de milho cozido na água fervente e servido, já endurecido, na casca de milho, fazendo lembrar pratos indígenas assados em folha de bananeira.

 

Outros alimentos elaborados com milho também aparecem, como o bolo de fubá, a pipoca e o milho verde assado na brasa. No Nordeste, com a influência africana, a canjica passou a ser chamada de munguzá, termo de língua banto.

 

O quentão lembra o cauim indígena, que antigamente era feito com mandioca ou milho fermentado e servido morno, como ocorre ainda hoje entre os Guarani Mbyá. Atualmente, na ausência da fermentação natural, faz-se o quentão com cachaça e gengibre.

 

Além do milho, encontram-se nessa festa outros alimentos de origem indígena, como a batata-doce e a mandioca, servida de diversas formas, assada, cozida ou como bolo. Em Minas Gerais são acrescentados o famoso pé de moleque e a paçoca de amendoim, alimento indígena. No Sul, é agregado o pinhão, alimento básico do povo Kaingang e de outros povos que viviam da coleta desse fruto no Sudeste, como os Guaianá e Guarulho, hoje extintos.

 

Quanto a São Pedro, foi identificado com Tupã, a todo-poderosa entidade indígena, o “senhor da chuva e dos trovões”. Embora não fosse o deus maior do panteão tupi, muitas vezes assumiu o papel primordial, como se lê nos registros de missionários e cronistas coloniais. O deus maior, que seria Monã ou Monhã, não tinha culto e era um “deus escondido”. Como registrou o capuchinho Thevet, “os selvagens deste lugar mencionam um Grande Ser, cujo nome em sua língua é Tupan, acreditando que viva nas alturas e faça chover e trovejar” (THEVET, 1978, p. 99).

 

Essa ligação entre Tupã e São Pedro manifesta-se em várias regiões do Brasil, quando se identifica São Pedro com o responsável pela chuva: é frequente dizer que se precisa “pedir chuva a São Pedro”, quando há estiagem, ou que “São Pedro exagerou na chuva”, quando há muita água. Existe até a expressão popular “mandachuva”, com duplo significado: no sentido original, atualmente desconhecido, devia referir-se a Tupã; no sentido analógico, refere-se a um chefe, isto é, “àquele que manda”.

 

São Pedro aparece também num conto popular baiano que o aproxima dos heróis míticos tupis. Foi recolhido por João da Silva Campos, no Recôncavo Baiano, na década de 1920, e publicado por Basílio de Magalhães.

 

Num povoado vivia um velho com uma filha e três filhos. Certo dia, apareceu um rapaz que pediu a moça em casamento. Pedido aceito, o jovem levou-a para sua casa. Nem imaginava ela que era São Pedro. Ela vivia bem, mas sentia falta do marido, que passava muito tempo fora cuidando das ovelhas. Um dia um dos irmãos veio visitá-la, e ela reclamou do marido. O irmão sugeriu então ao cunhado fazer, em seu lugar, as tarefas de pastor, de modo que o outro tivesse mais tempo para ficar com a esposa. O marido aceitou, mas no caminho surgiram dificuldades que não foram enfrentadas pelo rapaz. Este, ao voltar, foi enviado para casa, pois São Pedro lhe disse que não tinha dado conta da tarefa.

 

O mesmo ocorreu com o segundo irmão. Só o terceiro conseguiu enfrentar os desafios. E, voltando para a casa da irmã, foi bem acolhido pelo cunhado. A história termina com São Pedro, depois de lavar os pés da mulher e do cunhado, colocando-os nas palmas da mão e subindo com eles para o céu (MAGALHÃES, 1939, p. 300-303).

 

Tal narrativa assemelha-se muito aos mitos tupis, recolhidos no século XVI pelo capuchinho André Thevet, nos quais os diversos Karaíba convivem com os humanos, protegendo-os ou castigando-os, e transitam com facilidade entre a terra e o céu (THEVET, 2009, p. 66-75).

 

Quanto ao mastro português, encontramos um similar na tradição tupi, como registrou o capuchinho Claude d’Abbeville. Ele escreveu sobre o hábito dos Tupinambá do Maranhão de “fincar, à entrada de suas aldeias, um madeiro alto com um pedaço de pau atravessado por cima; aí penduram quantidade de pequenos escudos feitos de folha de palmeira e do tamanho de dois punhos. Neles pintam com preto e vermelho um homem nu”. Ao serem indagados sobre o objetivo daquele mastro, os indígenas responderam que “seus pajés haviam recomendado para afastar os maus ares” (D’ABBEVILLE, 1975, p. 253).

 

4.    As festas juninas atuais

 

Com a urbanização, essas celebrações foram levadas para a cidade, e no Sudeste, especialmente no estado de São Paulo, tornaram-se festas carregadas de preconceitos, reproduzindo o estereótipo do “caipira”: o homem aparece com roupas velhas e remendadas, dente cariado, chapéu de palha velho, cigarro de palha na orelha, botina velha… A mulher, com trança, vestido de chita e pintura do rosto exagerada.

 

Contudo no Nordeste, que conserva traços fortes da cultura indígena, essa festa felizmente conseguiu cidadania, sem sofrer representação preconceituosa. Não há “roupas caipiras”, mas vestidos bem confeccionados e de bom gosto. É a festa mais importante em vários estados, atraindo turistas, como se vê em Caruaru, em Pernambuco ou em Campina Grande, na Paraíba. Em todo o Nordeste, as férias escolares do meio do ano foram antecipadas para junho, para que alunos e professores organizem essas festas e delas participem. Até deputados e senadores promovem um recesso branco para se fazerem presentes nessas comemorações.

 

Nos festejos juninos, a quadrilha, com o “casamento caipira”, é sempre presente. Este último pode ser analisado como uma paródia do cerimonial católico, própria do teatro popular colonial, na qual um padre bêbado tenta casar um noivo ingênuo com uma noiva sirigaita e, após a cerimônia, o público é surpreendido por um delegado que leva presos os convidados bêbados. Contra esse tipo de representação jocosa, a Igreja católica do século XVIII foi muito severa, proibindo encenações que pudessem depor contra a instituição (DEL PRIORE, 1994, p. 91-104). Entretanto a sátira contra o clero perdurou por todo o século XIX, como relata John Lucook, comerciante inglês que esteve no Brasil entre os anos de 1808 e 1818 e pôde assistir a peças teatrais nas quais os clérigos eram ridicularizados (LUCCOCK, 1975, p. 61).

 

Pode-se também ver aí uma sátira contra a nobreza, deposta com a República. A quadrilha, baile das festas da corte imperial do Rio de Janeiro, foi parodiada, sendo mantidas, inclusive, palavras francesas como en avant e en arrière (CASCUDO, 1988, p. 646).

 

As músicas da quadrilha não eram evidentemente as dos bailes da corte imperial, e sim das regiões interioranas, que elaboraram melodias regionais com certa influência indígena, como as músicas do Nordeste que tiveram a contribuição da cultura do povo Kariri, entre as quais o baião, o forró e o xaxado (PREZIA; JOSIVAN, 2006, p. 218). No Sudeste, as músicas “caipiras” ou sertanejas foram influenciadas pela tradição tupi-guarani, sendo mais chorosas e lentas (PREZIA; JOSIVAN, 2006, p. 180). No entanto, hoje predominam as músicas nordestinas, que se tornaram típicas, sendo identificadas como “músicas de quadrilha”.

 

Se na festa junina o casamento é geralmente visto como paródia, em algumas regiões do interior o casamento das festas juninas era encarado de forma mais séria, como uma espécie de contrato provisório, já que a presença do padre católico não era constante. Falava-se então de “casamento na fogueira”. Artur Neiva e Belizário Pena narram esse tipo de casamento nos “gerais” do Piauí e Goiás, que ocorria na noite de São João. Era realizado “junto à fogueira, em presença dos pais dos noivos, padrinhos, pessoas da família e convidados”, e “considerado válido para todos os efeitos” (CASCUDO, 1988, p. 407).

 

Havia também o compadrio de fogueira, quando alguém se tornava “padrinho” de uma criança, como forma de comprometê-lo num futuro batizado, a ser realizado posteriormente pelo padre, na cidade.

 

Conclusão

 

Por tudo que se apresentou, vê-se que, diante da sociedade urbana, tradições de raiz, como as festas juninas, vão perdendo elementos importantes ou até desaparecendo, num empobrecimento da cultura nacional. Hoje essas festas estão restritas às escolas e paróquias católicas, com certa descaracterização, a ponto de nelas encontrar-se até “cachorro quente”. Por isso, é importante conhecer esse passado cultural, para que essa festa se realize de forma conveniente, resgatando a manifestação folclórica e procurando entender as contribuições das culturas nativas. Fica aqui também o recado para o agente de pastoral estar atento ao catolicismo popular, para que possa compreender esse universo religioso mestiço e não se excluam essas manifestações como elementos nocivos ou atrasados. É o “Brasil profundo” que se esconde no interior de muita gente.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. (Coleção Reconquista do Brasil, 2ª série, 151).

CENTRO NACIONAL DE AYUDA A LAS MISIONES INDÍGENAS DE MÉXICO; COMISIÓN CRISTIANA DE DESARROLLO (CENAMI; CCD). Teologia india mayense. México: Abya-Yala, 1993.

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KIDDER, Daniel P.; FLETCHER, James C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. v. 2. (Coleção Brasiliana, 205 A).

LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. (Coleção Reconquista do Brasil, 21).

MAGALHÃES, Basílio de. O folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939.

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SALES, Nívio Ramos. Rezas que o povo reza. 10. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

THEVET, André. A cosmografia universal de André Thevet, cosmógrafo do rei. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2009. (Coleção Franceses no Brasil, séc. XVI e XVII, 2).

 

Benedito Prezia(*)

 

Benedito Prezia é doutor em Antropologia pela PUC-SP, pesquisador em História Indígena e autor de História da resistência indígena, 500 anos de luta (Expressão Popular, 2017), entre outras publicações. Desde 1983 atua junto aos povos indígenas e atualmente coordena o Programa Pindorama para indígenas universitários na PUC-SP. Foi professor de Religiões Indígenas nas Faculdades Integradas Claretianas (São Paulo) e de Fenômeno Religioso no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).

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