sábado, 28 de maio de 2022

A EDUCAÇÃO AGOSTINIANA: PRINCÍPIOS E APLICAÇÃO – SUGESTÕES AGOSTINIANAS PARA A INSTRUÇÃO(II)

 

Sugestões agostinianas para a instrução

 

José Joaquim Pereira Melo(*)

Walmir Ruis Salinas(**)


O ponto de partida de quem busca a instrução ou o ensinamento, é a procura
da compreensão do significado de um determinado objeto. Por isso, antes de expor sobre como instruir, o teólogo colocou como indispensável para a compreensão, a necessidade de se crer. Santo Agostinho, tomando emprestadas as palavras do profeta Isaias, afirmou: “[...] se não crerdes não entendereis” (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 79). Para ele, a fórmula completa para o entendimento está em crer e
buscar em Deus o entendimento, pois n’Ele reside a verdade.
Ao se buscar o entendimento de algo, há de se levar em consideração três
fatores: o sujeito que irá intermediar o entendimento, o objeto de entendimento e aquele que alcançará o entendimento.


O primeiro fator, isto é, o sujeito que articula o entendimento, foi muito
lembrado por Santo Agostinho em suas instruções de oratória, principalmente as dirigidas ao orador cristão. Em A Doutrina Cristã ele apresentou três metas
essenciais para que o orador consiga se expressar com sabedoria e eloqüência, “[...] que consistem em fazer-se escutar com atenção, com prazer e com docilidade” (SANTO AGOSTINHO, 2002, p. 268).

Ao mesmo tempo em que ele aponta o caminho para o sucesso do bom
orador, também se mostra preocupado com aquele que ouve. Por esse motivo
enfatiza que não basta ter a atenção daquele que ouve, é preciso despertar nele o prazer para aquilo que ouve.


Nas sugestões dadas por Santo Agostinho para a prática do instruir, em
momento algum ele aponta o caminho da força para que se tenha a atenção do
ouvinte, seja ele aluno ou um fiel. O que ele sugere é de que a aprendizagem se dê “[...] em uma atmosfera de amor” (WILLS, 1999, p. 47). É a busca pela empatia, e não pelo amedrontamento, na tentativa de se alcançar a aprendizagem.
Para ter sucesso, no intento de cativar o ouvinte e despertar nele o prazer em
aprender, cabe ao mestre mostrar satisfação com aquilo que faz:
O fato é que somos ouvidos com maior prazer quando a nós mesmos
agrada o nosso trabalho: o fio da nossa educação é tocado pela
alegria e desenvolve-se mais fácil e mais inteligível. [...] A grande
preocupação reside na maneira de narrar, para que aquele que
catequiza, quem quer que seja o faça com alegria. (SANTO
AGOSTINHO, 1973, p. 37).


Esse tipo de conduta do orador ocasionaria uma espécie de simbiose, onde
as partes sairiam satisfeitas e realizadas naquilo a que se propuseram alcançar. O segredo estava na troca da truculência da violência pela atração desencadeada pelo prazer da ação educativa.


Para chegar a esse padrão de comportamento para com seu ouvinte,
professor e pregador deveriam ter sempre em mente de que Cristo é o Mestre, e a caridade deveria ser norteadora da ação instrutiva e desencadeadora do amor entre as partes envolvidas no processo do ensino e da aprendizagem (SANTO AGOSTINHO, 1987).

Herança da tradição paulina, a caridade simboliza a alteridade em seu sentido mais amplo, que é do homem novo que busca “[...] dar-se,
empenhar-se, prodigar-se até ao sacrifício pelos próprios semelhantes” (SCIACCA, 1966, p. 223). Nesse novo contexto, o homem abre mão de suas aspirações de promoção pessoal e volta-se para seu semelhante com um amor incondicional, capaz de suplantar qualquer desânimo ou reserva por parte do instrutor (SANTO AGOSTINHO, 1973).


Para Hannah Arendt, o conceito de caridade em Santo Agostinho transcende
o horizonte ôntico. Ao contrário de cupiditas (cobiça), que é o falso amor, e que prende o homem ao mundo, a caritas (caridade) é o amor que almeja a eternidade.
Sobre o aspecto prático de um e de outro, Arendt, assim se expressa:
Caridade e cobiça diferenciam-se pelo objeto que visam.
Descrevem desde logo a pertença a qualquer coisa e não à atitude, o
habitus. O homem é aquilo que se esforça por atingir. O amor é a
mediação entre o que ama e aquilo que ama; o que ama nunca está
isolado daquilo que ama, isso pertence-lhe. O desejo daquilo que é
da ordem do mundo é mundano, pertence ao mundo. O que cobiça
decidiu ele próprio, através de sua cobiça, a sua corruptibilidade,
enquanto a caridade, visto que tende para a eternidade, torna-se ela
própria eterna (ARENDT, 1997, p. 25).


A partir desse conceito de caridade, esta, a caridade, se enquadra não só
como uma determinação no magistério agostiniano, pois ela é um meio para a boa execução deste, mas como um princípio também, uma vez que é princípio básico da educação agostiniana. É o argumento defendido por Paulo de Tarso, na primeira carta aos Coríntios, de que sem a caridade nenhum dom tem valor. O professor que tem a caridade como princípio de sua ação, não só está bem respaldado, como sinaliza qual cidadania escolheu, a celeste.
Estabelecidos os princípios para a ação pedagógica, Santo Agostinho,
fazendo uso de sua experiência no campo da oratória, deu dicas para aqueles que se propunham a transmitir os ensinamentos da doutrina cristã. Para ele, a regra de ouro para um bom orador é ter a oração e a sabedoria acima da eloquência. Ele deve orar por ele e por quem o ouve. Mesmo com o cuidado de orar antes de pronunciar sua fala, é possível que haja entre os ouvintes, pessoas com sérias limitações de entendimento. Essas pessoas, segundo o teólogo, não devem ser ignoradas, mas deve-se ter um cuidado especial para que elas também aproveitem da pregação ou mesmo da aula (SANTO AGOSTINHO, 1973).


Àqueles que têm dificuldade em acompanhar o que está sendo falado, Santo
Agostinho sugere que orador desça o nível da fala até sua possível compreensão.
Mesmo que para isso tenha que falar mais compassadamente, e numa linguagem factível de compreensão a estes que demonstram dificuldade maior que os demais para acompanhar e entender a pregação da doutrina cristã (SANTO AGOSTINHO, 1973).


Para o mestre de Tagaste, ao fazer uso de tal estratégia, o orador corre o
risco de se aborrecer com essas pessoas, mas quando isso acontecer, a solução é simples, ser paciente. A motivação para a paciência, segundo Santo Agostinho, reside na possibilidade da surpreendente aprendizagem, e diz: “[...] agora, no entanto não se renova o nosso prazer pelo prazer de sua surpresa?” (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 59).

Quando o conhecimento se dá, o aborrecimento dá lugar
à alegria da conquista para aquele que menor possibilidade tinha de alcançá-la. Por isso, mais eficiente que envergonhar o aluno, expondo sua dificuldade, é ter a paciência necessária para que ele alcance a mesma alegria daqueles que já haviam compreendido o teor do ensinamento.


Sua experiência no púlpito lhe dava a certeza da diversidade de pessoas.
Diante deste fato, ao passar sugestões para a instrução aos catecúmenos Santo Agostinho diz:


[...] posso eu mesmo testemunhar que me impressiono
diferentemente ao ver diante de mim para serem catequizados o
erudito, o tímido, o cidadão, o estrangeiro, o rico, o pobre, o civil, o
magistrado, o poderoso, o representante desta ou daquela família,
desta ou daquela idade, ou sexo, desta ou daquela seita, partindo
deste ou daquele erro vulgar. [...] E apesar de que a mesma caridade
se deve a todos, a todos não se aplica o mesmo remédio. (SANTO
AGOSTINHO, 1973, p. 67).


Apesar desta ser uma indicação básica para um orador minimamente
preparado, Santo Agostinho lembrou aos catequistas e educadores de que para cada tipo de pessoa se aplica um tipo de mensagem. A experiência como professor de retórica, dava-lhe autoridade suficiente para afirmar que a instrução, na dose certa e de maneira adequada, tende a funcionar. Aliado à sua experiência estava o desejo de dirimir a ignorância daqueles menos preparados e menos instruídos sobre a doutrina cristã.


Caso aquele que buscasse a instrução, mesmo cercado de boa vontade em
aprender, mostrar-se entediado com a fala do instrutor, dizia Santo Agostinho que  o orador deveria utilizar-se de todo subterfúgio para recuperar a atenção deste que buscou o conhecimento da verdade (SANTO AGOSTINHO, 1973). Sendo assim, para ele, para que se tenha efeito positivo no alcance da verdade revelada pelas  escrituras (judaico-cristãs) é preciso que o orador seja paciente, sensível às diferenças e preparado para sua missão, para que consiga, com seu ofício, ensinar, convencer e agradar. Porém, Santo Agostinho foi irredutível em seu princípio de que
mais do que a palavra pronunciada, o que mais convence é o exemplo, pois o pregador tem que ser um modelo para seus fiéis. Aliado ao exemplo está o conteúdo a ser ministrado pelo orador (SANTO AGOSTINHO, 2002).


Considerações finais

Santo Agostinho soube tirar proveito da dualidade na sua formação
educacional. Da retórica romana tirou a base para suas aulas, enquanto professor, e para suas pregações, enquanto bispo. Do cristianismo tirou, com base na doutrina paulina de caridade, o espírito altruísta, que o colocou sempre atento à necessidade de aprendizagem dos mais variados tipos de pessoas. Essa sensibilidade para com o outro foi fundamental para que o bispo de Hipona lograsse êxito, tanto no seu
papel de professor, como de pregador cristão.

Notas
* José Joaquim Pereira Melo é doutor em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998) e pós-doutor em História da Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007).  

Atualmente é Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do programa de Pós-Graduação em Educação dessa universidade. E-mail: jjpmelo@hotmail.com


** Walmir Ruis Salinas possui graduação em filosofia pela PUC- PR e mestrado em educação pela UEM. Atualmente é professor da UNESPAR/Fecilcam – Câmpus de Campo Mourão. E-mail: walmir.salinas@gmail.com

 

Jo
1 O texto deste artigo é uma adaptação de dissertação de mestrado intitulada A docilização do corpo em Santo Agostinho a partir de sua educação doutrinária.
2 A Lei de Talião teria sido criada por Javé, como critério de justiça nas punições àqueles que causaram algum dano, de qualquer ordem, a qualquer pessoa.
3 Para Monroe, não é apenas Santo Agostinho que tem esse caráter salvífico em  sua doutrina educacional. Para ele o cristianismo trouxe uma nova perspectiva para educação, que passa dos interesses naturais e de tudo que estava ligado ao mundo para a preparação
para um momento futuro, ou seja, a parusia (MONROE, 1978).
4 A ideia de Deus como fonte de luz para o conhecimento do homem está baseada  na teoria da iluminação de Santo Agostinho. Para ele a alma está contaminada pelas paixões, o que impede o homem de ver a Verdade. Para vencer a escuridão, provocada pelas paixões, está
Deus como luz que permite ao homem ver a Verdade, que é o próprio Deus (SANTO AGOSTINHO, 2000). Tomando a imagem criada por Platão, Santo Agostinho afirma que Deus ilumina, mas cabe ao homem enxergar. Por isso é imprescindível que o homem mantenha a sua visão interna em boas condições. Desta forma, é imperativo: “[...] Uma fuga
completa das coisas sensíveis. [...] É necessário que estejam íntegras e perfeitas para voar das trevas à luz, esta que não se mostra aos encarcerados na prisão do corpo, a não ser
quando dele nos libertamos” (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 57). Por esse motivo é que o teólogo insiste na necessidade do homem romper com os bens terrenos e as paixões que estes despertam, pois assim o fazendo cria condições de contemplar a Verdade, e ver a luz.

 

Referências


ARENDT, Hannah. O Conceito de amor em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto
Piaget, 1997.
BÍBLIA. Português. A bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1980.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1993.
HUBERT, René. História da pedagogia. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1976.
LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 9. Ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1977.
MONROE, Paul. História da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1978.
NUNES COSTA, Marcos Roberto. Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço
da fé. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
PEREIRA MELO, José Joaquim. Santo Agostinho e a educação como fenômeno
divino. Revista Educação e filosofia, Uberlândia, v. 24, n. 48, jul./dez. 2010, p. 409-
434.
PLATÃO. República. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 1990.
SANTO AGOSTINHO. A doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002.
SANTO AGOSTINHO. A verdadeira religião. São Paulo: Paulinas, 1987.
SANTO AGOSTINHO. A vida feliz. São Paulo: Paulinas, 1993.
SANTO AGOSTINHO. De magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
SANTO AGOSTINHO. Instrução dos catecúmenos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.
SANTO AGOSTINHO. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.
SCIACCA. O problema da educação. São Paulo: Herder, 1966.
WILLS, Garry. Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

 

http://www.fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/viewFile/633/369

 

 

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