sábado, 22 de julho de 2023

SANTO AGOSTINHO E A SABEDORIA POLÍTICA

 

SANTO AGOSTINHO E A SABEDORIA POLÍTICA

Por Alexsandro M. Medeiros

 

            Santo Agostinho foi um dos mais importantes teólogos e filósofos do período da filosofia cristã conhecido como patrística. Influenciado pelo maniqueísmo (de cuja doutrina mais tarde se tornará um grande crítico) e pelo neoplatonismo, Agostinho se converteu ao cristianismo e chegou a ser bispo em Hipona, cidade romana da África. Suas obras mais conhecidas são: Confissões e A Cidade de Deus (De Civitate Dei).

            A Filosofia de Santo Agostinho foi elaborada com base em uma aproximação entre o neoplatonismo de Plotino e Porfírio e a doutrina cristã, o assim chamado, platonismo cristão. Mas o verdadeiro e legítimo conhecimento é a teologia, e é a esses ensinamentos que o homem deve dedicar-se, pois prepara sua alma para a salvação e para a visão de Deus.

            Por influência platônica, Agostinho distingue dois tipos de conhecimento: o conhecimento através dos sentidos que é imperfeito, mutável; e o conhecimento das essências imutáveis. Todavia, se, para Platão, o conhecimento das essências imutáveis é possível a partir da teoria da reminiscência, segundo a qual a alma teria contemplado as essências no mundo das ideias antes da vida presente, Agostinho irá adaptar essa explicação à teoria da iluminação. O ser humano receberia de Deus o conhecimento das verdades eternas, o que não significa desprezar o próprio intelecto, pois, como o Sol, Deus ilumina a razão e torna possível o pensar correto. O saber, portanto, não é transmitido pelo mestre ao aluno, já que a posse da verdade é uma experiência que não vem do exterior, mas de dentro de cada um. Isso é possível porque “Cristo habita no homem interior”. Toda educação é, dessa forma, uma autoeducação, possibilitada pela iluminação divina (ARANHA, 2006, p. 178).

 

            Dentre os aspectos fundamentais da contribuição de Santo Agostinho para o desenvolvimento da Filosofia podemos mencionar: sua formulação das relações entre a teologia e a filosofia, entre fé e razão; sua teoria do conhecimento com ênfase na questão da subjetividade e da interioridade; suas reflexões sobre a moral; sua teoria da história e política, elaborada na obra Cidade de Deus. Vejamos algumas destas questões.

 

O problema da moral

            A obra prima de Santo Agostinho, as Confissões, revela um homem profundamente voltado para a sua interioridade e para esse grande mistério que é o homem, pondo a nu o seu espírito e o intenso drama vivido interiormente por ele mesmo, para alcançar um mais alto grau de espiritualidade. Esse mergulho na nossa interioridade mostra-nos a nossa real essência, revela-nos que há dentro de nós algo de mais profundo que o nosso eu exterior e é dentro desta perspectiva de uma filosofia introspectiva que Agostinho agrega uma série de conceitos fundamentais, sendo um deles precisamente a ética.

            A moral agostiniana é teísta e cristã. A nota característica da sua moral é a primazia do prático, da ação, contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento. Além disso, a virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor. É fácil constatar em sua obra Confissões que a essência do homem está no amor: ama et fac quod vis (ama e faça o que quiseres).

        Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois somos um ser limitado, podendo agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus e, por isso, o problema do mal tem um lugar de destaque nas reflexões do bispo de Hipona.

 

O problema do mal

            Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal – de que dá uma vasta e viva fenomenologia. Se tudo provém de Deus, que é o Bem e fonte de todas as coisas, de onde provém o mal? A solução deste problema por ele achado foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica. Antes de tudo, Agostinho nega a realidade metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. “Podemos começar a descrever o “mal” a partir do que ele não é: o “mal” não é uma realidade. Ele é privação. Ele é ausência de bem. Ele não é uma realidade existente. Só o bem é real” (FERRAZ, 2014, p. 79). Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o que lhes é devido por natureza.

 

            Além do mal metafísico existe também o mal moral. Existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. Assim devemos considerar a prática do mal não como causa eficiente, mas deficiente de uma ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza.

            O mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. O mal moral é o pecado, e o pecado é uma conseqüência do mau uso que fazemos do nosso livre-arbítrio. “Com efeito, no plano moral o mal jaz nos atos das criaturas racionais, notadamente no ‘livre arbítrio’. Mais especificamente, o mal reside no mau uso do ‘livre arbítrio’” (FERRAZ, 2014, p. 80). E nas palavras do próprio Agostinho (1995, p. 69): “o mal moral tem sua origem no livre-arbítrio de nossa vontade”. Já o mal físico (doenças, sofrimentos etc), por sua vez, tem origem a partir do pecado original; é uma conseqüência do mal moral. Remediou este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, consequência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a explicação última de tudo isso – do mal moral e de suas conseqüências – estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); ou uma conseqüência do mau uso que fazemos do nosso livre-arbítrio.

            A causa do pecado está no abuso que fazemos da nossa vontade livre. Levar uma vida feliz ou infeliz depende de nossa boa vontade: “é pela vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz; e pela mesma vontade, que levamos uma vida vergonhosa e infeliz” (AGOSTINHO, 1995, p. 60). A nossa felicidade estará assegurada, sob a condição de praticarmos livremente o bem: “nada, a não ser a vontade, poderá destronar a alma das alturas de onde domina, e afastá-la do caminho reto” (AGOSTINHO, 1995, p. 67).

              Deus é bom e não pode ser origem do mal.

 

[...] se sabes ou acreditas que Deus é bom — e não nos é permitido pensar de outro modo —, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se proclamamos ser ele justo — e negá-lo seria blasfêmia —, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. É porque, visto ninguém ser punido injustamente — como devemos acreditar, já que, de acordo com a nossa fé, é a divina Providência que dirige o universo —, Deus de modo algum será o autor daquele primeiro gênero de males a que nos referimos [que alguém pratica o mal], só do segundo [que alguém sofre algum mal] (AGOSTINHO, 1995, p. 25).

 

            A fórmula agostiniana em torno da liberdade pode ser assim descrita: em Adão – antes do pecado original – é: poder não pecar; depois do pecado original é: não poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar. É preciso levar em consideração que a vontade humana, para Agostinho, é impotente sem a graça. O problema da graça – que tanto preocupa Agostinho – tem, além de um interesse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. O livre-arbítrio é a capacidade de decidir e agir livremente e pode ser influenciado pela vontade (voluntas) e que por isso precisa da graça divina para não se deixar influenciar pelo pecado. “Tal distinção pode ser esclarecida especialmente a partir do ‘livro VIII’, das “Confissões”, em que Agostinho mantém que a vontade humana carece da Graça Divina” (FERRAZ, 2014, p. 78). A graça divina é necessária para que o homem “lute contra a concupiscência e se torne digno diante de Deus” (FERRAZ, 2014, p. 81).
 

Santo Agostinho e a Política

 

            O pensamento político de Santo Agostinho tem como referência duas tradições: a da cultura greco-romana e das escrituras judaico-cristãs. Agostinho se serve da crítica que o historiador Salústio faz sobre as causas que levaram o Império Romano à ruína, com a submissão do povo à escravidão, a opressão, a usura dos senadores que aumentava cada vez mais os tributos e os encargos militares. A República Romana caíra por falta de domínio das paixões desordenadas e uma delas é o apego ao poder que levou alguns governantes a serem injustos, tiranos, chegando mesmo a oprimir o povo. Também deve ser mencionado o desejo desenfreado pelo poder e a ânsia de dominar que levou o Império Romano a empreender diversas guerras, responsáveis pelo enfraquecimento paulatino da República Romana. Agostinho encontra no Império Romano a prova de que todo governo que coloca seu apoio apenas na matéria e despreza os valores religiosos está fadado ao fracasso.

            Como o ser humano é um todo, a política deve se esforçar para proporcionar aos cidadãos da pátria terrena condições para a prática do culto ao Deus verdadeiro e preparar os homens para a Cidade Celeste. O pensamento Agostiniano acerca da política está permeado e fundamentado na transcendência do ser humano. Ele se articula com a Teologia.

            Agostinho entende que o homem por si mesmo não concretizará o ideal de um Estado verdadeiramente justo sem o auxílio Divino, pois cada ser humano traz consigo a marca do pecado, das paixões desordenadas, do desejo de dominar e muitas vezes até colocar seus semelhantes debaixo dos pés, esses homens carregam a marca da concupiscência de nossos primeiros pais: Adão e Eva. É evidente que o Estado só realizará plenamente os interesses de seus cidadãos quando for permeado pelos valores do Evangelho. Para Agostinho, nenhum Estado cumprirá com êxito sua função enquanto não se esforçar por valorizar a dimensão espiritual da pessoa humana e ter como meta de ação o princípio cristão da caridade. A caridade se sobressai neste ponto pois quem ama a Deus e ao próximo não irá com certeza manipular e nem dominar seu próximo apenas por interesses espúrios e exclusivistas pensando apenas nas suas próprias satisfações pessoais.

            Existe uma relação próxima entre a política e a ética agostiniana se considerarmos que a ética cristã do amor ao próximo e da caridade não se limita ao indivíduo, mas se dirige ao bem comum, ao social. O princípio da caridade preservaria os homens de agirem egoisticamente, visando apenas seus interesses particulares em detrimento de si e da coletividade.  O Amor a Deus e ao próximo é a base não apenas da ética agostiniana, mas fundamento de uma sociedade justa. Ultrapassa a subjetividade do indivíduo, lança luzes sobre o seu agir e sua vida em sociedade. A lei do amor a Deus é a regra da vida moral e também social para Santo Agostinho. Não há, com efeito, justiça nem nenhuma das virtudes sobre as quais se fundamenta o Estado, sem o amor de Deus e do próximo.

            Para Santo Agostinho, a política constitui uma atividade fundamental para que no seio da sociedade humana haja o bem e a paz  e onde Deus não está presente a paz temporal torna-se impossível.

            Aos governantes cabe a função de conduzir corretamente a sociedade desde que seus interesses sejam pautados pelo desejo em servir e prestar culto ao verdadeiro Deus. O bispo de Hipona reconhece que o exercício do poder temporal só encontrará sua verdadeira realização quando governantes e súditos se deixarem conduzir pela Bondade Divina. Os que foram chamados para governar devem fazê-lo com a mente e o coração voltados para a eternidade, ou pátria celeste.

 

A Cidade de Deus

 

            A obra De Civitate Dei, escrita em 22 livros (ou capítulos), descreve o mundo dividido entre o dos homens (o mundo terreno) e o dos céus (o mundo espiritual): a cidade terrestre e a cidade celeste. A obra trata dos mais variados e complexos assuntos que vão desde a origem e substancialidade do bem e do mal, do pecado, da culpa e da morte, até questões do direito, da lei e das penas,  da contingência e da necessidade, da ação humana e do destino no desenvolvimento da História.

            O livro apresenta a história humana a partir do conflito entre a Cidade Terrena (ou Cidade do Homem) e a Cidade de Deus. Cada uma destas duas cidades têm características peculiares: na primeira, os homens se ocupam dos prazeres efêmeros do mundo presente ao passo que na segunda as pessoas põem de lado o prazer terreno para se dedicarem às verdades eternas de Deus, reveladas através da fé cristã. De certo modo Agostinho apresenta a história do mundo como a guerra universal entre Deus e o Mal.

            Agostinho está certo de que em todos os tempos haverá “em todos os povos” cidadãos dos “dois reinos”, do de Cristo e do demônio, em constante luta. É sob este aspecto de temporalidade, de transitoriedade, de implicação sobretudo na liberdade e nos “vícios da humana fragilidade” que podemos falar de ambivalência e de ambiguidade da cidade dos homens e dos seus bens próprios. O homem é, antes de tudo, fundamentalmente, limitado enquanto criatura, feita do nada. Mas ele é criatura racional, livre e que de fato peca livremente, afastando-se do seu Criador. Por isso a ordem à qual se refere Santo Agostinho na De Civitate Dei só será uma realidade quando o exercício da função política for fundado no verdadeiro Amor, na caritas (caridade). Sendo, porém, uma instituição exercida por homens marcados pelo pecado, a política para ser vivida com autenticidade e justiça necessita da graça de Cristo.

            A obra De Civitate Dei está dividida em duas partes. A primeira parte contém 10 livros e é uma espécie de crítica da religião e filosofia de Roma, correspondente à Cidade Terrena. A segunda parte contém 12 livros e se refere a distinção entre a cidade de Deus e a cidade terrena.

            Na primeira parte, os cinco primeiros livros constituem uma espécie de crítica da religião pagã e refutam aqueles que defendem que a adoração politeísta é necessária a fim de garantir a prosperidade mundial, e que todas estas calamidades avassaladoras caíram sobre nós em consequência da sua proibição. Os livros 6 a 10 contém a crítica da filosofia pagã e Agostinho se dirige àqueles que admitem que tais calamidades aconteceram em todos os tempos, e que sempre haverão de acontecer, à raça humana, e que elas se repetem constantemente em formas mais ou menos desastrosas, variando somente no cenário, nas ocasiões e nas pessoas a quem elas atingem, mas, apesar de admitirem isto, defendem que a adoração dos deuses é vantajosa para a vida que há de vir.

            Na segunda parte Agostinho expõe suas próprias opiniões sobre o assunto: os quatro primeiros livros contêm um relato da origem do que Agostinho chama de as duas cidades: a cidade de Deus e a cidade do mundo, a partir da separação dos anjos bons dos maus, da criação humana e uma análise detalhada do Livro do Gênesis. Os quatro livros seguintes tratam da história e progresso das duas cidades e a partir de alguns acontecimentos como o tempo anterior e após o Dilúvio, além da história da cidade de Deus desde Samuel, até Davi e Jesus. Os últimos quatro livros tratam dos destinos merecidos das duas cidades. Do fim das duas cidades e a felicidade do povo de Cristo, das profecias, dos castigos eternos e da felicidade eterna.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

AGOSTINHO, Santo. O Livre Arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. (Coleção Patrística)

ARANHA, Maria Lúcia de A. Idade Média: a educação mediada pela fé. In: ____. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2006, p. 154-193.

FERRAZ, Carlos Adriano. Elementos de ética. Pelotas: NEPFil online, 2014. Acessado em 18/06/2019.

 


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