quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

 

"O NOVO QUE JÁ  NASCE VELHO: RESSIGNIFICANDO

O  CONCEITO  DE 'ANO NOVO'"

Lindolivo Soares Moura(*)

   "O objetivo de um  ano  novo  não  que nós  deveríamos ter um novo ano,  e  sim  que  nós  deveríamos ter uma  nova alma" (G.K.Chesterton);

Todo santo ano é a mesma coisa: ainda mal digerimos o peru da Ceia de Natal, e lá vem a Ceia da antevéspera do Ano Novo! Comilança pra cá, bebelança pra lá, bejim bejim, bracim bracim, e depois pé na estrada, cada um de volta ao seu lugar. Permeando tudo, renovam-se os votos, os augúrios e as felicitações: primeiro, de um santo e feliz Natal; uma semana depois, de um feliz e próspero Ano Novo. Do vermelho do Papai Noel e das festas natalinas ficam apenas as contas e duplicatas a pagar. Duplicatas, "triplicatas", e até "quadruplicatas", diga-se de passagem, em razão da incontida euforia em direção às compras que tais tempos costumam suscitar. Assim é que uma semana depois o vermelho deixado pela festança cede lugar ao branco da esperança: pipocam fogos, renovam-se pedidos, refazem-se promessas e os céus se enchem de colorido. Que os deuses nos ajudem e que o ano entrante seja melhor e menos sofrido! Se o Natal faz renascer o Filho, o Ano Novo se encarrega de ressuscitar o restante da Trindade, ficando a tríade completa: Pai, Filho, e Espírito Santo! O resto do ano é um coro só, pra cá  e pra lá, de "Deus nos acuda!". É tanto pedido de ajuda, que de tempos em tempos a "Santa Madre" não tem outra alternativa senão abrir Concurso para pretendente à santidade, única maneira de conseguir atender a demanda cada vez mais  desenfreada.

É triste! Mais que isso: é lamentável! Para a grande maioria das pessoas o Novo Ano envelhece rápido! Muito rápido! Rápido até demais! As queixas, os queixumes e as lamúrias mal respeitam a "Oitava do Natal" para reentrarem em cena. Muita gente segue ainda agarrada degustando o esqueleto do peru, só que agora ao embalo de prantos e lamentações, e não mais de "oh! Senhor!", "Deus de Amor!" e "noite feliz!". Há cenas que fazem lembrar coisa típica de pós velório e de defunto mal enterrado: puro choro, luto, pranto e lamentação, seguida de lenga lenga, fé de menos e muita reclamação! A "ladainha de todos os santos" é rapidamente acompanhada de uma ladainha de "ais" e "ais" e queixas que não acabam mais! Vez por outra, claro, faz-se uma pausa para respirar e tentar lubridiar tanta adversidade: e lá vem carnaval,  feriado, dia santo, e  "epiqueias" de alívio enganador e passageiro. Depois tudo retorna ao "normal". Normal que para a grande maioria não costuma ser nada bom, por sinal! Mas que círculo vicioso é esse afinal? Por quais razões o Novo Ano acaba sempre ficando velho antes da hora para tantas pessoas, sem sequer esperar pelo próximo Natal? Parei para refletir, e ocorreu-me sugerir algumas possíveis razões, que a partir de agora deixo flutuando no ar. Fica a seu critério prosseguir, parar por aqui, ou retornar mais tarde quando o ânimo recobrar.

🙏Começamos o novo ano fazendo votos e suplicando. E como pedimos! E como imploramos e suplicamos! Sem problemas; não parece haver nada de errado com isso. Cedo se aprende que "rezar nunca é demais". Mas cada desejo e súplica, convenhamos , deveriam ser acompanhados não apenas de uma reta intenção mas também de uma sincera disposição de quem pede ou suplica: o que estamos realmente dispostos a fazer, deixar de fazer se for o caso, investir ou sacrificar para que tal desejo e tal súplica se tornem realidade no ano entrante? Graça alguma deveria ser suplicada sem que antes deixemos bem claro qual será nossa contribuição para que o pedido ou a graça se realizem. Ausente essa condição, orar e suplicar não passa de abuso e exploração da misericórdia divina!  Essa é uma tentação que todos deveríamos evitar.

🥱 Procrastinação: esta é uma das principais agravantes para que o sucesso da realização dos pedidos que fazemos e dos augúrios que recebemos não se concretize. Procrastinar é a maneira mais eficaz de sabotar tanto aquilo que se pede como aquilo a que se propõe. E o que é pior: procrastinamos na maioria das vezes por razões "inconscientes".  Se sabotar a si mesmo já é o fim,  fazê-lo sem sequer estar ciente disso é sem dúvida mais trágico ainda. Antes de se fazermos qualquer  pedido, nos dispormos a fazer qualquer coisa, ou nos determinarmos  a atingir qualquer meta, deveríamos nos capacitar em vencer a procrastinação. Buscar ajuda profissional é quase sempre o melhor caminho, mas quase sempre suplicar passe de mágica costuma fazer parte do pacote. Resultado da estratégia: nosso pedido pode ter sido atendido, o entregador estar à porta para fazer a entrega, mas a gente simplesmente não abre pra verificar. Claro: depois de um tempo ele vai  embora. É assim que muitas oportunidades acabam sendo literalmente "desperdiçadas", e nossa vontade e nossa determinação transformadas em fumaça pelo fantasma da procrastinação. O "Novo" ficando para o ano seguinte.

🫣 Cultivar "olho grande" ou "olho gordo" também pode retardar e até impedir a chegada do "Novo". Muita gente não se dá conta, mas esse costuma ser um poderoso empecilho a dificultar o sucesso e a realização de toda e qualquer pretensão. Deveríamos pedir e batalhar sobretudo - e antes de tudo -  pelo que é necessário à nossa subsistência, e não, abusar da misericórdia divina suplicando sempre por um corpo mais perfeito, aquilo que nos encantou numa vitrine, ou o que o vizinho, parente ou concorrente conseguiram alcançar. Olho grande ou olho gordo tornam a pessoa ansiosa e eternamente insatisfeita. Pais são responsáveis por satisfazer as necessidades, e não necessariamente os desejos e expectativas mirabolantes de seus filhos. Um trabalho digno é sem dúvida uma súplica bem mais sensata do que pedir para ganhar na loteria. Ou, o que seria ainda pior, poder usufruir de uma herança, mesmo que para isso tenha que almejar pela perda dos pais, do companheiro, do sócio e de tantos outros consórcios mais.

🤔 Uma regra de ouro para atrair o "Novo" é sugerida pela Sabedoria: reclamar menos e agradecer mais. O tempo que investimos em rancor, amargura, ressentimento e reclamações, é literalmente um tempo perdido. Quando reconhecemos e agradecemos mais pelo que já temos, sem obsessão em forma de súplica por aquilo que ainda "não temos", acabamos nos surpreendendo: terminamos sendo agraciados ainda mais com surpresas gratificantes  "até quando" e "quando menos" esperamos. A energia que corre em nossa mente é como o sangue que corre em nossas veias: precisa ser de boa, se possível de excelente qualidade. Se aprendemos a ser felizes com o pouco, é certo que o muito não nos trará inquietude e ansiedade. A experiência tem mostrado que a ambição impede dormir bem, e a inveja deixa sufocado até mesmo quem muito tem.

🫢 "Novo" tem que ser em primeiríssimo  lugar eu, você, e não os outros e tampouco o ano que bate à porta. Desejar a alguém um feliz Natal, aniversário ou "Ano Novo", deve ser antes de tudo expressão de um compromisso: comprometo-me a me esforçar para ser diferente e melhor para com você, para com nosso vínculo, para com tudo que diga a nosso respeito,  para que assim o meu e seu ano seja melhor! Votos e augúrios são uma espécie de compromisso, não uma promessa por um lado e tampouco somente uma carta de boas intenções por outro. Se não formos capazes ou não estivermos dispostos a ser melhores e diferentes, melhor não fazermos votos e nem expressarmos felicitações. Energia positiva se traduz em gestos e compromissos, sejam eles explicitados de forma clara ou não. Todo voto ou desejo deve ser um compromisso assumido de sermos parte do "Novo" que desejamos a alguém. E, claro, do "Novo" que desejamos a nós mesmos.

🤗 Felicitar e desejar o "Novo" significa também estar disposto a compartilhar toda energia positiva e construtiva com a qual somos agraciados. Para que isso seja possível é preciso expandir ao máximo nossos conceitos de "pátria", "próximo", "família", "irmãos", para que o "Novo" esteja ao alcance de todos, sem distinção. Boa parte do que somos ou possuímos não nos veio senão por dom e graça; apenas a outra parte reflete nosso esforço e nosso mérito. Tudo que estiver ao nosso alcance pode e deve ser compartilhado: física, material, afetiva, emocional e humanamente. Todos precisam e são merecedores de um quinhão dos benefícios de nosso êxito  e de nosso sucesso na vida, para poderem nutrir expectativas não só de um ano melhor, mas também de uma vida melhor. Não ajuntemos e acumulemos apenas para nós mesmos: a chuva e o sol nascem para todos, sem qualquer tipo de preconceito, seleção ou discriminação. Cada um de nós pode ser ao menos parte do "Novo" na vida de alguém.

🤫 Ser canal e veículo para que o "Novo" aconteça significa também aprender a exercitar nosso contraponto até encontrarmos a excelência do nosso equilíbrio pessoal. Se por hábito e inatamente costumamos falar muito, procuremos ouvir mais; se temos o costume de falar alto, diminuamos progressivamente o tom; se pouco contribuímos com as tarefas comuns, esforcemo-nos um pouco mais progressivamente; se perdemos facilmente a calma, procuremos ser mais tolerantes; se temos dificuldade em demonstrar afeto, determinemo-nos a ousar um pouco mais; e por aí segue o leque das possibilidades. Os elos e os vínculos entre as pessoas são construídos com pequenos gestos, poucas palavras, e muito, muito afeto. Se não foi bem esse o nosso legado como filhos, não façamos disso uma desculpa: "construamo-lo" para com os nossos entes queridos, não importa o tempo e o quanto for necessário para isso. Cada vida singular é construída de certo número de anos. Viver muito é muito bom, mas viver bem e cercado de afeto é melhor ainda. Ser "Novo, tornar-se  "Novo" a cada dia e a cada oportunidade: o Novo Ano nos coloca também esse difícil mas precioso desafio.

🫢 "Tornar novas todas as coisas", incluindo o ano entrante, pode ser também estabelecer um pacto conosco mesmos no sentido de não explorar as pessoas: em  sentido nenhum, e  quem quer que elas sejam. Não importa o quanto estejamos lhes pagando por um serviço, a posição que estamos ocupando, nossa classe ou nosso status social. Se servir é um dom, sentir-se explorado fere, machuca,  além de ser expressão de maldade. Por outro lado, uma palavra de gratidão, um gesto inesperado, um estimulo ou um simples "muito obrigado" possuem um valor terapêutico maior que qualquer cifra monetária. A humanidade de uma pessoa - sua dignidade, se preferirmos - não se mede antes em números ou cifras, mas sobretudo em palavras e gestos de conforto, gratidão e reconhecimento. Isso não significa de forma alguma menosprezar e menos ainda ignorar a pobreza e a miséria real das pessoas. Mas é preciso ter cuidado: afeição desprovida de justiça expressa hipocrisia,  generosidade que nasce da exploração espelha falsidade.

🥳 "Professores são pesados: afundam! Palhaços são leves: flutuam!". Calma! Nada contra os professores e educadores! São e continuarão sendo com certeza nossos grandes mestres. A analogia pede porém passagem para que possa falar da "leveza", da "sensibilidade" e da "delicadeza". Todos somos como pedras preciosas que precisam passar pelo cadinho, ser "polidas",  "lapidadas", para que assim possamos cumprir de forma eficiente e melhor nossa missão no planeta. O "Novo" de um novo ano pressupõe também esse processo de transformação da "rudeza", da "aspereza" e da "rispidez" em "leveza" , "brandura", "candura", "suavidade" e "amabilidade". Claro que renovar-se nesse sentido não é tarefa fácil, principalmente para os que se consideram "por  natureza" rígidos, pouco maleáveis, e por vezes duros de coração. Mas toda virtude consiste antes de tudo no esforço e na disposição, e não necessariamente no "quantum" da aquisição. Gratificante é saber que se há propósito em ação, é certeza de haver graça em jogo. Mas todo dom e toda graça supõem a natureza, contam com ela, e pouco ou nada podem por vezes sem ela. Se o antigo foi ou era rude, bruto ou "casca grossa" como se diz, o "Novo" pode ser  menos, cada vez menos, quem sabe até o ponto de entrelaçar-se na linha do tempo com a leveza, a serenidade, a benevolência e a paz. Como qualquer músculo de nosso corpo, requer-se para isso treino, persistência, e acima de tudo o mais importante: não desistir jamais!👨🎓Se "chronos" é graça, "kairós" é construção. Cada ano que chega, e que nos é concedido, não é novo nem velho: em si mesmo é apenas e tão somente "chronos", cronologicamente passível de ser medido em meses, dias, horas, minutos e segundos; assim como por esta ou aquela estação. Para ser ou se transformar em "kairós" - "Novo", como almejamos - "chronos" precisa ser permeado de mudanças, transformações, ressignificações e rematrizações. Fisica, material, temporal e espacialmente cada ano será sempre um "ano velho", a cada ano cada vez mais velho. Isso é "Chronos", e isso é absolutamente "inevitável". Mental, espiritual, afetiva e emocionalmente, esse mesmo ano estará sempre aberto ao novo, ao diferente, à completude e ao amadurecimento: isso é "kairós", e isso é absolutamente "opcional". Desafiar "chronos" resultará sempre numa mera perda de tempo: mais cedo ou mais tarde, como afirma Rubem Alves, "o fio de ouro se romperá", para todos e para cada um de nós. Invistamos pois  todo o nosso melhor no que é "opcional" e está ao nosso alcance - "kairós" - e sejamos criteriosos nessa escolha. O que chamamos de "felicidade" transcorre sim, com certeza, na linha do tempo de "chronos". Mas só vamos encontrá-la e experimentá-la no inevitável entrelaçamento com "kairós". Caso contrário, o que chamamos de "eternidade" não será mais que uma "inevitável, eterna e absoluta perda de tempo". O "Novo" do ano entrante não chega com a "virada" do ano: precisa ser construído e forjado a cada novo mês, dia, hora, minuto e segundo! Feliz Construção do "Novo" pra você! Feliz Vida Nova para todos e para cada um de nós!

 

 (*) Texto enviado por whatsapp, de Vitória(ES) por L.S.M em 01/01/2024.

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