domingo, 13 de junho de 2021

FESTAS JUNINAS

AS RAÍZES INDÍGENAS DAS FESTAS JUNINAS – PARTE I

Por Benedito Prezia (*)


Introdução

 

Poucos imaginam que as festas juninas do Brasil receberam influência da cultura indígena, sobretudo da cultura tupi, apesar de muitos elementos serem de tradição européia. Essa incorporação se deu por meio da cultura mestiça e foi se moldando não só ao longo do período colonial, como também em épocas mais recentes. Infelizmente, o desconhecimento das tradições indígenas tem levado a população brasileira a ignorar esse passado, talvez por preconceito e pela dificuldade em aceitar a existência de nossa “cultura misturada”. Como a cultura predominante está eliminando muitas tradições, seria importante fazer uma análise desses elementos ancestrais, para não se perder essa riqueza cultural. Inicialmente, faremos um apanhado das tradições européias dessas festas, analisando os elementos nativos, e finalizaremos com um olhar sobre as festas juninas atuais.

 

As antigas comemorações de São João na Europa e no Brasil colonial

 

Para entendermos as raízes indígenas das festas juninas, precisamos voltar às raízes portuguesas das comemorações dos santos de junho – Santo Antônio, São João e São Pedro – e situá-los no contexto rural. Essas festas já possuíam na Europa elementos do mundo agrário, pois estavam ligadas à semeadura e à colheita.

 

Por isso, não podemos buscar as figuras desses santos nos relatos dos evangelhos nem em suas biografias eruditas, mas devemos ver como entraram no imaginário popular. À medida que pesquisamos, descobrimos que muitos traços das devoções recuperam cultos antigos, que sobreviveram nos povos recém-cristianizados da Europa.

 

A festa de São João coincidia, na Europa, com o solstício de verão – o dia mais longo do ano –, ocasião em que eram celebrados rituais agrícolas, pedindo boa colheita e agradecendo as primícias do campo. Como observou Câmara Cascudo em um de seus estudos, era nesse momento que “as populações do campo festejavam a proximidade das colheitas e faziam sacrifícios para afastar os demônios da esterilidade, pestes dos cereais e estiagens” (CASCUDO, 1988, p. 404). Na França, essa festividade estival é chamada de Feu de Saint Jean (“Fogo de São João”), sendo celebrada com fogueiras e danças, tradição que vem se perdendo a cada ano.

 

O fogo foi elemento muito importante nos rituais de antigas culturas. Os antigos celtas celebravam uma festa no dia 1º de maio para comemorar o início do verão. Nessa ocasião, eram acesas grandes fogueiras, no meio das quais os druidas, seus sacerdotes, faziam passar o gado pela brasa, para livrá-los de doenças (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 441). Talvez esse traço arcaico tenha se mantido na cultura lusitana, que guarda um substrato dos antigos ocupantes da península Ibérica – godos e visigodos –, pois havia o hábito de passar descalço pelas brasas. No Brasil, isso foi mantido pelos “devotos do santo”, geralmente negros e mestiços, que desafiavam a lei natural passando descalços no braseiro da fogueira de São João, como pude presenciar na minha infância, no sul de Minas Gerais. Dessa forma se demonstrava a fé no santo, protetor do corpo e do espírito.

 

No Brasil colonial, as festas juninas tiveram grande aceitação nas missões jesuíticas e nas vilas luso-brasileiras. O padre Fernão Cardim, no final do século XVI, escreveu que, entre os Tupi do litoral, três festas celebram estes índios com alegria, aplauso e gosto particular. A primeira são as fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro. A segunda é a festa de ramos […], a terceira, que mais que todas festejam, é dia de cinza (CARDIM, 1978, p. 191).

 

Para descobrir a figura do São João das festas juninas, não podemos buscar o João Batista dos evangelhos, um personagem austero e rígido – como se vê nas pregações que fazia à beira do rio Jordão –, cujas denúncias contra o concubinato do rei Herodes o levaram à prisão e à morte. Temos, antes, de procurá-lo na Europa recém-cristianizada, sobretudo na península Ibérica. Lá o precursor do Messias assumiu outro perfil, incorporando certamente qualidades de algum herói mítico celta ou gótico e tornando-se “um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, danças, músicas, bebidas e uma marcada tendência sexual nas comemorações populares” (CASCUDO, 1988, p. 404). Isso se deve às comemorações tradicionais dos cultos agrários, que ocorriam nesse período estival, com o aquecimento do clima e com o aparecimento dos primeiros frutos. É possível também que essa comemoração de verão levasse aos namoros, que podiam terminar em encontros amorosos e na fecundidade matrimonial.

 

No Brasil, a festa junina, como registra Mello Moraes Filho, tinha também o “banho de São João”. Ocorria aos primeiros raios do sol, “porque depois as águas perderiam de sua virtude” (MORAES FILHO, ca. 1900, p. 110). Esse banho “gozava de propriedades preservativas e miraculosas” (idem, ibidem) e, certamente, levava a encontros casamenteiros.

 

No Pará foram identificadas rezadeiras e cartomantes que “tiravam a sorte de São João”. A prática consistia em encher um copo com água “na noite do dito santo e lançar no mesmo copo um ovo quebrado, isto é, clara e gema, fazendo uma cruz, rezando um Pai-Nosso e uma Ave-Maria ao dito santo, para que mostrasse o que havia de suceder a tal e qual pessoa”, como se lê numa denúncia feita ao Santo Ofício na visitação realizada em 1769 (DEL PRIORE, 1994, p. 125).

 

Em outras regiões, como em Itapira, interior de São Paulo, não há registro dessas ações mágicas e João Batista assume uma postura mais séria. Foi tido como “padrinho de Jesus”, segundo o depoimento de um morador, registrado por Carlos Rodrigues Brandão: “Padrinho de Jesus é João Batista. Ele [Jesus] respeita João Batista. Ele é Deus, ele é nosso Deus, mas respeita João Batista. Quem não respeita seu padrinho?” (BRANDÃO, 1986, p. 182).

 

Não deixa de ser curiosa sua representação iconográfica, em que aparece não como um jovem dos cultos agrários nem de maneira mais formal, como nas imagens das igrejas, mas como criança abraçada a um cordeiro, como se vê nas estampas erguidas no mastro da festa junina tradicional. Valeria a pena pesquisar melhor essa representação.

 

As celebrações de Santo Antônio e São Pedro

 

Outro santo do ciclo junino é Santo Antônio, que chegou ao Brasil com os primeiros colonos portugueses, tornando-se muito popular. Sua festa costuma ser preparada com uma trezena, isto é, com encontros religiosos, que terminam no dia 13 de junho. Chamado “pai dos pobres”, na sua festa é distribuído o pão bento, que as pessoas levam para casa, pedindo que nunca falte o alimento.

 

É invocado para encontrar não só objetos perdidos, como também o marido ideal. Por excelência, trata-se de “santo casamenteiro”. Seria uma reminiscência dos cultos romanos ou góticos? É mais uma dúvida a ser resolvida numa pesquisa sobre as religiões ibéricas.

 

Essa ligação com a busca do amado explica por que, no Brasil, o Dia dos Namorados ocorre na véspera de sua festa. Uma tradição portuguesa faz que as mulheres em busca de marido o amarrem num poço ou na janela da casa até que o pretendente apareça.

 

A proximidade com a festa de São João fez que Santo Antônio recebesse também a tradicional fogueira, fogos de artifício e mastro.

 

Outra dimensão pouco conhecida localizei num livro de rezas populares, em que se pede ao santo que torne “invisível” quem o invoca e o livre de malefícios:

 

Meu glorioso Santo Antônio, num caminho escuro caminho eu. Meus inimigos encontrarei, se tiverem olhos não me verão; se tiverem boca, não falarão; se tiverem corda, não me amarrarão; os braços dos meus inimigos para mim enfraquecerão; os corações dos meus inimigos para mim brandos são, porque eu vivo amparado no hábito do meu glorioso Santo Antônio (SALES, 2006, p. 54).

 

Esses pedidos mostram influências da religiosidade indígena e, talvez, africana.

O terceiro santo junino é São Pedro. Embora o calendário litúrgico o comemore juntamente com São Paulo, este último não entrou nas comemorações populares.

 

Na devoção popular brasileira, São Pedro foi identificado como o guardião do céu, aquele que controla a entrada dos falecidos ao paraíso. A iconografia o representa com chaves às mãos, numa alusão à passagem do evangelho em que Cristo diz que lhe dará as chaves do céu. A farta literatura de cordel do Nordeste explora esse seu atributo, pelo qual o santo disputa com o demônio as almas dos falecidos.

 

São Pedro teve direito a comemoração semelhante às festas de São João, com fogueira e fogos de artifício, e, por sua posição entre os santos, os fogos eram abundantes. Parece que antigamente a comemoração pirotécnica era muito mais acentuada do que nos dias atuais. É o que relatou o pastor estadunidense Daniel Kidder, quando de sua viagem pelo interior de São Paulo, em 1855. Ao chegar a Campinas, no dia 28 de junho, foi surpreendido pelos festejos:

 

Era a “véspera de São Pedro”; e todo homem, que tinha um Pedro ligado a seu nome, sentia-se na obrigação de acender uma imensa fogueira diante de sua porta e soltar uma porção de foguetes, além de descarregar inúmeras pistolas [revólveres], mosquetes e morteiros. […] Os clarões e o barulho eram tais, que sem qualquer esforço de imaginação, ter-se-á acreditado estar perto de alguma cidade sitiada, durante um violento bombardeio (KIDDER; FLETCHER, 1941, v. 2, p. 107).

 

Em regiões litorâneas, pelo fato de ter sido pescador, sua festa é muito celebrada por pescadores com procissão de barcos, diferentemente das comemorações interioranas.

 

Por ser guardião do paraíso, São Pedro é invocado para pedir esclarecimento de situações duvidosas, como revela esta oração popular, cuja região de origem infelizmente não foi citada pelo autor que a compilou:

 

Meu glorioso Pedro, vós a Deus negastes três vezes antes do galo cantar; correstes e vos escondestes até vos arrependerdes; sentastes num lazeiro de pedra e vos pusestes a chorar. Deus mandou um anjo atrás de vós, dizendo: Pedro, Pedro, Pedro, a chave do céu é vossa. Assim, meu glorioso senhor São Pedro, como estas palavras são santas e verdadeiras, mostrai-me em sonho o que desejo ver em águas claras, campos verdes, casas caiadas e cavalheiros bem trajados. Se não for verdade, mostrai-me águas turvas, campos secos, casas velhas e cavalheiros mal trajados. Rezar um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e uma Salve-Rainha até o “nos mostrai” (SALES, 2006, p. 76).

 

Outros traços característicos dessas festas são as bandeirinhas coloridas e o levantamento do mastro. Este último remonta à cultura européia, com sua tradição de erguer mastros comemorativos nas festas da família real. Foi o que ocorreu na Bahia em 1718, por ocasião das celebrações pelo aniversário do filho mais velho do conde de Vila Verde, quando se ergueu um mastro “pintado de branco e carmesim e coroado de uma grinalda dourada” (DEL PRIORE, 1994, p. 33). Depois, passou-se a levantá-lo em festas religiosas, como a de São Gonçalo, realizada pela Irmandade dos Pardos de Nossa Senhora do Livramento (DEL PRIORE, 1994, p. 33-34).

 

Com o tempo, essa tradição permaneceu apenas nas festas juninas, ocasião em que nos mastros eram amarrados os frutos da terra e, sobretudo, espigas de milho. Em algumas regiões, havia o hábito de queimar o mastro, guardando os carvões, que poderiam dar proteção contra raios e trovões (DEL PRIORE, 1994, p. 33-34).

 

As festas juninas foram as únicas que conservaram essa tradição. Sobre os mastros se colocam estampas de pano dos três santos juninos. Em alguns lugares, havia também um mastro para brincadeira, o chamado “pau de sebo”. Era besuntado de graxa e, na sua ponta, se colocava uma nota de alto valor, prêmio para quem a alcançasse. Essa brincadeira ainda presenciei em minha infância, no interior paulista.

 

(Continua no próximo Domingo)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1986.

CARDIM, Pe. Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. (Coleção Brasiliana, 168).

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. (Coleção Reconquista do Brasil, 2ª série, 151).

CENTRO NACIONAL DE AYUDA A LAS MISIONES INDÍGENAS DE MÉXICO; COMISIÓN CRISTIANA DE DESARROLLO (CENAMI; CCD). Teologia india mayense. México: Abya-Yala, 1993.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos da ilha do Maranhão. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. (Coleção Reconquista do Brasil, 19).

DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Coleção A Caminho das Utopias).

GALANTE, Luciana. Investigação etnobotânica na comunidade Guarani Mbya de Tekoa Pyau. 2001. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001.

KIDDER, Daniel P.; FLETCHER, James C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. v. 2. (Coleção Brasiliana, 205 A).

LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. (Coleção Reconquista do Brasil, 21).

MAGALHÃES, Basílio de. O folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939.

MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, [ca. 1900].

PREZIA, Benedito. Caipira. World folklore ad folklife. Connecticut/London: Greenwood, 2006. v. IV, p. 177-181.

JOSIVAN, Francisco. Sertão. World folklore ad folklife. Connecticut/London: Greenwood, 2006. v. IV, p. 216-219.

SALES, Nívio Ramos. Rezas que o povo reza. 10. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

THEVET, André. A cosmografia universal de André Thevet, cosmógrafo do rei. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2009. (Coleção Franceses no Brasil, séc. XVI e XVII, 2).

 

Benedito Prezia

(*) Benedito Prezia é doutor em Antropologia pela PUC-SP, pesquisador em História Indígena e autor de História da resistência indígena, 500 anos de luta (Expressão Popular, 2017), entre outras publicações. Desde 1983 atua junto aos povos indígenas e atualmente coordena o Programa Pindorama para indígenas universitários na PUC-SP. Foi professor de Religiões Indígenas nas Faculdades Integradas Claretianas (São Paulo) e de Fenômeno Religioso no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).

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