sábado, 29 de janeiro de 2022

A EFICÁCIA DA MISERICÓRDIA (I)


Por Luiz Alexandre Solano Rossi(*)

 

A misericórdia exige a aproximação; somos sempre misericordiosos em relação a alguém; no isolamento enclausuramos a misericórdia e acrisolamos a própria vida. Todas as vezes que não caminhamos misericordiosamente em direção às pessoas estamos, na verdade, sonegando a elas porção generosa da misericórdia de Deus.

 

Introdução

 

Vivemos num mundo que é marcado por feridas abertas que tendem a afetar a todos. Ninguém está imune numa sociedade repleta de predadores sociais. Vivemos num ambiente tão competitivo que nos leva a perceber o outro como um competidor que deve ser vencido; deixamos de olhar aqueles (as) que estão ao nosso redor como se fossem irmãos, e presumimos que sejam nossos adversários. E diante de adversários, a única arma possível seria partir para o ataque. Como viver num ambiente em que nos movemos pelo medo de ser surpreendido por um ataque? Como gerar misericórdia numa sociedade que respira violência?

 

Duas expressões, entre tantas, se sobressaem, na Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia: “um programa de vida” e “estilo de vida” (MV, n. 13). Faço destaque a fim de salientar que a misericórdia deveria ser entendida como se fosse uma segunda pele do cristão. No entanto, somos mais ágeis na arte de condenar e criticar as pessoas do que na arte da misericórdia. Gastamos em uma e economizamos na outra. Até parece que falta espaço para prática da misericórdia em nossa agenda.

 

  1. Profetismo e conversão para a misericórdia

A única possível resposta à pergunta inicial que posso encontrar na literatura bíblica pode ser resumida numa expressão: conversão. De uma cultura de violência e de agressões, deveríamos nos converter a uma cultura de misericórdia. Porém, certa atenção é necessária: toda conversão deveria ser vista, simultaneamente, como pessoal e comunitária. É possível dizer que foram especialmente os profetas que convocaram o povo de Deus à conversão. Ao lermos Amós 5,14-15, Isaías 1,16-17 e Oseias 10,12 e 12,7, ficamos com a nítida impressão de que a conversão não se limita à esfera privada. Ao romper com os limites da esfera privada, a conversão nos leva a uma decisão que tem implicações políticas e econômicas. Talvez pudéssemos dizer que a fé possui uma função pública. Afinal, não somos chamados a viver dentro de quatro paredes e, dessa forma, isolados de tudo e de todos. O espaço por excelência do exercício da fé se encontra na realidade do cotidiano.

 

Os profetas acreditavam que tudo na vida, inclusive as instituições públicas, poderiam ser orientadas de tal forma que servissem aos objetivos de Deus, com quem Israel havia selado uma aliança. A vida transformada de Israel, diferentemente dos valores que imperavam ao seu redor, centrava-se na justiça, na virtude e na constância do amor, ou seja, numa organização que transcendia a egolatria. Os profetas faziam um radical chamado ao povo de Deus para que vivesse sua vida, tanto pessoal quanto coletiva, em consonância com os objetivos de propiciar justiça, fraternidade, solidariedade e misericórdia.

 

Um profeta posterior aos já citados, Joel (2,12-13), faz, por sua vez, uma convocação radical para a conversão. No entanto, para ele não bastava mudar unicamente a aparência externa: era necessário converter o coração. Mas vale lembrar que o coração não deve ser interpretado simplesmente como uma experiência interior. Na Bíblia, o coração representa o órgão responsável por tomar decisões e determinar a orientação da vida. O profeta Joel refuta, portanto, tanto uma mudança meramente externa (as vestes) quanto uma mudança meramente interna, que não leve a nenhuma conseqüência visível.

 

Sicre (1990, p. 126-127) acentua que a vocação do profeta era uma relação eu-tu-eles. “O profeta não é eleito para gozar de Deus, mas para cumprir uma missão em relação ao povo”. Uma função direcionada especificamente para a sociedade. Numa experiência inserida na relação Deus, profeta e sociedade em que vive, o profeta anunciava um Deus comprometido com a história, que amava a justiça, pai dos órfãos, aquele que protegia as viúvas, senhor soberano de toda a natureza e que possuía o controle da vida e da morte. Deus está presente na história para provocar nossa existência a sair de si mesma. A face de Deus que se revela em Jesus Cristo é um rosto totalmente voltado para o ser humano. Por isso, ao invés de nos inclinarmos sobre o rosto do filho de Deus, deveríamos procurar o rosto dos seres humanos e amá-los com amor intenso. Contrariamente ao que muitos pensam, não precisamos nos encontrar com Deus negando o mundo e a sua história. Encontramos com Jesus justamente no mundo.

 

Os profetas não se relacionavam com situações abstratas. Diante deles se encontravam uma série de problemas concretos. Eles denunciavam a pobreza como um mal, como resultado da injustiça praticada pelos poderosos. O pobre se torna não somente sujeito, mas também um lugar teológico. A partir do critério utilizado pelos profetas, não é possível aceitar a pobreza, a violência e a injustiça que a gera. Dessa forma, eles acabaram por demonstrar que a pobreza e a violência não eram o resultado do destino ou da vontade de Deus. Basicamente entenderam que era consequência da ação daqueles que estavam denunciando. Não há espaço na teologia dos profetas para aquilo que chamo de naturalização da pobreza e da violência. Penso que os textos bíblicos, em sua grande e maior extensão, para falar de Deus se expressam através da vida das pessoas. Somente encontramos Deus no outro! Não se encontra e não se conhece o Deus bíblico sem a intermediação do pobre e na história do pobre.

 

Sendo assim, duas questões saltam em importância, a fim de se refletir: a primeira delas é o conceito de história e a segunda, o conceito de pobre. O primeiro faz com que historicizemos a fé, ou seja, vive-se a fé para dentro da história, a fim de transformá-la, e não a negando ou desejando ardentemente abandoná-la; o segundo nos leva a compreender que é a partir do encontro com os pobres, da solidariedade com eles e da vida construída a partir da justiça que nos humanizamos e alcançamos a salvação. É inevitável pensarmos o papel da Igreja em meio a essa situação. Quero me valer de um belíssimo texto de Bonino (1975, p. 44) por causa de sua fluidez e exemplaridade, e que reafirma que a autenticidade da mensagem evangélica está, de fato, ligada à maneira pela qual ela se relaciona com o tema da pobreza:

 

[…] a Igreja não se identifica a si mesma entre os pobres. Reconhece os pobres como uma parte muito importante do mundo, mas a Igreja não se reconhece a si mesma entre os pobres e os pobres não reconhecem a presença de Cristo na Igreja. Esta é uma situação de identidade perdida, de autoalienação para a Igreja. Uma situação em que a Igreja não é totalmente Igreja. E a Igreja que não é a Igreja dos pobres coloca em séria suspeita seu caráter eclesiástico.

 

É significativo o uso que Jesus faz do texto do profeta Oseias (que lembra também Provérbios 21,14). É possível compreender que, para Jesus, mais importante é a ação que preserva a dignidade da pessoa, e não possíveis atividades para Deus. A importância para Jesus recai no primado da misericórdia. Afinal, tudo quanto fazemos para os pequeninos é a ele que fazemos. Observa-se, portanto, que a prática da misericórdia com o pobre é também conhecimento de Deus (o profeta Oseias apresenta a mesma chave de leitura em 4,1 (“Ouçam a palavra de Javé, filhos de Israel! Javé abre um processo contra os moradores do país, pois não há mais fidelidade, nem amor, nem conhecimento de Deus no país”), em 6,6 (“Pois eu quero amor, e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”) e em 8,2-3 (“Eles gritam: ‘Deus de Israel, nós te conhecemos!’ No entanto, Israel recusou o bem, e o inimigo o perseguirá”).

 

Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício Porque não vim chamar os justos, mas os pecadores(Mt 9,13).

Eu quero misericórdia e não os sacrifícios(Os 6,6).

Para Javé, a prática da justiça e do direito vale mais que os sacrifícios(Pv 21,14).

 

Bibliografia

 

BONINO, J. M. The Struggle of the Poor and Church. Ecumenical Review. Vol. XXVII, n. 1, p. 44, jan. 1975.

BOVON, F. El Evangelio segun Lucas. Lc 1-9. Vol. 1. Salamanca: Sigueme, 1995

FITZMEYER, J. A. El Evangelio segun Lucas. Vol. II. Traduccion y Comentario. Capítulos 1-8,21. Madri: Cristiandad, 1987.

PAPA FRANCISCO. Misericordiae Vultus. O rosto da misericórdia. Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2015.

SICRE, J. L. Justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990.

STOGER, A. El Evangelio segun Lucas. Vol. 1. Barcelona: Herder, 1979.

 

(*) Luiz Alexandre Solano Rossi
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP e pós-doutor em História Antiga pela UNICAMP e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary. É professor no mestrado e doutorado em Teologia da PUCPR e coordenador da graduação em Teologia da PUCPR. E-mail: luizalexandrerossi@yahoo.com.br

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/a-eficacia-da-misericordia/

 

(Este artigo terá sua continuação no próximo Domingo...)

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