sábado, 10 de setembro de 2022

"NEM PRÍNCIPES E NEM PRINCESAS, CA- RAS-INTEIRAS OU CA-RAS-METADES: AMOR É CONSTRUÇÃO, PRINCÍPIO DE REALIDADE"(Parte I)

 

"NEM  PRÍNCIPES  E NEM PRINCESAS, CA- RAS-INTEIRAS OU CA-RAS-METADES: AMOR  É CONSTRUÇÃO, PRINCÍPIO DE REALIDADE"(Parte I)

Por Lindolivo Soares Moura(*)

 

 "O amor não é um 'objeto encontrado',mas o produto  deum longo e muitavezes difícil esforço e boa Vontade" (Z.Bauman).

Talvez nenhuma outra matéria prima tenha sido tão decantada em romance, prosa, verso e reverso quanto o amor. Os tempos vão e vêm, as fantasias mudam de roupa e roupagem, as paralelas viram triângulos, os triângulos viram retângulos, os Romeus se entrecruzam com outras Julietas, mas o personagem principal se recusa a sair de cena: o amor. Sem ele não tem espetáculo nem espectadores, não tem drama nem trama, nem camarim nem folhetim. Afinal, "é o amor que mexe com as cabeças e as deixa assim", pensando tanto no outro ou na outra a ponto de se esquecerem de si, terminando por não mais se lembrarem de que a vida é feita prá viver, e não apenas fantasiar e sonhar. Realização ou frustração, atração ou rejeição, satisfação ou decepção, tudo ao final acaba caindo na conta do amor. Amor que  por fim se enamora e se torna amante de si mesmo: "amor I love you, amor I love you...".

Por trás de tanto amor, entretanto, costumam se esconder, camuflados, amores estranhos e esquisitos, quando não, perigosos e arriscados:  "amor bandido", "amor Violento", "amor veneno", dispostos a cometer a maldade de despertar nos amantes o pior de si mesmos: o insano e a insanidade. Amor sem coração, sem compaixão, e que, divorciado da razão, da paixão vai muito, muito mais além: "se não for meu ou minha, não será de mais ninguém!". "Amores" covardes, mesquinhos, pura ninharia; amores tóxicos e intoxicantes, e com uma agravante: chamar de amor a mais hedionda covardia. "Legítima defesa da honra!"; "delito passional!"; "assassinato por amor!", de tudo o amor acaba devedor. "Mas é também por amor que tudo se perdoa", dirá alguém. Sim, é verdade, mas confundir amor com ódio parece ser a mais hedionda das insanidades. Ainda assim, há quem o faça, e talvez seja esse o exemplo mais clássico e mais trágico dos dramas da fantasia e das tramas da vida real. O certo porém é que em maior ou menor grau muitos julgamentos e condenações, delitos e traições, em nome do amor são praticados.

Falar sobre isso é a proposta da presente reflexão: trazer para o consciente convicções e percepções arraigadas sobre o amor que requerem revisão, ressignificação, e por que não, rematrização. Sim, é certo que o simples falar sobre isso desperta paixões e emoções. Mas é também fato que muitas dessas paixões e contradições podem despertar o pior de nós mesmos, e ignorá-las pode significar a pior das traições. Em nome da fidelidade e da lealdade, portanto, é preciso coragem para confrontá-las e submetê-las ao crivo da razão.

01. O amor romântico: a personificação e a "coisificaçao" do amor.

O maior dano e prejuízo que o amor romantizado poderia causar e efetivamente continua causando aos seres humanos é o fato de transformar o amor numa "coisa", num "objeto", notadamente numa "pessoa"; e o que é ainda pior, em pessoas, objetos e figuras idealizados. Fadas e suas varinhas mágicas, príncipes e princesas encantados, castelos e palácios iluminados, dragões e heróis enfeitiçados, finais apoteóticos e Hollywoodianos, delírios, alucinações, devaneios e utopias que não cabem mais na imaginação. No romantismo o princípio de realidade cede literalmente seu lugar à ficção e à fantasia, pelas quais é desconsiderado, ignorado, e mais que isso, usurpado. Com a mente em terceira dimensão, homens e mulheres passam a "sonhar" com o momento mágico em que encontrarão seu príncipe e sua princesa encantados, suas  "caras-metades" tão aguardadas, o cavaleiro e herói que defenderá sua dama e princesa contra tudo e contra todos, e a princesa encantada e encantadora com a qual esse herói saído dos contos de fadas passará a viver, juntos e  felizes para sempre.. Por séculos e talvez milênios homens e mulheres sonham, devaneiam e suplicam pela realização de tais sonhos, fantasias e idealizações.

Ocorre que ninguém, absolutamente ninguém, está fadado ou destinado a "encontrar" seu grande amor, pelo fato de que ele simplesmente não existe e jamais existiu. Segundo o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, o amor não é um objeto e tampouco uma  pessoa a serem esperados e ansiosamente aguardados, descobertos e finalmente "encontrados". O amor, afirma, é resultante de uma "construção":  longa, determinada, e que exige esforço redobrado, disposição contínua, e inesgotável boa vontade. Segundo Lou Marinoff, orientador filosófico norte-americano,  quando nos dispomos a investir em alguém nosso amor, nossa lealdade e nossa dedicação, e aceitamos em contrapartida o investimento que o outro faz em nós transformando-o em parte de nós mesmos, quer queiramos quer não estamos levando para dentro de casa um verdadeiro "cavalo de Tróia". Por quê? Porque com o tempo as falhas, os defeitos e as fraquezas do companheiro começarão inevitavelmente a aparecer, cada vez mais e mais, fazendo com que o que de início sequer era percebido - a paixão e não o amor é cega - passe a ser agora irritante, dali a pouco insuportável, finalmente intolerável.  É assim, conclui ele, que o amor vai pouco a pouco sendo minado, até finalmente atingir o ponto em que pode acabar se transformando em ódio. O sonho e a fantasia, se não caem por terra, vão se ajustando, necessária e obrigatoriamente, ao princípio de realidade. Se a fidelidade e sobretudo a lealdade, não vêm desde o princípio sendo plantadas e cultivadas, o vínculo dificilmente se mantém.

A história real, portanto, quase sempre é bem outra: não é a gata borralheira que se transforma em princesa, e muito menos a fera que se transforma em príncipe, ambos encantados, mas exatamente o contrário. Por trás do amor romântico e idealizado escondem-se na maioria das vezes expectativas irreais, fantasiosas, quando não um egoísmo exacerbado: "meu" marido, "minha esposa", "minha" família, "meus" e "nossos" filhos, "minha" herança, e pronomes pocessivos que não acabam mais. O amor romântico e idealizado precisa portanto ser visto com cautela, sob pena de que o projeto iniciado com um sonho acabe terminando em pesadelo.

02. "Eu te prometo ser fiel...": promessa não é sinônimo de amor, e sim de obrigação.

Nenhuma declaração de amor autêntico pode se alicerçar em promessas, menos ainda em contratos e obrigações. Parap garantia de "direitos e deveres mútuos" existe o Direito legal, Direito que esclarece justamente sobre os "diretos, deveres e obrigações" de cada uma das partes. Deveres e obrigações que não demandam fidelidade e menos ainda lealdade: basta que sejam cumpridos, rindo ou chorando, satisfeito ou insatisfeito, concordando-se ou não com as imposições estabelecidas. Causa no mínimo estranheza o fato de que o Código Civil que vigorou até início do presente milênio, até 2002 mais precisamente, tivesse que colocar a fidelidade para com a "exclusividade" como o primeiro e mais importante desses "direitos e deveres mútuos". E não só: tivesse que declarar, como de fato o fazia, a infidelidade - no caso o adultério - como crime. Isso mesmo: "crime"! Com penas e punições previstas em lei! Não deveria por acaso o amor, ao menos o autêntico e verdadeiro, assim como a lealdade como uma de suas tantas expressões, serem suficientes para garantir a fidelidade? Acaso a lei jurídica ou legal possui mais força que estes, o amor e a lealdade, para assegurá-la? Estaria a infidelidade conjugal sendo considerada como "crime hediondo", asqueroso, horrendo e abominável, passível portanto de ser penalizada, criminalizada, e tratada como tal?

Fazer e exigir promessa é atitude típica daqueles para quem a confiança e a lealdade não são suficientes. Você possui um amigo leal, íntegro, probo, digno, fiel e outras virtudes mais. Você está para fazer uma viagem mais longa, e tendo absoluta convicção da fidelidade e da lealdade desse amigo solicita a ele que pague todos os boletos que chegarem à sua casa durante o tempo em que estará ausente. Entrega a ele, sem pensar duas vezes, cópia da chave e seu cartão de crédito. Ao fazer isso, você exigirá dele que "prometa ser fiel" e que não fará uso do cartão senão para as finalidades mencionadas? Faria sentido exigir isso? E se o fizesse, não seria de sua parte uma atitude contundente de desconfiança e portanto de infidelidade? Estabelecer um vínculo com base numa promessa, numa lei ou numa obrigação, e não no amor - na confiança e na lealdade - é lançar os alicerces de tal vínculo na areia - e o que é ainda pior, areia movediça - e não sobre a rocha firme. Não há promessa, lei ou obrigação, que possam fazer as vezes do amor, da confiança e da lealdade. E o que estas não sejam suficientes para assegurar, não haverá por certo promessa ou juramento que o seja. Eis a razão da máxima agostiniana, para muitos inimaginável e incompreensível: "ama e fazer o que quiseres".

O amor autêntico é por essência fiel, e mais que isso, leal. E se não se é fiel, e menos ainda leal, é porque o amor não é autêntico: é caricatura, é simulacro, é falsidade pura. Amor que não suporta o erro, a fraqueza, a debilidade, incluindo nesse bojo a própria infidelidade. Melhor portanto não prometer; mas se isso se faz absolutamente necessário, que seja promeça de esforço, coragem e disposição. Nas coisas do amor jamais é sábio e menos ainda prudente prometer o que não se tem certeza de poder cumprir. Fazê-lo é no mínimo imprudência e temeridade.

03. Amor fiel ou amor leal?: semelhança essencial, diferença abissal.

A semelhança entre fidelidade e lealdade podem à primeira vista parecer ser tão grande, que é bastante comum serem tomadas como sinônimos. Mas as diferenças chegam de fato a ser tão abissais, que só mesmo a vivência e a prática de uma e outra - "e", e não "ou" - permitem compreender e alcançar essa certeza. Justamente por isso merecem um tópico à parte. Note-se que aqui o termo "fidelidade", para efeito de avaliação e comparação com a "lealdade", assume o significado que tanto do ponto de vista religioso como legal lhe é conferido, qual seja: o de direito mútuo de uso, usufruto e gozo do corpo do companheiro - cônjuge ou não - em regime ou caráter de "exclusividade". Sei que essa definição é excessivamente reducionista, materialista e pobre, "paupérrima" para alguns. Mas não fui eu quem assim a concebeu, e sim a lei no campo jurídico, e a religião no campo da espiritualidade. Pergunte a quem quer que seja o que é ser infiel no domínio dos relacionamentos amorosos e/ou conjugais, e certamente você já pressupõe que resposta esperar. Pergunte o que é um marido ou uma esposa "infiel", e de igual modo, salvo surpresas e honrosas exceções, as respostas serão certamente padrão.

Esclareçamos desde logo: é absolutamente inconteste que fidelidade e lealdade não só não se excluem mutuamente, como de resto podem e devem ser conjugadas poderosa e eficazmente. Mas isso não deve ser suficiente a ponto de impedir que reconheçamos o fato de que, no limite, é possível ser fiel sem ser leal, assim como é possível ser infiel, no sentido estrito mencionado, sem deixar de ser leal. Seria ignorar ingenuamente a realidade de que há casais fiéis, estritamente fiéis, tristemente fiéis, quando um dos dois ou mesmo ambos prefeririam não o ser. E isso também é uma forma de deslealdade, talvez a pior delas. Por outro lado, lealdade não significa santidade,  perfeição, e muito menos garantia absoluta de fidelidade (no sentido estrito de "exclusividade" sexual): pode-se "trair", nesse sentido, também por fraqueza,  debilidade, sedução, e até por estupidez. Se a sedução de um lado, se  associa com a fraqueza do outro, a melhor receita para a traição ou infidelidade está posta.

Mas mesmo quem é leal trai? - perguntar-se-á então. Não deveria! A lealdade é sem dúvida um recurso poderoso, do ponto de vista preventivo, profilático; aquele ou aquela que a tem como virtude, e se esmera em sua prática, está sem dúvida infinitamente mais preparado e capacitado para não "cair em tentação", do que aquele que é apenas fiel, estritamente fiel, sem ser leal. Mas ainda assim não há garantia absoluta de que a fidelidade esteja assegurada. Então - perguntar-se-á - de que vale ser leal além de ser fiel? Vale muito! E como vale! E talvez seja especialmente para com a fidelidade que ela revela sua excelência. Como assim!? Simples assim: fidelidade, pura e simples, é recurso pobre, insuficiente, e por isso mesmo incapaz de suportar o seu oposto: a infidelidade. Noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos casais, para não generalizar nos cem por cento, se declaram "dispostos" a ir ao limite para suportar tudo, menos - porque se julgam e se declaram "incapazes" - a infidelidade ou a traição. No entanto a lealdade "pode" e está em condições de conseguir e de alcançar aquilo que a "fidelidade", sozinha, sem o anteparo da lealdade, difícil e raramente "conseguiria": perdoar a traição, perdoar a infidelidade. E por que pode alcançar essa proeza? A pergunta, assim como uma alternativa de resposta, merecem um novo parágrafo.

Admiramos os cães! E por que os admiramos?E por que os consideramos "os melhores amigos do homem"?  Acima de tudo, pela sua "lealdade", e não apenas pela sua "fidelidade". A fidelidade é boa, quem o negará? Mas a lealdade é muito, milhares de vezes melhor! No sentido humano dos termos, já sabemos que a fidelidade dos casais significa jura ou promessa de respeitar a "exclusividade" para com o uso, usufruto e gozo do corpo e da corporeidade um do outro. É ela que em princípio se torna uma espécie de "depositária fiel" - ainda que sem garantia alguma - da "exclusividade". Para com a lealdade não é bem assim. O que a torna "abissalmente" mais digna, nobre e virtuosa que a fidelidade, é a gama de disposições e compromissos que ela porta consigo, incluindo, claro, o compromisso de fidelidade.

Jogando com as palavras: fidelidade é lealdade para com o mínimo, lealdade é fidelidade para com o máximo. Fidelidade é antes e acima de tudo atitude e compromisso com o outro - pessoa, promessa, lei ou obrigação - enquanto a lealdade é compromisso e disposição antes e acima de tudo para consigo mesmo - princípios, crenças, valores e convicções - e por consequência disso, lealdade também para com o outro, quem quer que esse outro seja. A lealdade não pergunta quem o outro "é", o que o outro "tem", ou o que o outro "fez". E se tais perguntas ela faz, não é com o intuito saber melhor que ganho ou proveito disso poderá tirar, e sim para avaliar melhor como eventuais perdas e danos podem trazer o mínimo de prejuízo e de consequências nocivas e danosas para  o todo, para o vínculo e para a relação. Por isso ela "pode vir a ser", e quase sempre de fato é, o antídoto, o remédio, a melhor terapêutica para lidar com a pior pior das feridas, as vezes já transformada em grave doença: a chaga da infidelidade.

É claro que ela não é garantia de cura, nem tampouco poderia fazer qualquer promessa nesse sentido. Mas a psiquiatria também é muito clara quando adverte que um transtorno pode se encontrar numa fase - leve - avançando ou não para uma outra - moderada - e finalmente podendo ou não se encaminhar para uma última -  aguda, crônica ou grave. Ainda assim, assevera que "para o que não há cura, sempre há e haverá tratamento". Da Medicina e da Psiquiatria em geral portanto, assim como dos médicos e Psiquiatras em particular, temos o direito de esperar não apenas fidelidade mas acima de tudo lealdade para esses e outros princípios. Por que deveria ser diferente com os distúrbios, as feridas e as doenças, que investem contra os relacionamentos e vínculos que têm como escopo realizar sonhos, desejos, projetos e realizações?

À guisa de conclusão: Anais Nin, pensadora francesa do século passado, deixou-nos um pensamento precioso. Ela afirma:

"O amor não morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar a sua fonte. Morre de cegueira, de erros e das traições. Morre de doenças e das feridas; de exaustão, das devastações, da falta de brilho!". Realçando: ELE MORRE PORQUE NÃO SABEMOS COMO RENOVAR A SUA FONTE: a lealdade, mais com certeza do que a fidelidade, pode até não saber como, mas é absolutamente certo que ela estará sempre disposta e determinada a encontrar o melhor caminho e a melhor solução. Para ela, é certo, na maioria das vezes o final não será um "gran finale", um final apoteótico - romântico, utópico, idealista e Hollywoodiano - mas será certamente  o melhor final possível dentre outros tantos prováveis. A lealdade não se deixa enganar nem pelo otimismo extremo nem pelo pessimismo exacerbado: o princípio pelo qual ela se deixa orientar pode bem ser chamado de "realismo esperançado".

Observação: Esta primeira parte da reflexão continua e se conclui com a segunda, de mesmo título, a ser oportunamente compartilhada.

 

(*)Possui graduação em teologia pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha, ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente, cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.

https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura

 

 

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