domingo, 20 de junho de 2021

DISSE SANTO AGOSTINHO

SOBRE A VIDA FELIZ

A filosofia greco-romana teve como preocupação central a busca da felicidade. Agostinho tomou o mesmo objeto para análise, contudo, com algumas mudanças na visão da eudaimonia: mudanças com relação ao lugar e ao método para alcançar a felicidade. Ademais, a filosofia não é vista pelo pensamento agostiniano como um fim em si mesma, ela passa a ser um meio, é o “porto”.

 

A busca pela eudaimonia é um problema que passa por toda a obra do Bispo de Hipona. De acordo com Agostinho, a razão para filosofar é a felicidade e esta é algo imanente ao homem. Sendo assim, a felicidade faz parte de sua natureza.

 

Destarte, as perguntas componentes da obra A vida feliz, de Agostinho, são sobre onde está a felicidade, como e onde o homem pode ser feliz. São a esses problemas que Agostinho tenta responder ao longo desse diálogo.

 

Devido à importância dessas questões, tanto no pensamento greco-romano quanto no pensamento de Agostinho, temos por objeto, no presente trabalho, a análise do segundo momento do diálogo A vida feliz. Neste ponto do diálogo – do parágrafo 10 ao 12 – Agostinho faz um itinerário argumentativo, juntamente com seus discípulos, com a finalidade de descobrir qual é o bem que a alma deve ter posse para ser feliz e quais são as maneiras de a alma obter esses bens.

 

Agostinho busca saber qual é o alimento necessário à alma e questiona seus interlocutores se aquele não seria a ciência, o conhecimento. Mônica – mãe de Agostinho – responde à questão afirmando que o alimento da alma não é outra coisa senão a ciência e o conhecimento das coisas. É das especulações e pensamentos que a alma se alimenta. Assim, os homens ignaros encontram-se em jejum, famintos já que estão vazios de ciência e cheios de maldades e vícios.

 

Agostinho fala sobre a falta de alimento para a alma dizendo que, assim como o corpo, a alma, quando privada de alimento, fica exposta a doenças acarretadas por suas carências. A isso chama de malignidade – nequitia – a qual é caracterizada pela filosofia agostiniana como uma decomposição, como raiz de todos os vícios porque é o nada, o vazio.

 

A ignorância da alma é identificada com a perversão moral e isso implica uma relação entre conhecimento e moral devido ao fato de que estes não existem de modo isolado. Já sabendo que a alma viciada possui nequícia, especula-se qual o nome da virtude possuída pela alma nutrida de ciência: esta virtude é a frugalidade. A frugalidade é o oposto da nequícia, é uma virtude que evoca fecundidade. Já a nequícia relaciona-se à esterilidade. Agostinho afirma que a virtude deve ser associada ao que é idêntico a si mesmo, ao que é imutável, enquanto o vício é associado ao mutável: “Quando existe algo que perdura, se mantém, não se altera e sempre fica semelhante a si mesmo, aí está a virtude” (AGOSTINHO, II, 8).

 

A frugalidade, segundo o filósofo, é o elemento mais belo da virtude, é uma virtude dos que tem a alma plena, preenchida de conhecimento. Não obstante, nota-se que plenitude e frugalidade são duas noções indissociáveis da filosofia agostiniana: a alma virtuosa é plena de modo necessário. O mesmo ocorre para a relação existente entre a nequícia e o nada: a alma viciada é vazia. Conforme se pode notar nesta parte da obra, a investigação acerca do alimento da alma ocorre partindo de um critério de imutabilidade, pois Agostinho encontra-se a elaborar um conceito de alma imaterial e, dessa forma, o alimento desta também deve ser imaterial e imutável. O vício é tomado como o nada que triunfa, como mutável. A virtude, por sua vez, é a identidade, não perece, é imutável. O elemento de maior importância e belo da virtude é a frugalidade (ou temperança). A obtenção da virtude é de suma importância, pois “virtude é o que confere à alma sua perfeição e a torna boa” (GILSON, 2007, p. 24).

 

Agostinho finaliza o oitavo parágrafo afirmando que saber que a alma possui alimentos saudáveis e insalubres, é o caminho para se buscar a felicidade. São oferecidos alimentos para a alma e para o corpo no dia de seu aniversário. Todavia, o alimento para a alma só será servido se todos os presentes no diálogo tiverem apetite dele. O primeiro momento do capítulo II – o que corresponde ao primeiro dia do diálogo – tem seu desfecho quando Agostinho relaciona a metáfora alimentar com a data de início do diálogo.

 

Após relacionar a nutrição do corpo e da alma com os alimentos oferecidos – tanto para a alma quanto para o corpo – no dia de seu natalício, é estabelecida uma relação entre o alimento da alma e felicidade. Ao buscar no que consiste a felicidade, depara-se com o critério de imutabilidade do alimento da alma. Agostinho questiona aos seus interlocutores se quem não tem o que quer é feliz. A resposta é negativa, pois nem todos que tem o que querem são felizes. Assim, a questão é invertida por Agostinho: quem tem o que quer será feliz? Sua mãe responde positivamente, desde que o que se possui e se quer seja o bem.

 

Mônica alcança o cume da Filosofia, segundo Agostinho, ao afirmar o mesmo que Cícero na obra Hortensius – obra esta responsável pelo despertar de Agostinho para a Filosofia. Ademais, Cícero afirma que não é suficiente possuir qualquer coisa desejada para ser feliz. O homem é mais infeliz quando deseja algo que não convém do que quando não tem o que deseja. Neste momento do diálogo, Licêncio toma a palavra e pede ao aniversariante que diga quais as coisas necessárias para se alcançar a felicidade e quais as coisas que se pode desejar para chegar até a mesma. Agostinho não responde à questão devido ao fato que muitos problemas serão examinados até que se possa afirmar no que consiste a felicidade.

 

Agostinho retoma os resultados obtidos até então: 1) ninguém pode ser feliz sem possuir o que deseja; 2) possuir o que se deseja não é garantia de felicidade. Eis aqui um impasse. Para resolvê-lo, Agostinho afirma que é necessário descobrir o que o homem deve possuir para ser feliz e Licêncio buscava descobrir o que é conveniente de se desejar. Já que a felicidade deve conter um bem do qual sua existência depende, faz-se necessário que esse bem não seja mutável, que não desapareça para garantir a existência da felicidade: “Se alguém quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em algum revés de sorte” (AGOSTINHO, II, 11). O critério de imutabilidade da vida feliz é aceito por todos, exceto por Teodósio.

 

Para ser verdadeiramente feliz, afirma Agostinho, não se pode temer perder a felicidade. A vida que se norteia pela posse de bens frágeis, perecíveis, não pode ser feliz, porque se tem medo de perder a felicidade e; pelo fato de as coisas relativas serem marcadas pela insaciabilidade e pela incompletude, a posse de bens frágeis nunca será satisfatória: sempre há de se desejar mais, algo além do que se possui. A consequência disso é a infelicidade, haja vista que não há estabilidade necessária para a plenitude. Deve-se ter em mente que plenitude e felicidade se ligam intrinsecamente porque “A plenitude é absolutamente necessária à felicidade” (GIlSON, 2007, p. 21), também por ser o oposto da carência e da miséria.

 

Na sequência do diálogo, é afirmado que o que tem a capacidade de tornar o homem feliz não é a posse de um bem externo a ele, mas sim a posse de algo incorpóreo que possua a mesma natureza da alma. A virtude apresenta-se, pois, como imutável e o bem buscado para se alcançar a felicidade deve ser visto como o que não pode ser retirado do homem quando há uma reviravolta em sua sorte. Agostinho conclui que é feliz quem possui um bem imutável. Esse bem imutável é Deus. Assim, é feliz quem possui a Deus.

 

Com a conclusão de que é feliz quem possui a Deus, surge uma nova questão: quem possui a Deus? Três respostas são dadas: 1) possui a Deus quem vive bem; 2) possuí a Deus quem faz o que Ele quer que se faça; 3) Possui a Deus quem não possui em si um espírito imundo.

 

A verdadeira felicidade está e só pode ser atingida em Deus. Desse modo, Agostinho diferencia seu pensamento do pensamento da filosofia antiga por ter como fundamento último do eudaimonismo o sobrenatural. Fica, portanto, claro que a busca da felicidade é a busca de Deus. Deus é o único que pode dar estabilidade ao homem. O filósofo busca a verdade com a finalidade de ser feliz. A felicidade encontra-se na posse da Verdade-Deus. Somente ao encontrar Deus, o homem encontra a sua felicidade. Vale ressaltar que a felicidade “encontra-se no próprio homem, na sua interioridade, não em um sentido panteístico, mas como imanência/ transcendência, quando Deus revela-se ao homem enquanto Verdade” (COSTA, 2012, p. 25). Todavia, a questão acerca de quem entre os homens possui Deus é deixada para o segundo dia do diálogo.

 

Referências Bibliográficas:

 

 AGOSTINHO. A vida feliz. Col. Patrística, 11. São Paulo: Paulus, 1998.

COSTA, M. R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

GILSON, É. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006.


https://www.psicologiamsn.com/2012/11/santo-agostinho-e-a-vida-feliz.html

 

 

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